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MUNDO

Bielorrússia: situação, oposição e a classe trabalhadora

Antonio Micaias, de Fortaleza, CE

A Bielorrússia enfrenta no atual momento um turbilhão social sem precedentes na história do país com manifestações massivas ocorrendo, além de greves em inúmeras fábricas, reuniões, formação de comitês de greve, passeatas, etc. Essa situação acendeu algumas polêmicas no seio da esquerda sobre apoiar ou não as manifestações bielorrussas e suas reivindicações. Há quem prontamente aponte o dedo e descreva o quadro como o de uma revolução colorida fomentada pelas intrigas de potências estrangeiras com seus respectivos interesses geopolíticos imperialistas na região, que se deve salientar é um ponto estratégico entre a Rússia e a OTAN e mesmo entre a China e a União Europeia. Por outro lado, há quem apoie acriticamente as manifestações, suas reivindicações e sua mais representativa liderança nesse momento, a saber a agora ativista política Sviatlana Tsikhanouskaya (esposa do blogueiro Siarhei Tsikhanouski, que foi preso e impedido de participar das eleições presidenciais esse ano). 

As posições sobre a situação bielorrussa não se encerram nessas duas citadas anteriormente, mas uma pesquisa adequada evidencia o destaque e o contraste que elas têm. Uma pergunta não quer calar: que posição é a mais correta para os comunistas brasileiros diante do que ocorre na Bielorrússia? Faz-se necessário levar em conta alguns aspectos gerais como as características políticas e econômicas da Bielorrússia, sua história recente, como o turbilhão social desencadeado esse ano se encaixa nessa história, qual o sujeito social e político e quais as reivindicações dos manifestantes e seus limites, quais os interesses geopolíticos envolvidos, etc.

Algumas considerações sobre o regime bielorrusso e sua história recente

Embora nominalmente a Bielorrússia seja uma República presidencialista que tem como pilares institucionais a presidência e a assembleia nacional, na prática o presidente Aleksandr Lukashenko detém o monopólio do poder político governamental no país, sendo apoiado pela burocracia pós-soviética, pelo empresariado bielorrusso, pelas forças de segurança como a OMON (Forças de segurança antimotim) e a KGB (herdada do regime soviético e que foi mantida). Seu domínio, no entanto não repousa somente nesses agentes anteriormente citados. Indubitavelmente, o presidente eleito em 1994 com 80% dos votos conseguiu evitar a terapia de choque que levou as privatizações, domínio oligárquico desenfreado dos chamados “novos ricos”, saque da riqueza pública, caos econômico-político e crises sociais que varreram imediatamente o leste europeu após o infeliz declínio da URSS. 

Naquela que é considerada a “última economia soviética” foram preservados boa parte do planejamento central na economia, das empresas estatais, dos empregos e de serviços de seguridade social que explicam o fato de que hoje o país apresenta níveis de pobreza, desigualdade e desemprego e um PIB bastante considerável quando comparado a países vizinhos como a Ucrânia. Tais conquistas, ainda que a custa de certo cerceamento das liberdades democráticas, (é extremamente dificultoso realizar greves legalmente no país, por exemplo) permitiram a Aleksander Lukashenko governar sob um pacto social com o povo bielorrusso preservando este do destino de povos vizinhos do leste europeu que viram queda em seu nível de vida. 

Somadas a uma identidade nacional consideravelmente majoritária em torno de temas como a industrialização do país, a expulsão dos nazistas na segunda guerra mundial, o desastre de Chernobyl e até mesmo a revolução russa fomentaram ainda mais esse pacto social que garantia até o presente momento uma relativa estabilidade ao regime de Lukashenko, mesmo que possamos encontrar alguns episódios de protestos e dissidências notáveis na história recente, violenta e eficazmente reprimida. No entanto, esse quadro passa a mudar ao longo dos anos, com o aumento das denúncias do regime despótico e bonapartista de Lukashenko, a crise econômica mundial, o aceno do governo ao neoliberalismo combinando burocracia e mercado etc.

O que levou as manifestações recentes?

No entanto, com a crise econômica internacional de 2008, que atinge a Bielorrússia mais especificamente a partir de 2011 esse quadro de relativa estabilidade passa a ser cada vez mais ameaçado. Desaceleração econômica (já nascente a partir dos anos 2000), o desemprego passa a aumentar paulatinamente, as condições sociais da população se deterioram, as relações com a Rússia com quem o país é extremamente conectado e dependente economicamente se deterioram em torno do gás natural e do petróleo (fontes de riqueza que o país compra a preços subsidiados e vende a preços de mercado), aproximação com a União Europeia, etc. Tais fatores, somados aos anos de asfixia e repressão política engendrada pelo regime de Lukashenko e pelas seguidas denúncias de corrupção e fraudes eleitorais por parte da oposição ao longo dos anos culminam em 2020 com a pandemia de COVID-19 e seus respectivos efeitos sociais e econômicos e o descaso do governo para com a crescente contaminação entre os habitantes do país. 

