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OPRESSÕES

Vingança vai ser ficar vivo: população negra e genocídio em tempos de pandemia

Gabriel Santos, de Maceió, AL

E a luta pela liberdade só acabe quando ela for encontrada
Para que a nossa poesia não seja mais escrita com sangue – Abebe Bekila 

Há algumas semanas, assisti a um vídeo de Pedro Augusto, pré-candidato a vereador pelo PsoL, em Santo André, no ABC paulista. O vídeo é emocionante e tocante do início ao fim, mas destaco aqui um momento no qual Pedro fala que quem é negro desde que nasce está colocado no grupo de risco.

O rapper mineiro Djonga, em uma de suas músicas, escreve “o que me mata é tão pequeno, olha o tamanho de uma bala”. Hoje, em tempos de pandemia, o que pode nos matar é infinitamente menor do que esta bala de cinco centímetros, mas os riscos de morte são diversos.

Recentemente, foi divulgado o Atlas da Violência deste ano, que apresenta os números de 2018, e nele a afirmação de Pedro se confirma. Em nosso país, o racismo estrutural nos coloca desde cedo nesta relação de proximidade indesejada com a morte, afinal, muitas coisas podem matar o jovem negro. Seja via bala, ou via vírus, esta morte é arquitetada pelo racismo estrutural que sustenta o capitalismo brasileiro.

Se, para sair de casa, a maioria das pessoas segue toda uma preocupação de como sair para evitar contrair o vírus da Covid-19, utilizando máscaras, por exemplo, quando se é negro, parafraseando os Racionais Mcs, “desde cedo a mãe da gente fala assim”, nos passando toda uma série de cuidados ao sairmos de casa. A forma de agir, quando se recebe uma abordagem policial, a forma de andar ao passar por uma viatura, que tipo de roupa usar ao ir para determinado lugar são algumas entre uma série de preocupações que aprendemos a lidar desde cedo quando se é negro, e que podem custar nossas vidas. Vale aqui uma observação que me veio agora. Em casa, nunca me ensinaram como agir em caso de eu ser vítima de assalto, mas fui ensinado algumas vezes como me comportar diante da polícia, e durante uma abordagem.

A sensação de preocupação e medo de lidar com a perda e com a morte de forma repentina, que hoje por conta da Covid-19 é algo que atinge todos os brasileiros, quando se é negro é quase que uma constante e nos acompanha desde o berço. Viver rodeado pela morte e pelo medo desta é algo adoecedor.

Antes de entrar de vez em uma análise sobre o genocídio da população negra e de como a pandemia aprofundou isto, gostaria de traçar umas poucas linhas ainda sobre a relação com a morte.

Nas religiões de matrizes africanas e em muitas culturas do continente Mãe, a morte é um processo natural do ciclo da vida. Faz parte dos momentos de transição e da relação da natureza. Nossos corpos não são eternos, são finitos e fazem parte da relação dialética entre continuidade e descontinuidade, pois são partes do todo que, no desenvolver deste ciclo, não estavam antes e não estarão depois. Porém, o racismo estrutural e o genocídio invertem essa lógica tradicional e a quebram, rompendo este ciclo. Não existe mais continuidade, pois a morte, fruto das estruturas racistas, impede isto. Não existe mais o desenvolvimento do ciclo, não se chega ao “vir a ser”, pois a morte, fruto das estruturas racistas, funciona na lógica do passado. Se mata no presente para impedir que se tenha um futuro. A relação de transformação natural se torna uma relação entre lembranças, esquecimentos e dores. A ferida aberta nunca cicatriza. A conversa entre vida e morte se torna apenas algo sobre luto, e diariamente ter que reviver este luto, pois as mortes não param. Se cobra como se encontrar uma suposta força para continuar a caminhada, mesmo que com as feridas à mostra e com o luto tendo que ser revivido constantemente.

Pandemia, Covid-19 e corpos que tombam

Pablo Henrique - Esquerda Online


Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer.
– Conceição Evaristo

Um levantamento feito pela Folha de São Paulo mostrou que aproximadamente 31% dos registros das mortes por Covid-19 não apresentam informação racial sobre os óbitos. Porém, dentre os registros que trazem esse dado, pessoas pretas e pardas somam 60% das vítimas, sendo que este número deve ser ainda maior caso todos os dados fossem divulgados.

Ao ver as mortes por Covid-19 através da ótica racial, uma série de perguntas podem surgir, entre elas: “por que negros são maioria das mortes pelo novo coronavírus”? E também: “O aspecto da raça, ou seja, nascer branco, ou nāo branco, no Brasil, traz quais complicações na relação com a saúde pública”?

