Em escala global, vivemos um período de contraofensiva da burguesia sobre a classe trabalhadora e os povos dominados, com requintes neofascistas em diversos países – o Brasil está entre os países em que essa contraofensiva está mais avançada. Mas existe um lugar no mundo que a classe trabalhadora e setores oprimidos estão na ofensiva e construindo uma experiência revolucionária promissora: o povo do Curdistão sírio – Rojava – sob a liderança do PKK e de Abdullah Öcalan.
Contudo, nós, trotskistas brasileiros, ignoramos o processo revolucionário de Rojava. Com raras e salutares exceções, é muito difícil encontrarmos organizações trotskistas brasileiras que possuam elaborações sobre o processo curdo, ou que mesmo os considerem em suas análises sobre a conjuntura mundial. A bem da verdade creio que esta não é uma especificidade brasileira, mas sim do trotskismo mundial; e precisamos entender o porquê disso.
Dentro da esquerda, aqueles que mais dialogam com a experiência curda são os anarquistas, mas até setores do stalinismo buscam dialogar com os revolucionários – sendo que a ruptura do PKK é exatamente com o legado de Stalin no marxismo (como espero demonstrar mais para frente). Mas, enfim, por que os trotskistas brasileiros ainda ignoram a Revolução de Rojava?
A história en passant do povo curdo
Os curdos são considerados a maior nação sem Estado da atualidade, estimativas apontam em aproximadamente 30 milhões de curdos espalhados pelo mundo. Principalmente entre quatro países: Turquia, Síria, Irã e Iraque. Mas países europeus, como a Alemanha, também concentram muito curdos em sua diáspora. Resultado direto do colonialismo europeu sobre o “Oriente Médio”, (1) na partilha dos continentes africanos e asiáticos “faltou” um Estado para a nação curda.
Os povos oprimidos têm dificuldades de estabelecer a história de suas origens, principalmente aqueles alijados do poder de Estado. Exatamente por isso, é difícil delimitar a origem dos curdos. Provavelmente, descendem dos medos que ocupavam a região da Mesopotâmia há milhares de anos. São considerados descendentes de povos iranianos que se concentravam nas regiões montanhosas da Mesopotâmia.
Ao contrário de outros povos da região – talvez exatamente por não existir um Estado que imponha um religião oficial – existe uma elevada pluralidade religiosa. Hoje a maioria dos curdos é de muçulmanos sunitas, mas também há os iazdanitas, judeus e cristãos.
Após a Primeira Guerra Mundial, com o desmembramento do Império Otomano, o Tratado de Sévres (1920) delimitou as fronteiras para um Curdistão autônomo, mas foi rejeitado pelos turcos. Em 1923, com o Tratado de Lausanne, o que deveria ser o Curdistão foi fatiado entres os quatros Estado citados anteriormente: Turquia, Irã, Iraque e Síria. Sendo que, atualmente, a maior parte do povo curdo viva no Estado turco (55%), na região de Diarbaquir (em turco) ou Amed (em curdo). A região de Rojava, chamada de “Curdistão Sírio” concentra menos de 5% da população curda, mas é expoente da maior experiência revolucionária do século XXI.
Contudo, Rojava é uma região multiétnica, contendo povos árabes, assírios e turcomenos, além de comunidades menores de armênios e circassianos. Essa será uma marca importante da Revolução Curda frente o sectarismo político e religioso da região. Contudo, os curdos sofrem com nacionalismo árabe e um processo de “arabização” forçada na região, isto se intensifica com a chegada do Partido Baath Sírio ao poder em 1963 – principalmente com a ascensão de Bashar al-Assad em 2000, sucedendo seu pai, Hafez al-Assad.
A Primavera Árabe e a Revolução Curda
O governo de Bashar al-Assad sofreu com os ventos da Primavera Árabe, instaurando uma situação de guerra civil extremamente violenta e repercutindo em Rojava, permitindo a abertura do processo revolucionário curdo. A resposta do regime de Assad aos protestos populares que tomaram conta da Síria desde 2011 foi uma repressão altamente violenta, encarniçando para um conflito armado.
