O padre Júlio Lancellotti ajuda pessoas em situação de rua em uma região nobre da cidade de São Paulo e tem recebido constantes ameaças. Especialmente, depois que um candidato a prefeito da direita juvenil começou a ofendê-lo nas redes sociais. Setores ligados à especulação imobiliária querem expulsar moradores de rua da região. Mas, muitos dos que agridem o religioso não estão ligados a estes interesses.
Não podemos acusar o candidato a prefeito de ser responsável pelas ameaças, mas seu discurso incentiva as pessoas a agredir o padre. O político sabe o que faz, vai ganhar votos entre os que concordam que Júlio Lancellotti seja um “padre filho da p… que ajuda noia”. Foi assim que um motoqueiro se dirigiu ao religioso nos últimos dias. Não é preciso ser um gênio para saber que quem faz isto são as mesmas pessoas que fizeram campanha para Bolsonaro, se declaram “cidadãos de bem” e que “não são racistas, até têm um avô negro”.
Júlio Lancellotti está longe do perfil do que eles dizem ser “esquerdista”. É religioso, tem uma vida sem vícios e sempre se mostra disposto ao diálogo. Mas tem um defeito que eles não toleram: dedica a vida à solidariedade, exercendo o cristianismo que faz o bem sem olhar a quem.
Tal como um impotente sexual que prega a castidade por inveja de quem consegue se satisfazer na cama, o “cidadão de bem” nutre uma grande inveja de quem sente satisfação ao ajudar o próximo. Para quem só pensa em si mesmo, qualquer demonstração de solidariedade é considerada imoral.
Quer outro exemplo? A fúria dessa gente contra os vegetarianos. Não tem nada a ver com a discussão sobre se é correto ou não comer carne, uma questão bem complexa. Mas o que eles não gostam é de pessoas capazes de mostrar uma grande empatia por animais. A empatia os enoja. A empatia que eles não são capazes de sentir.
Qualquer demonstração de satisfação desinteressada no bem do próximo vai gerar ataques de ódio. A solidariedade de algumas pessoas acaba deixando em evidência o egoísmo de outras. O amor ao próximo é revolucionário. A bondade do padre Júlio Lancellotti é subversiva.
‘Odeie o próximo como a ti mesmo’, a psicologia do fascismo e do neofascismo
O que faz uma pessoa a ser assim? A psicologia por trás do fascismo foi objeto de vários estudos. Autores como Wilhelm Reich, Hebert Marcuse e Erich Fromm se debruçaram sobre o tema entre os anos 40 e 60 do século XX. Em comum, a conclusão de que o ódio irracional dos fascistas é um fenômeno a ser explicado não apenas pela convicção política ou pela defesa de privilégios, mas também por processos mentais.
Wilhelm Reich, por exemplo, vai enfatizar a repressão sexual como algo que ajuda no processo de alienação das pessoas. Ao não desenvolverem a sexualidade de forma saudável, alguns indivíduos acabam substituindo a satisfação sexual pela excitação causada por sofrer e fazer o outro sofrer. Ou seja, o fascista é sádico e masoquista, além de desenvolver um fascínio pela violência.
Erich Fromm vai focar na perda dos sentimento de empatia e na desumanização de alguns grupos. A ideologia fascista estimula o alívio das tensões por meio da violência irracional, e isto torna as pessoas fáceis de serem manipuladas. Estes estudos ajudam a compreender o comportamento dos militantes da versão contemporânea do fascismo, o neofascismo. A base psicológica dos dois é bem parecida.
O culto pela morte e pela autodestruição é evidente no fascismo. Em sua versão contemporânea, o neofascismo, isto parece mais intenso. Por isto eles defendem a destruição predatória da natureza, uma contradição até mesmo com o fascismo de antigamente. Também são contra a vacinação e as medidas sanitárias para evitar a contaminação pela Covid-19. Eles são contra o cuidado e o autocuidado, romantizando comportamentos que levam as pessoas a se ferir e ferir umas às outras.
O programa máximo do neofascismo não é a submissão de uma raça pela outra, isto é apenas uma tática. Na verdade, o que eles querem, mesmo que de forma inconsciente, é o autoextermínio de toda a humanidade.