Já antes das eleições, Lukashenko, que concorre ao sexto mandato, começava a enfrentar o crescente descontentamento da população bielorrussa para com a situação no país. A repressão às manifestações, a perseguição às lideranças dos movimentos e aos seus possíveis opositores políticos nas eleições – e como se não bastasse tudo isso ainda houve o desdém e a minimização dos protestos por parte do presidente – incendiaram ainda mais a população bielorrussa. Desde então as manifestações aumentam enormemente, com adesão de vastos setores da população como intelectuais, líderes sindicais, mulheres, juventudes, trabalhadores urbanos e do campo etc. Esses setores não formam necessariamente uma massa homogênea no que diz respeito aos seus objetivos e reivindicações, mas unem-se enquanto oposição ao regime de Lukashenko e na defesa de bandeiras como a liberdade para os presos políticos e a realização de eleições livres e transparentes com a presença de observadores internacionais independentes. Identificar os diferentes setores que compõem as manifestações é crucial para proceder num julgamento de quem é o sujeito social e político das mesmas.

Algumas características das forças políticas organizadas

A oposição é nominalmente liderada e representa por Svaitlana Tsikhanouskaya e seu recém-formado conselho de coordenação no qual tomam parte outras figuras da oposição e intelectuais de caráter liberal e nacionalista e apenas um trabalhador, este da BMZ (fábrica de aço da Bielorrússia). Tal conselho absorveu a minoritária oposição liberal-nacionalista do país, com seu caráter pró-ocidente, anticomunista e antiproletário. Deve-se dizer que tal oposição não goza de força social séria e não é representativo da esmagadora maioria dos manifestantes bielorrussos. Tal oposição se caracteriza por seu programa democrático-burguês e nacionalista de direita, com medidas que vão desde um relativo afastamento da influência do Kremlin (ainda que ela tenha apaziguado Moscou de que não pretende um afastamento considerável e assim recebido um olhar de consideração de Putin) até privatizações e perda de soberania do país em detrimento de um alinhamento maior com o Ocidente. 

A oposição tenta desde o início, apoiada pela UE, pelos EUA e pela OTAN apaziguar a crescente radicalização dos trabalhadores bielorrussos, enquanto busca um diálogo com o Kremlin que assegure um equilíbrio entre o interesse geopolítico dos distintos países na região e uma transição pacífica de poderes, se possível assegurando novas eleições com a participação do próprio Aleksandr Lukashenko. De maneira geral, ainda que tal oposição tenha tomado a dianteira tentando apaziguar e unir os trabalhadores em torno de seu programa, não obteve êxito significativo junto aos trabalhadores até o presente momento e nem mesmo é a força social representativa da esmagadora maioria da população. 

Quanto às forças de esquerda no país, o partido comunista bielorrusso (BCP) opta pela política de um suposto mal menor, e desde a ascensão de Lukashenko não se comporta nem mesmo como um partido marxista-leninista independente, mas antes como uma extensão do governo de Lukashenko, tendo inclusive representantes no parlamento bielorrusso (com 11 cadeiras é o partido mais representado no parlamento majoritariamente constituído de candidatos sem partido). O suposto mal menor seria apoiar Lukashenko em detrimento das forças imperialistas externas. Tal argumento encerra-se infelizmente em uma lógica binária de “eles e nós” que não realiza uma leitura materialista histórico-dialética coerente da situação e que não identifica as principais forças motrizes das manifestações e suas reivindicações e razão de ser e serve apenas como desculpa para que o partido continue como pilar de sustentação do regime decadente de Lukashenko. O Fair World, outra força de esquerda considerável no país, tem por sua vez o problema de se por um lado ter jovens revolucionários e capazes em sua composição estar contaminada por ilusões reformistas pró-ocidente dispostas a capitular diante do liberalismo e do imperialismo Entenda-se ainda que as forças de esquerda no país, encerradas no dilema institucional de ser ou não pró-Lukashenko, pouco poderia fazer nos últimos anos em decorrência das restrições à atividade política no país o que agora se reflete no expontaneísmo das massas e na falta de uma liderança real constituída em direção que seja a força social majoritária dos protestos.