Em um primeiro momento esse conflito bélico concentrou-se entre as forças rebeldes do povo sírio, principalmente, representados no Exército Livre da Síria, e as Forças Armadas da República Síria, que se mantiveram majoritariamente leais ao regime de Bashar al-Assad. Mas com o aprofundamento dele e da crise total que assolava a população do Estado Sírio, duas forças antagônicas entraram em cena a partir do vácuo político e administrativo pela falência do Estado Sírio: o Estado Islâmico (Da’ish) e Forças Democráticas Sírias (FDS) – exército popular que as forças curdas (YPG e YPJ (2) ) compõem.
Enquanto, o Da’ish defende a formação de um califado (3) fundamentalista sob a liderança de Abu Bakr al-Baghdadi, as FDS busca promover a democratização das diversas etnias que convivem na Síria e arredores e pacificação dos conflitos sectários que tanto marcam a região. Interessante notar as movimentações militares das forças: em um primeiro momento o Da’ish luta ao lado das forças rebeldes contra o regime de Assad, mas logo em seguida, passam a atacar os dois lados. FDS mantiveram-se em aliança com os rebeldes sírios, mesmo com o apoio da Turquia – Estado opressor da maior parte da população curda.
Breve histórico do PKK
Todas as movimentações das FDS e, principalmente, das YPG e YPJ decorrem de uma forte influência do PKK (Partido dos Trabalhadores Curdos ou Parti Karkerani Kurdistan) e esta é a principal força da Revolução de Rojava. No início da década 1970, um agrupamento de estudantes liderados por Abdullah Öcalan inicia o processo de formação de um partido comunista curdo, mas é somente em 1978 que o PKK é formado sobre a influência e tutela do stalinismo de Moscou. O partido busca conciliar o nacionalismo curdo, a resistência à opressão do Estado turco e ao capitalismo de modo geral.
O PKK surge no sudoeste turco, na região – já citada – de Amed, contudo, já na década de 1980 é considerada uma organização terrorista pelo Estado turco, e, por isso, desloca sua principal atuação para o Curdistão sírio, Rojava. Com pequenos períodos de cessar-fogo, o PKK está em conflito armado permanente com a Turquia desde 1984. Em 1999, seu principal líder, Öcalan, é preso pelo Estado turco e talvez este seja o elemento mais importante para a ruptura epistemológica promovida pelo PKK.
Öcalan é uma liderança incontestável do movimento curdo, transcendendo o PKK e mesmo Rojava, atingindo os curdos sob domínio de outros Estados. São extremamente comuns descrições de casas e locais públicos com fotos de Öcalan por todo o Curdistão histórico. (4) Quando ele é preso em 1999, passa a dedicar-se a uma profunda revisão e elaboração teórica; o que leva a conformação de uma nova teoria revolucionária, o Confederalismo Democrático – ideologia predominante nos revolucionários de Rojava.
As mais diversas análises, principalmente, as anarquistas, colocam que essa ruptura epistemológica é uma ruptura com o marxismo-leninismo. Mas se formos analisar a fundo as ideias do Confederalismo Democrático, percebemos que é uma ruptura com a deturpação stalinista do marxismo-leninismo. Como abordaremos a seguir, os princípios dessa nova teoria política em nada se opõem às ideias de Marx, Lênin e Trotski; por isso, é fundamental que os trotskistas se debrucem sobre o estudo do processo revolucionário curdo.
Antes é preciso nos aprofundarmos sobre a conformação do PKK em Rojava. Como já dito anteriormente, a Guerra Civil Síria abriu um vácuo administrativo e político em Rojava, onde desenvolveu uma região autônoma organizada pelo PKK sob a égide do Confederalismo Democrático. Contudo, obviamente, a realidade é muito mais dura que a beleza das ideias e para garantir sua independência política, administrativa e econômica, os curdos tiveram que se organizar militarmente, por isso, existem o YPJ (Unidades de Defesa das Mulheres, em curdo Yekîneyên Parastina Jin) e o YPG (Unidades de Proteção Popular, em curdo Yekîneyên Parastina Gel).
