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BRASIL

A pandemia tirou a máscara do que já estávamos vivendo: a desigualdade tremenda que existe no Brasil

Relato da enfermeira Mariele, de Campinas (SP), Coletado e transcrito por Amanda Menconi, da Resistência Feminista

Mateus Pereira/GOVBA /Fotos Públicos

Assim que começou a pandemia eu estava de férias. Então comecei a estudar e cheguei cheia de energia, planejando como a gente podia ajudar a reorganizar o trabalho, a questão da educação em saúde, do uso de EPI, para a gente também se cuidar. Eu voltei depois de uns 10 dias da pandemia, para a Urgência e Emergência da UPA. Eu me deparei com uma equipe muito abalada, as pessoas chorando no corredor, dizendo: “eu vou morrer”, porque não está tendo nem EPI pra gente. 

O risco era muito grande, tanto pra gente, quanto para os pacientes, porque a gente tinha que cuidar na emergência de todos os pacientes com aquele mesmo avental. E não é só por conta da COVID, qualquer doença causa esse risco de infecção e contágio. 

A gente tem um preparo da graduação de como usar o EPI, como se proteger. Mas elas, não tinham respaldo nenhum. Por serem terceirizadas, a Unidade entendia que não era responsabilidade dela e a gente não via por parte da empresa terceirizada nenhum preparo ou esclarecimento. Isso era o que me deixava mais enlouquecida: ter que lidar com essa pandemia, com a falta de recurso e você vê claramente essa diferença social, que as pessoas acham que um serviço é melhor que o outro. Iniciamos uma luta pelos EPI´s, chamamos sindicato, fomos atrás do COREN… Demorou bastante para começar a chegar e, quando chegou, começamos a perceber que para o médico era um avental, para a enfermagem era outro e para a higiene não era nada. No meu horário são três mulheres na higiene. As três são negras, uma delas é hipertensa, obesa, com alto risco. E a gente se vê no mesmo espaço, com o mesmo risco, com a mesma importância, e para um se dá o material melhor, para outra se dá um material e para outra, nada. Daí começamos a lutar para liberar EPIs para as trabalhadoras da higiene e foi bem tenso com a coordenação. No dia que eu tive esse embate tiveram que ligar para alguém para “ver se autoriza”.

Em meio a tudo isso começaram a chegar os pacientes respiratórios. Os suspeitos de COVID eram aqueles com alguma alteração respiratória e que necessitavam de oxigênio. Como o risco de contágio aumenta e não temos testes, todos eram encaminhados para a ala de COVID. Isso me preocupava, porque tem pacientes que estavam com falta de ar por outros motivos. É como se a gente estivesse jogando eles na boca do lobo, mas, sem teste, não tinha o que se fazer. No início tentávamos separar por clínica, mas foi chegando muitos casos positivos nesta situação e percebemos que todos estávamos suscetíveis. Tentando proteger estávamos nos expondo e expondo mais os outros pacientes. A testagem é essencial para o cuidado e até para reabertura da economia.

“As pessoas que falam que não existe, nunca viram alguém sentindo fome de ar”.

O que mais me abala e me entristece são os olhares, o olhar de quem está morrendo. Eles estão sempre tão arregalados e com tanto medo. É como se, em fração de segundos, eu estivesse conversando com eles pelo olhar. Eles me pedindo para salvá-los, com medo da partida e pensando em seus amores e eu atada, querendo puxar suas mãos como se tira uma criança da piscina, mas não posso e apenas olho para eles dizendo que vai ficar tudo bem, para irem em paz. Tudo isso sem nenhuma palavra sendo dita. Só os olhos. As pessoas que não estão acreditando, que não estão se cuidando e cuidando de suas famílias, aquelas que estão apoiando esse governo, não sabem o que é isso. É muito difícil. As pessoas que falam que não existe nunca viram alguém sentindo fome de ar. É muito, muito triste.

Acho que não devemos romantizar a profissão, mas quem trabalha ali tem muita empatia, amor pelo próximo e desejo de cuidar. Somos parte de uma luta histórica da enfermagem, que começou com uma mulher e que até hoje, somos maioria mulheres. Muitas têm filhos, famílias… Temos medo de pegar e passar pra família. Eu fiquei mais assustada, com medo, por causa do meu pai que faz tratamento de câncer. Eu preciso cuidar dele, eu que levo ele, eu que cuido. Eu sempre penso que poderia ser meu pai, minha mãe ou eu. 

A enfermagem é uma profissão super importante, que está mais exposta e que está morrendo mais profissionais. A gente está ali arriscando a vida mesmo sendo mal remunerada e não tendo reconhecimento da sociedade. 

Estamos todos numa montanha-russa de sentimentos. Além de tudo isso, temos que lidar com um governo que, com mais de cem mil mortos, fala que “é só uma gripezinha” e que “ele não é coveiro”. Nós fomos pra rua, gritamos EleNão, mas infelizmente ele foi eleito. Aí você vê que não é só com a saúde, olha o que estão fazendo com o meio ambiente e com a educação. A única coisa que me dá mais medo do que trabalhar na saúde no meio de uma pandemia é ver essa ditadura, que eu já estou vendo acontecer.

Não tem como deixar de pensar em política na pandemia, porque é a política que faz as pessoas terem educação, terem recursos para poderem ficar em isolamento de fato, terem saúde e um lugar para serem cuidadas, terem um respirador… e a gente não vê nada disso acontecer. A gente que trabalha na saúde se sente idiota de arriscar a vida com o presidente indo em manifestações pedindo ditadura, com as ruas lotadas de gente dizendo que a pandemia não existe. O governo faz as pessoas terem que pegar ônibus lotado, ficar na fila da Caixa, sem ter emprego, sem ter nem o que comer, impede elas de ficar em isolamento social. 

A pandemia tirou a máscara do que já estávamos vivendo: da desigualdade tremenda que existe no Brasil. O SUS é maravilhoso, tem muita gente boa, mas, infelizmente, o brasileiro está à mercê desse governo.

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Desigualdade / pandemia