A classe trabalhadora toma a dianteira 

Dito isso sobre algumas das forças políticas organizadas no país, o fato é que a classe trabalhadora bielorrussa, mesmo inexperiente após décadas de falta de independência política impeditiva a tomada real de consciência de classe, toma cada vez mais a dianteira das manifestações compondo seu sujeito social e político. Inúmeras fábricas do país estão em greve e as manifestações apresentam elementos de uma constante proletarização em sua composição social, com greves de trabalhadores nos quatro cantos do país, em que tomam parte, por exemplo, Grodno-Azot (fertilizantes químicos), Belmedpreparaty (farmacêutica), JSC “Grodnozhilstroy” (construção), Terrazit (PVC e alumínio), Central Eletromecânica de Minsk (MEZ), a usina de açúcar Zhabinka. Greves e protestos também ocorreram na Planta Eletromecânica Agat e nas fábricas operadas pela fabricante de cerâmicas “Keramin” e também uma série de pequenas empresas, funcionários do Instituto de Física da Academia Nacional de Ciências, trabalhadores da UBER, fábrica de automóveis da Bielo-Rússia BelAZ, Belarussian Steel Works BMZ, VIPRIL Control (controladores de vôo). Além disso, já foi iniciada a formação de comitês de greve em inúmeros locais e há a paulatina formação de sindicatos independentes do Estado.

Nesse contexto de greves, muitos oficiais e policiais comuns estão abandonando seus postos ou se recusando a obedecer a seus superiores. O quadro é de uma classe trabalhadora cada vez mais organizada, agitada, consciente e independente buscando unificar as reivindicações dos manifestantes em um programa de caráter popular distinto em muito do que representa a oposição de direita capitaneada por Tikhanouskaya. No quadro extremo de lutas, perseguições políticas, violência estatal massiva com direitos a inúmeros presos, feridos, mortos e desaparecidos, a classe trabalhadora vem aprendendo a se organizar radicalmente mas ainda há um caminho considerável a trilhar seja para organizar unificadamente os demais setores populares, como também para romper com as ilusões democrático-burguesas com as quais a oposição de direita pretende envenenar a classe trabalhadora, afastando-a do protagonismo do processo político e implementando seu desastroso programa semelhante ao que já foi implementado em outros países do leste europeu. 

As reivindicações têm passado cada vez mais da realização de novas e transparentes eleições para outras cada vez mais radicais como a queda do regime de Lukashenko, reforma policial, reforma judiciária, cancelamento da reforma previdenciária instituída há anos no país, criação de conselhos dos trabalhadores, autogestão dos trabalhadores nas fábricas, criação de sindicatos independentes, manutenção do emprego, utilização do PIB para setores como saúde, emprego e educação em detrimento do gasto com as repressivas forças estatais do regime, etc.

Algumas conclusões

Estamos diante de um processo complexo que demanda que levemos em conta as forças políticas organizadas no país tanto de situação como de oposição, o papel da Rússia e da OTAN, a crescente capacidade de organização e protagonismo da classe trabalhadora e o contexto econômico, político e social que caracteriza a situação no país após anos de despotismo burocrático unido ao despotismo de mercado que caracterizam o regime de Lukashenko. 

Não se deve desprezar o fato de que ocorreram as chamadas “revoluções coloridas” em países vizinhos, quando a classe trabalhadora dos distintos países em que ocorreu tiveram suas justas reivindicações sequestradas e direcionadas ao liberalismo, ao nacionalismo pró-ocidente, em alguns casos com radicalização de caráter neofascista – não sejamos bucha de canhão do imperialismo e façamos um balanço contínuo das forças sociais em disputa e suas conquistas e derrotas (revolução ou contrarrevolução?). Devem-se denunciar as tentativas de ingerência externa seja por parte da OTAN como da Rússia! As sanções recentemente aplicadas por países como a Lituânia são criminosas e pretendem forçar a queda de Lukashenko e a tomada desastrosa do poder pela oposição de direita (ainda que esta não vá radicalmente em um rumo pró-ocidente como demonstram as tentativas de apaziguamento e diálogo com o Kremlin) a custa da deterioração social, política e econômica do país e da classe trabalhadora. 

Há uma saída pelas mãos da classe trabalhadora? Os comitês de greve que se formam ao longo do país poderão se organizar cada vez mais e se unificar nacionalmente como um conselho operário e popular capaz de unir as reivindicações políticas e econômicas, garantir a manutenção das conquistas pós-soviéticas e ir além destas, rompendo com as ilusões democrático-burguesas pró-ocidentais e pró-imperialistas? 

O rumo que as manifestações na Bielorrússia irão tomar deve estar na lente atenta dos revolucionários e devemos ser cautelosos e considerar as mudanças qualitativas que podem se operar a qualquer momento! A situação é complexa, há outros fatores não citados no texto e sem grandes pretensões devemos fomentar o debate e identificar as possibilidades de uma saída independente da classe trabalhadora, os interesses imperialistas e o porquê do levante contra o regime bonapartista.

REFERÊNCIAS

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https://belhelcom.org/en

http://www.house.gov.by/ru/ 

 

*Antonio Micaias, estudante, militante do Afronte e da Resistência-PSOL

 

** Este artigo reflete as opiniões do autor e não necessariamente as do portal Esquerda Online. Somos um veículo aberto às polêmicas e debates da esquerda brasileira.

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