Primeiramente, cabe ressaltar o interessante fato de existir um exército completa e especificamente de mulheres – o que as colocam em pé de igualdade na importância para a resistência curda, ao mesmo tempo em que as permite disputar internamente em igualdade também. Mas a grande marca das duas forças armadas, YPJ e YPG, são a ausência da rigidez autoritária característica dos exércitos tradicionais. Todos os postos destas unidades são elegíveis e revogáveis, assim, como todas as ações são democraticamente decididas – óbvio, sob os limites de uma situação real de guerra. Também não se encontram mercenários dentre essas tropas – algo comum entre todas as forças armadas da região.
Os curdos combatem em uma situação de desigualdade catastróficas com seus adversários. Enquanto, as YPJ e YPG possuem apenas AK-47 residuais da Guerra Fria e carros e caminhões transformados em carros de guerra, o Estado Islâmico e o Estado Síria utilizam armas de guerras de ponta de linha – os primeiros roubam dos exércitos dos EUA e do Iraque, e o regime Assad recebe armamento da Rússia.
É somente o convencimento político alimentado pela democracia interna que permite que as forças curdas sejam as principais responsáveis por derrotar o Estado Islâmico e impedir a conformação do seu califado. Com o esfacelamento dos estados sírios e iraquianos, o Da’ish avançava a passos largos para seu objetivo. Mas os curdos em Rojava, através das YPJ e YPG, e dos Peshmerga (5) do Curdistão iraquiano, infringiram contínuas derrotas contra Da’ish, que hoje possuem seus territórios altamente reduzidos.
Vale frisar, o Estado Islâmico é o que há de pior em todo mundo – até que o Bolsonaro, sua existência atenta contra todos os princípios de humanidade que possamos imaginar. Mas seu crescimento se deu a partir da displicência criminosa das potencias militares e econômicas do mundo: EUA, Rússia e União Europeia. Contudo, quem foi responsável por derrotar o Da’ish foram os curdos com velhas e precárias armas, com pouca ou nenhuma ajuda internacional. Por exemplo, em 2019, Trump retirou a pequena ajuda financeira que dava aos curdos sírios. (6)
Os princípios do Confederalismo democrático
Anticapitalismo
Surgido a partir da influência dos processos de descolonização em todo “terceiro mundo”, o PKK nunca distinguiu a libertação nacional com a libertação do capitalismo como um todo. Portanto, o PKK nunca foi um partido nacionalista “comum”, ou poderíamos dizer, burguês, isto é, preocupado unicamente com a independência na forma de um Estado curdo. Compreendia-se a necessidade da libertação nacional atrelada a libertação da classe trabalhadora e todos os setores oprimidos.
Portanto, mesmo com a ruptura epistemológica promovida por Öcalan no início do século XXI, o PKK já tinha como um dos seus princípios o anticapitalismo. E este princípio é construído na prática cotidiana de Rojava, com ações que não tem o capital como força motriz. A base de toda a produção econômica curda são as comunas, auto-organizadas, nas quais as cooperativas produzem o essencial para a vida. Busca-se que o máximo da satisfação material e alimentar das pessoas seja saciada em escala local – evitando o consumo e poluição com os combustíveis fosseis do deslocamento.
Os revolucionários de Rojava definem seu modelo econômico como “economia social”: “a ciência que busca assegurar as necessidades da comunidade longe do monopólio dos meios de produção” (YOUSEF, Dr. Ahamd, 2014). Baseada em valores éticos de liberdade e justiça social. Consideram que “modelo econômico de Rojava” é uma resposta ao neoliberalismo da modernidade capitalista e uma crítica ao capitalismo de Estado caracteriza o socialismo real” (FERRAZ, P. p.131). Nada mais necessário e trotskista.
Em decorrência da opressão do Estado sírio e da Guerra Civil prolongada a região, a economia de Rojava concentra-se na produção de grãos e extração de petróleo. Boa parte da renda da região autônoma decorre da venda de petróleo para a própria população e países vizinhos, além de taxas alfandegárias cobradas do Iraque. Mas, infelizmente, 70% dessa renda são destinadas aos gastos de guerra, e o restante para garantia de acesso gratuito à educação e saúde pela população.