Primeiro, é preciso apontar que o Sistema Único de Saúde, o SUS, sofre com uma série de sucateamentos, corte de verbas, e dificuldades na sua atuação. Desta forma, os brasileiros que mais necessitam desta cobertura universal são os mais afetados com estes fatos. Ou seja, os brasileiros pobres e negros acabam tendo sua relação com o direito à saúde secundarizada e posta de lado.

Importante localizar também que o racismo brasileiro se apresenta nas relações institucionais e demais relações que permeiam a vida social. Dessa forma, o tratamento recebido por pessoas negras em muitos espaços de atenção à saúde são mediados pelo fio do racismo que teve as nossas relações.

Se o racismo se faz presente nas relações interpessoais e institucionais, ele atua de forma brutal quando se fala sobre a reprodução na vida material e no dia a dia. As condições de vida da população negra fazem com que ela esteja sempre em situação de maior risco. São diversos os aspectos que apontam e mostram como pautas e situações diferentes estão interligadas, e assim se encontram justamente por conta do racismo estrutural.

Um exemplo possível dentre vários. É um fato que pessoas negras no Brasil recebem salário menor e possuem menos renda. Este fato econômico se materializa em outras condições, como o direito a uma alimentação saudável. Com menos renda, a quantidade de parte desta destinada à compra de alimentos e nutrientes é reduzida.

Podemos abordar também através da noção de racismo ambiental. Esta aponta que o racismo atua no planejamento urbano e na lógica de distribuição de espaços, fazendo com que estes sejam desiguais. Recursos públicos são direcionados para bairros nobres e de classe média, de maioria branca, deixando para os bairros negros prejuízos e isso se reflete em problemas como alagamentos e deslizamentos de terras, por exemplo.

Pessoas negras não apenas vivem menos, como também vivem pior, e isto é um fato que toca na saúde pública. Como disse Ângela Davis, a raça é a forma que a classe é vivida. No Brasil, essa vivência deixa para negros piores moradias, uma carga horária de trabalho mais exaustiva, com um lugar no mercado de trabalho marcado por ocupações informais ou precárias, e tudo isto se reflete na saúde.

Ao falarmos que vidas negras estão sempre no grupo de risco, falamos que o racismo que fundou esse país, suas instituições e organiza a forma que o capitalismo funciona atua diariamente para que sejam criadas realidades nas quais a vida das populações não brancas (negros e indígenas) esteja sempre em estado de ameaça. Voltando à relação vida e morte, esse racismo faz com que a morte não seja apenas uma cena no espetáculo da vida, mas que seja a atriz principal e que organiza todo o enredo.

As 120 mil mortes pela Covid-19 vistas de forma racializada mostram que a naturalização dessas mortes é fruto deste mesmo racismo estrutural, que há mais de 500 anos segue sua trajetória de massacre e derramamento de sangue dos mesmos corpos em uma realidade mortífera.

A política de omissão e desinformação de Bolsonaro e seu governo são uma política racista, que se encaixa em todo seu plano de governo fascista. A negligência na elaboração de políticas públicas é uma face do racismo estrutural e da necropolítica, e isto se intensificou durante a pandemia.

Genocídio negro

Pedro Muniz - Esquerda Online


Quando o preto morre o céu ganha um novo orixá
Ganha um novo orixá
Mas se o preto morre o céu
Viva o novo orixá – Djonga

Se a ausência de políticas públicas específicas é algo naturalizado e um projeto em nosso país, assim como é fruto das relações de poder e dominação que moldam a sociedade brasileira, e esta ausência causa mortes, podemos afirmar que esta “ausência intencional” é uma verdadeira política estatal de morte, aplicada pelo Estado brasileiro.

Esta política tem sua materialização quando se fala sobre segurança pública. A forma como esta se estrutura no Brasil é a partir da lógica da construção de um inimigo interno e de parcelas específicas que merecem esforços e logísticas estatais para garantir sua proteção. Este inimigo interno tem cor de pele e local de moradia definidos. Se antes eram os negros escravizados os principais perigos para o convívio social, e por conta de suas revoltas e rebeliões se estruturaram instituições policiais, modelos de segurança e funcionários responsáveis para garantir a lei e a ordem escravocrata, hoje, a figura deste inimigo interno são os jovens negros que moram nas periferias brasileiras.

Os corpos desses jovens passam por um processo de criminalização, o seu transitar por outros espaços da cidade é vetado por conta deles carregarem o fato de serem vistos como inimigos internos e perigo social. O local de habitação destes corpos são militarizados, passando por uma lógica de segurança militar, vivendo em um estado de guerra, e, em um confronto como é uma guerra, o que se interessa é exterminar e pôr fim no adversário. Estes locais de moradia e ocupação dos corpos sofrem ainda com um processo de ocupação militar. Com o abandono de políticas sociais e econômicas por parte do Estado, este último só alcança estas periferias, morros, grotas e favelas, por meio da atuação militarizada de suas forças de segurança pública. Esta ocupação militar reproduz uma lógica de colonização interna dos espaços negros e destes corpos negros, como desenvolve Fanon.