Suponhamos que um dia eles consigam vencer, podendo ditar as regras da sociedade. Inicialmente, as pessoas brancas iriam poder escravizar as negras. Uma vez os negros sendo eliminados, os brancos iriam disputar quem seria mais puro que o outro. O resultado seria, em um segundo estágio, que brancos de olhos claros iriam exterminar os brancos de olhos castanhos. Depois do extermínio dos brancos de olhos castanhos, entre os brancos de olhos claros haveria uma divisão. Quem não tivesse cabelo loiro seria considerado de uma raça inferior e seria exterminado. E assim sucessivamente, até que o penúltimo ser humano seja exterminado pelo último, que morreria na solidão.
Eles falam muito em “não ter medo de morrer”. Uma ideação suicida mal disfarçada. Morrer pela “honra” e pela “pátria”, nada mais é que romantizar a própria morte. O neofascista é uma pessoa que já perdeu sua humanidade e a capacidade de sentir prazer nas relações de solidariedade. Por isto a substitui este sentimento pelo medo e pelo ódio.
Medo e ódio são a cocaína do cidadão de bem. É o meio como ele consegue sentir emoções fortes. E, claro, a o uso da razão atrapalha este gozo pervertido. Hebert Marcuse fala do culto ao irracionalismo presente na ideologia fascista. Com o neofascismo, podemos observar o mesmo fenômeno. O negacionismo científico tem sua base psicológica.
Assim com o fundamentalismo religioso. O culto pelo ser humano que não pensa, mas age sem filtros, alimenta a ignorância voluntária. Ser ignorante passa a ser um prazer que alivia um pouco a alma perturbada e ressentida. Faz a pessoa se sentir parte de uma maioria que não entende a ciência e por isto tem o direito de “oprimir” a minoria que tem apreço pelo conhecimento.
Aliás, o culto pela “opressão”, explica como o neofascismo consegue formar uma base social. Ser “opressor” preenche o vazio existencial. É um meio de canalizar o ódio irracional. E este ódio alimenta o populismo, que é usado contra as minorias vulneráveis. Odiar os banqueiros é difícil. Eles são protegidos por seguranças armados. É mais cômodo odiar negros, LGBTs e mulheres. A chance de ser “opressor” faz o cidadão ressentido se sentir atraído pelo discurso que coloca brancos contra negros, pessoas de sexualidade predominante contra minorias sexuais, cidadão “legítimos” contra imigrantes. Não é difícil que, em uma sociedade disfuncional como a nossa, este populismo de ódio consiga arrastar cerca de 30% da eleitorado.
Por isto a satisfação que eles sentem quando uma pessoa em situação de rua é agredida. Ela está ali, vulnerável, exposta a ser o objeto de divertimento sádico. Como eles se sentem bem ao negar uma esmola. Como eles ganham o dia quando humilham alguém que dorme em calçadas. Quando o padre Lancellotti humaniza as pessoas em situação de rua com sua solidariedade, o “barato” é cortado.
O que faz uma pessoa a ser assim pode ser uma mistura de sensação de fracasso individual, desligamento dos laços sociais, traumas e ressentimentos. O neofascismo une grupos de homens jovens que se sentem injustiçados por não terem conseguido o sucesso que esperavam ter. É a base mais agressiva do movimento, que se organiza na internet e, alguns casos, promove tiroteios em escolas.
O neofascismo está para o inconsciente coletivo o que a ideação suicida está para o inconsciente individual. Ele não é inimigo apenas das minorias perseguidas, é inimigo de toda a raça humana. A parte perigosa é que um pequeno grupo de neofascistas convictos consegue ganhar a confiança e a audiência de uma parcela da sociedade desiludida e desorientada. Hoje um terço do Brasil já caiu nesta armadilha.
Por isto a importância da defesa da arte, da ciência, da diversidade sexual e da luta contra o patriarcado. O trabalhador embrutecido, tomado por preconceitos e ressentimentos, é presa fácil para o neofascismo. Por outro lado, o trabalhador que consegue, apesar da exploração, manter a fé na humanidade, o amor pelo conhecimento, o otimismo perante a história e a solidariedade perante o próximo, tem mais chances de ser ganho para a revolução. A luta de classes também é uma luta por almas.
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