A produção dos itens essenciais é majoritariamente feita nas comunas através de cooperativas, obedecendo a critérios rígidos de justiça social e ecologia – que também é um princípio do Confederalismo Democrático. Foi estabelecida a “propriedade de uso” sobre os bens materiais, ou seja, se aquele casa, terra ou meio de produção está sendo utilizando adequadamente, aquela pessoa ou grupo mantem a outorga do direito de uso dessas propriedades.
Isto decorre de dois elementos autóctones de Rojava: as terras curdas foram expropriadas pelo Estado sírio, com a falência deste na região, elas voltaram a serem posses comunais; além disso, a burguesia curda (pequena em termos demográficos) já não vivia em Rojava, mas sim em Damasco por serem aliadas do regime de Assad. Assim, a população de Rojava é majoritariamente de trabalhadores e camponeses, em condições generalizadas de extrema pobreza. Mesmo assim, houve casos de expropriação das propriedades da burguesia curda em posse das comunas – ainda que haja casos de pequenos negócios particulares em Rojava.
Feminismo
O segundo princípio fundante do Confederalismo Democrático é o feminismo, já que para Öcalan o patriarcado e estatismo são as bases de sustentação do capitalismo – uma “atualização à brasileira” necessária seria colocar o racismo nesse tripé. Inclusive, Öcalan propõe uma nova epistemologia, baseado no feminino: jineologia (do curdo jîn, “mulher”); ou seja, todo o enfrentamento a racionalidade iluminista-masculina-capitalista se daria a partir da conformação de uma nova racionalidade baseada na mulher.
Essa jineologia seria pautada em uma mudança paradigmática na economia. Enquanto para o capitalismo, o homem é a figura central da economia, nesta perspectiva percebe-se que a mulher é a principal agente da economia, em todos os âmbitos. A partir disso, existem diversas políticas de empoderamento econômico das mulheres, através da criação de comunas (voltadas, principalmente, por mulheres que sofreram violências de gênero) e cooperativas produtivas exclusivamente femininas.
Além da existência das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), a estrutura política de Rojava também é moldada através da paridade de gênero, através das cotas de gênero de 40% em todas as estruturas e organizações decisórias. Também chama atenção os mecanismos de coliderança, ou seja, a paridade de gênero também vale para os postos de comandos – sendo obrigatória a presença de um homem e uma mulher.
Mais do que a simples divisão dos postos de lideranças, Rojava estabelece um mecanismo interessante de combate ao machismo – que pode ser uma lição para a maioria das organizações brasileiras. Em todas assembleias e demais espaços deliberativos, as mulheres tem um tempo especial para expor sobre as questões de gênero. Contudo, nos debates “ordinários” e gerais os tempos de abertura e fechamento também são divididos entre homens e mulheres. Ou seja, no fim, as mulheres falam duas vezes e não só nos assuntos de mulheres. Como muitas vezes vemos acontecer em organizações e entidades no Brasil: mulheres falando somente sobre o combate ao machismo – o mesmo acontece com outras minorias políticas: negros, LGBT’s, indígenas – e os homens brancos falando “do que importa”.
Ainda sobre a coliderança em Rojava, tem um aspecto interessante: enquanto a vaga masculina é escolhida por voto de todos os membros da comuna ou organização, nas vagas femininas votam apenas as mulheres. Ou seja, no fim, as mulheres votam duas vezes e os homens apenas uma.
Para solução de conflitos internos as comunas e cantões de Rojava possuem os “Comitês de Paz e Consenso”. Já para a solução de conflitos de gênero, existem os “Conselhos de Mulheres” – composto exclusivamente por mulheres. Ao contrário da maior parte da justiça ocidental e burguesa, o Confederalismo Democrático não se baseia numa ideia punitivista, mas sim restaurativa. Assim, aqueles os conflitos resolvidos nos Comitês de Paz e Consenso e Conselhos de Mulheres não prescrevem penas aos “condenados”, mas sim medidas educativas. Portanto, no caso de um agressor machista a “pena” seria cursos intensivos de feminismos, visando demonstrar como aquilo afeta toda a sociedade.