A soma de falta de políticas públicas para a população negra, fruto do racismo que funda o Estado brasileiro, somada à política de segurança pública que é formada através da lógica racista e intensifica a mesma, geram a necropolítica, ou seja, uma política de morte baseada na determinação e dominação racial.

O Atlas da Violência divulgado mostra que mais de 75% dos brasileiros mortos de forma violenta no país são brasileiros negros. Nos últimos dez anos, entre 2008 e 2018, o número de pessoas não negras mortas de forma violenta diminuiu 12,9%, enquanto o de negros aumentou 11,5%.

Este ano, mesmo durante a pandemia, vimos um crescimento no número de mortes por policiais. Foram 3.148 pessoas mortas por policiais no primeiro semestre deste ano em todo o país. O número é 7% mais alto que o registrado no mesmo período do ano passado, quando foram contabilizadas 2.934 mortes. É válido lembrar que estes são os números oficiais. Eles devem ser maiores que isto, visto algumas mortes que são ocultadas.

Após divulgação destes números, o Monitor da Violência solicitou às secretarias estaduais da Segurança Pública que informassem a raça indicada no boletim de ocorrência das vítimas das mortes por policiais. O pedido foi, na prática, invizibilizado, o que mostra o abandono da necessidade de se enxergar a variável raça nas respostas enviadas pelas autoridades, ainda mais quando se fala em questões como controle da violência estatal e elaboração de políticas públicas de segurança.

Das 27 unidades da federação, somente 15 (Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Sergipe e Tocantins) disponibilizaram dados referentes à cor dos mortos por suas polícias. Do total de mortes decorrentes de intervenção policial no primeiro semestre, apenas metade tem informação de raça/cor da vítima.

O uso da violência como ordem estatal serve para o controle de espaços, dominação de territórios e de corpos, seja a partir da lógica de conflito ou para exercer este poder sobre corpos e locais que historicamente foram estigmatizados, como corpos negros e periferias.

Entre a transição entre o trabalho escravizado e o trabalho livre, os aparelhos de controle social dos corpos negros se aperfeiçoaram, e passaram de ser dos donos de engenho no âmbito privado, para as instituições públicas. Entre a colônia e o Brasil independente, entre a monarquia e a República, entre o século XVII e o século XXI, a violência exercida sobre negras e negros brasileiros faz a ligação temporal e permanece como exemplo de mudança mas, ainda assim, de continuidade.

Fazer uma política de vida: o antirracismo como centro

Mantendo vivo o sonho das esquinas
Me mantendo Vivo – Abebe Bekila

Se o Estado e o modo de produção capitalista realizam uma política de medo constante e de morte, é necessário a partir de baixo, das organizações populares, dos movimentos sociais e da auto-organização do povo negro, a efetivação de uma política de vida.

Pensar políticas de vida é a partir do método de colocar com centralidade este tema. Falamos a partir de nossas realidades, de nossos locais, de nossas dores e vivências, das demandas necessárias e urgentes. Traçamos política a partir do que nos aflige e atinge, daquilo que é nosso objetivo na relação tático e estratégico. Para os jovens negros esta demanda é a partir da necessidade de viver.

Uma política de vida perpassa sobre a necessidade de uma política econômica que tenha como centro a periferia,  que potencialize as capacidades de seus habitantes e crie mercados e uma economia local, com geração de emprego e renda.

Uma política de vida é valorizar e desenvolver a cultura e lazer negra e de espaços periféricos. O genocídio físico do povo negro é também a morte e destruição de sua cultura em todos os âmbitos, contra isto a valorização de nossas artes e identidades, é uma potencial na afirmação de quem somos e da importância de sermos isto.

Uma política de vida é pensar uma outra lógica de segurança pública, que não seja a partir da criminalização de corpos negros, que não nos veja como inimigos, que nos transforme em alvos.

Uma verdadeira política de vida é essencialmente um confronto com o colonialismo e com o capitalismo que se organizam através da lógica assassina e do racismo para se manter em pé.

Estas tarefas não são simples, e só são possíveis a construção de estratégias do tipo com o antirracismo colocado como centro do debate das organizações. Não se trata de fazer o famoso recorte racial, mas sim de tratar o antirracismo com centralidade e construir um marxismo e um anticapitalismo que seja negro e antirracista.