Tudo novo de novo: a permanente luta do marxismo contra o ecletismo

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Um pouco mais do que meia dúzia de intelectuais russos, morando quase todos na mesma casa nos exílios de Londres e Zurique, e discutindo como dirigir com vistas à  revolução a luta dos distantes trabalhadores da imensa e atrasada terra dos czares. Um pequeno jornal, profundamente teórico e programático, era o meio para esta tarefa, e ele tinha que adentrar clandestinamente no território russo e chegar às mãos de células de operários e operárias que desempenhavam um tanto quanto separadamente suas lutas cotidianas. A ideia dos editores do jornal  – os quais viviam de contribuições da militância, expropriações armadas, doações de partidos operários europeus e de pequenos trabalhos avulso (da redação de artigos à produção e venda de manteiga artesanal- sem lactose?) – era, sobretudo, unificar as lutas operárias na Rússia e imprimir-lhes um sentido conscientemente socialista. Parecia um plano mirabolante, e era. Parecia ter tudo para dar errado, mas não deu.
 
As razões para o sucesso do marxismo revolucionário russo constituem uma variegado objeto, e os historiadores, profissionais ou não, ainda se detém em investigá-lo e compreendê-lo.  Pode-se dizer, sem dúvida  que entre tais razões está o combate teórico dado pelo bolchevismo – até mesmo antes de existir enquanto tal – a todo o tipo de ecletismo teórico-político que se opunha e exercia pressão sobre a militância marxista. Tal combate, convém assinalar, muitas vezes se deu em meio a momentos de refluxo da luta de classes, em situações politicamente adversas aos explorados e oprimidos, os quais, por vezes, derrotados e submetidos a regimes despóticos, mal tinham como tomar ciência dos embates teóricos que o marxismo revolucionário travava – o que,  no entanto,  não serviu de argumento para que estes fossem “deixados pra depois”.
 
Implacavelmente, e evitando acusações ad hominem, Lenin criticou com veemência e até ironia (muitas vezes cáustica) o populismo narodinok dos herdeiros de “Netchaiev”, o “marxismo legal” de Struve, o economismo (sindicalismo) de Martinov e Akimov, o neokantianismo semi-religioso dos “buscadores de Deus” de Bogdanov e Lunacharsky, o liquidacionismo legalista da direita menchevique, o parlamentarismo de Kautsky e do centrismo menchevique, o antiparlamentarismo  principista dos anarquistas e da ultraesquerda bolchevique (todos esses três últimos adversários embasados em uma visão errônea sobre o caráter do Estado), o chauvinismo grão-russo opressor, o “nacionalismo burguês oprimido”,  o etapismo dos “velhos bolcheviques ” de Stálin-Kamenev em abril de 1917, entre tantos outros adversários externos e internos ao marxismo revolucionário,  e que, muitas vezes sub-repticiamente, o corroiam por dentro. Da parte dos ecléticos, por assim dizer, não faltaram acusações ad hominem: Lênin teria sido, na lavra daqueles, respectivamente, um inimigo das tradições comunitárias ancestrais do campesinato russo, um inimigo da modernização industrial, um inimigo dos sindicatos, um inimigo dos crentes, um inimigo da luta legal, um inimigo da luta parlamentar, um reformista parlamentar,  um nacionalista étnico não-russo, um chauvinista grão-russo e um “trotskista”. 
 
Aliás, em relação a Trotsky, não faltariam também aqueles que lhe lançariam a pecha de “inimigo dos mujiques” por ser um crítico do protagonismo camponês  na revolução russa e, depois, um crítico da política de Stálin-Bukharin de “aliança com os kulacs a todo custo” e seu “socialismo a passos de cágado”. Do mesmo modo, por criticar o stalinismo, Trotsky seria chamado de inimigo da União Soviética, do proletariado russo e da classe trabalhadora internacional.
 
Nota-se, assim, como não é nova a tarefa do marxismo revolucionário de criticar e de combater as correntes teórico-políticas que disputam com ele a direção do movimento dos trabalhadores e dos oprimidos, assim como também não é lá novidade o método destas correntes de tomar o ataque contra si como um ataque aos grupos sociais e lutas sociais que julgam exclusivamente  representar. 
 
Tudo isso parece novo, mas é mais velho que a Sé de Braga.