Ecossocialismo
Outro princípio fundacional em Rojava é o ecossocialismo, em negação ao desenvolvimento sustentável capitalista, os revolucionários curdos qualificam seu pensamento ecológico como socialista. Mais do que um princípio, o ecossocialismo é uma necessidade para os curdos, a região do chamado “Oriente Médio” é uma das mais afetadas pelo racismo ecológico – prática que vitimiza as minorias étnicas com os efeitos do desenvolvimento capitalista desenfreado.
A partir das contribuições, principalmente, de Michael Löwy, hoje dentro do trotskismo já há um consenso teórico estabelecido da necessidade de que o socialismo vindouro seja também ecológico. As experiências do socialismo “real” demonstraram que não basta a revolução socialista sem uma nova matriz econômica e energética – como a desertificação do Mar de Aral confirma. (7) Falta ao trotskismo e à esquerda de maneira geral tornar esse consenso teórico em prática.
Em Rojava, esse ecossocialismo tomou corpo prático: primeiramente, a economia é subordinada às questões ambientais, assim não se produz nada que possa afetar negativamente o meio ambiente; incentiva-se a produção e consumo local, reduzindo-se drasticamente a emissão de gases provenientes da queima de combustíveis fósseis; as comunas estão realizando viveiros e reflorestamentos com plantas nativas; e, por fim, adota-se a agroecologia como mecanismo de produção dos produtos naturais.
Internacionalismo
Outro princípio dos revolucionários curdos, muito caro ao trotskismo, é o internacionalismo. Uma revolução que nasce frontalmente contra a ideia e o fato do Estado-nação já é internacionalista em sua essência. Mas a experiência de Rojava vai, além disso, e gostaria de demonstrar através de apenas dois exemplos:
- Existe uma comuna internacionalista dentro de Rojava e as forças armadas curdas contam com tropas formadas completamente por apoiadores da causa curda de todas as partes do mundo. Esses apoiadores recebem todos os direitos e deveres como um curdo.
- Os países que cercam Rojava são marcados por diversas diásporas resultantes das guerras locais e, principalmente, fugindo do Estado Islâmico. Rojava recebe todos os refugiados sem qualquer empecilho – aceitando a todos, independente de etnias, religião e mesmo aqueles que não defendem o Confederalismo Democrático. Todos os refugiados ganham os mesmos direitos e deveres de todos os curdos.
Antiestatismo
Propositalmente, deixei para expor como último princípio do Confederalismo Democrático o antiestatismo, provavelmente, o mais polêmico entre os trotskistas. Antes gostaria de lembrar algo importante mas que me parece esquecido: os comunistas também são antiestatistas.
Contudo, há uma diferença importante do marxismo e do anarquismo que remonta a I Internacional: enquanto os anarquistas acreditam que é necessário e possível a abolição total e imediata do Estado para emancipação da humanidade, nós percebemos que a força do Estado é necessária para garantir a revolução socialista em plano internacional, mas também, promover as transformações em esfera local. Segundo Marx e Lênin, esse Estado deveria continuamente perder sua necessidade e perecer, deixando de existir em uma sociedade comunista.
Acontece que em Rojava esse Estado já não existe, melhor dizendo os curdos de todos os países vivem em “clarões” que os Estados-nação já não consegue chegar. Por que os revolucionários deveriam reconstruí-lo se nosso objetivo é a destruição?
Poderia-se responder a essa questão a partir da necessidade de uma força para garantir a continuidade da revolução. Contudo, essa força já existe e já tratamos aqui: YPJ e YPG; com a diferença que essas forças são auto organizadas e abolem as estruturas hierárquicas dos exércitos tradicionais. Além disso, outras funções normalmente atribuídas ao Estado, como a justiça e serviços públicos, já são supridas pelos conselhos e comitês; com a diferença que esses têm paridade de gênero e participação de todos. Neste momento vale uma palavra sobre a democracia direita curda.
Estrutura mínima de Rojava é a comuna – que podem ser por rua, vizinhança, vilas, etc. De forma federativa as comunas formam os distritos ou comunidades de vilas rurais, daí têm-se as cidades e os cantões. Cada uma dessas quatro estruturas possuem “Conselhos Populares” que devem debater sobre questões e demandas locais, como opinar sobre questões de toda Rojava. Algumas características desses Conselhos são importantes:
- Cota mínima de participação de gênero de 40% (caso haja mais 60% de um gênero em uma assembleia ou reunião, será retirado para manter-se o equilíbrio);
- Todas as minorias sociais presentes na comuna tem representação mínima de 10% nos conselhos (o que gera distorções, afinal algumas não atingem nem 10% da população local);
- Evita-se ao máximo a votação, buscando-se estabelecimento de consensos, recorrendo a continuidade das discussões para avançar-se nos consensos;
- As estruturas superiores não podem impor as comunas decisões a serem obedecidas – cada comuna é soberana em suas ações. (8)
- As estruturas superiores são compostas por delegados eleitos nas comunas, com paridade de gênero, com mandatos e que devem transmitir as decisões das comunas.
Se observarmos obras que recontam a Revolução Russa, como o próprio Trotski em “História da Revolução Russa” e Pierre Broué em “Partido Bolchevique”, perceberemos que a estrutura dos sovietes russa é muito semelhante a dos Conselhos Populares de Rojava. Na verdade, há diferenças, a experiência curda é mais democrática que a russa: através da paridade de gênero, da garantia da expressão das minorias sociais e da busca pelos consensos – e não a imposição pelo voto da maioria. Portanto, porque não podemos adotar a experiência curda como um exemplo?
Portanto, Rojava é o lugar onde os Estados-nação não chegavam, e os curdos são o povo que conseguiram organizar-se democraticamente e visando a paz sem a recriação desse Estado, através de estruturas de democrática direita paritária e inclusivas. Por fim, abordamos os cinco princípios norteadores dos revolucionários de Rojava: anticapitalismo, feminismo, ecossocialismo, internacionalismo e antiestatismo, comparando-os com uma perspectiva trotskista, podemos agora chegar ao cerne da questão: o que nos diferencia dos revolucionários curdos?
O que nos diferencia?
Parece-me que existem três motivos desse distanciamento entre o trotskismo e Rojava: a) o que chamo carinhosamente de “os fantasmas de Kronstadt”; b) uma suposta oposição ao centralismo democrático pelo Confederalismo Democrático; e, por fim, c) o predomínio de uma visão eurocêntrica sobre a história. Abordarei cada um deles.
Como já foi dito, hoje a corrente da esquerda mundial que mais se aproxima e apoia os revolucionários de Rojava são anarquistas, essa aproximação também se dá pelo lado do Confederalismo Democrático. Ao formular sua teoria Abdullah Öcalan recorreu a inspiração de teóricos anarquistas, como Murray Bookchin. Contudo, como espero demonstrar nesse artigo, os trotskistas também podem se aproximar da experiência curda.
Em 1921 no final da Guerra Civil russa para garantir a vitória dos bolcheviques, Trotski era Comissário da Guerra e responsável pela organização do Exército Vermelho. Na base naval de Kronstadt surge uma rebelião de militares de inspiração anarquista e são duramente reprimidos pelo governo soviético. Trotski como comandante do Exército Vermelho parece ser o maior responsabilizado por essa repressão.
Não entraremos no mérito de um possível balanço sobre a Revolta de Kronstadt, se Trotski e governo de Moscou estavam certos, ou se de fato já havia sinais da degeneração autoritária do Partido Bolchevique que resultaria no stalinismo, e, por isso, estavam certos os anarquistas. Quase 100 anos depois, o que nos importa aqui é que há mais proximidades entre o trotskismo e os anarquistas do que essas duas forças com os stalinistas. Por isso, é um absurdo que deixemos os herdeiros de Stalin no Brasil estabelecer o diálogo com os Revolucionários de Rojava.
Tanto trotskistas quanto anarquistas precisam deixar os “fantasmas de Kronstadt” de lado e perceber que muito nos aproximam, com a grandeza que continuarão existindo diferenças e, por isso, é preciso a prevalência da democracia para solução dessas diferenças. As duas forças teóricas e militantes construíram-se historicamente na defesa de liberdade e da democracia, não tem porque negar-se a isso.
Ademais, ainda que o Confederalismo Democrático de Öcalan tenha inspiração anarquista, na pratica cotidiana parece-me a organização políticas de Conselhos Populares tem muito mais a ver com democracia dos sovietes que diversas outras experiências populares apoiadas pelos trotskistas nas últimas décadas.
Disto decorre um segundo equívoco que parece nos afastar da experiência curda: a falsa oposição entre Confederalismo Democrático e Centralismo Democrático. Primeiramente, é preciso compreender que o primeiro diz sobre prática política geral e o segundo sobre regime de organização de um partido político – ainda que dialoguem são âmbitos diferentes. Segundo, o centralismo de Lênin e Trotski é tão democrático quanto o Confederalismo de Öcalan; em ambos, há amplos espaços de debates e garantias para as minorias. Por último, ruptura de Öcalan é com o stalinismo, corrente política-ideológica que seu partido, o PKK, propagava até a ruptura epistemológica de 1999.
O stalinismo deforma o centralismo de Lênin para centralismo burocrático, ou seja, pouco importa as opiniões e decisões das bases, a vontade do líder “iluminado” pela patente outorgada pelo partido prevalece sobre a maioria. Desgraçadamente, isso se espalha por toda a esquerda atualmente, inclusive para as correntes trotskistas, e, portanto, a crítica do atual PKK é válida. Mas a vida de Trotski foi dedicada a defesa da democracia interna ao Partido Bolchevique russo e toda a Internacional Comunista.
Contudo, há diferenças entre o Centralismo Democrático e o Confederalismo Democrático. A principal parece ser um “veto” da minoria na teoria de Öcalan. Como abordado anteriormente, as instâncias decisórias superiores (como os Conselhos Populares distritais e por cidade) não podem impor decisões as instâncias inferiores. (9) Ou seja, uma comuna é soberana em suas decisões – ainda que as decisões superiores sejam levadas em consideração. Isso não ocorre no Centralismo Democrático ou mesmo no regime dos sovietes em funcionamento “saudável”.
É possível perceber elementos mais democráticos nas duas perspectivas, parece que é preciso analisar a conjuntura do momento para saber o que é mais democrático para o estado das consciências coletivas. Em uma situação como a nossa, onde a lógica individualista prevalece e o fascismo avança em todo o mundo, parece que a perspectiva do Confederalismo Democrático é a mais democrática. Com o avançar do processo revolucionário e a mudança para uma lógica mais coletivista, parece que a perspectiva dos sovietes revolucionários é mais adequada.
Ao falar de “lógicas”, estamos falando de perspectivas epistemológicas e aí me parece estar o centro da questão: o trotskismo, como todo o marxismo, é eurocêntrico. Mesmo a importante corrente latino-americana do trotskismo opera sobre uma visão centrada na história branca e europeia. E é urgente que abandonemos isso.
Quando dizemos que é uma visão eurocêntrica não estamos dizendo que o trotskismo e o marxismo de maneira geral operam em uma lógica racista e imperialista como outros pensamentos centrados na Europa. Mas devido a sua origem, formação e consolidação se dar na Europa, os autores escrevem a partir de uma visão e lógica euro centrada; como se todos os povos do mundo fossem seguir o desenvolvimento histórico dos povos europeus.
Sobre os revolucionários marxistas, o euro centrismo promove a ilusão de que todas as revoluções serão iguais a Russa, contudo, isto é antimarxista. Inclusive, o próprio Lênin já havia “corrigido” Marx sobre seu próprio euro centrismo (10) , quando o alemão afirmava que a revolução proletária deveria acontecer antes na Alemanha, e o revolucionário russo percebeu a tendência de a revolução acontecer nos elos mais fracos do capitalismo, ou seja, nos países periféricos. Assim, se confirmou na Rússia, China, Cuba, Vietnã, etc.
Além da revolução não ter acontecido nos países centrais como esperava Marx, as demais revoluções não obedeceram ao “modelo” russo e, mesmo assim, foram socialistas (11) e tiveram expropriação da burguesia. Sendo assim, porque esperamos que no século XXI uma nação oprimida e sem Estado deve seguir este “modelo”?
A História e nossas referências teóricas, como Marx, Lênin e Trotski, devem nos ensinar lições, as quais devemos interpretá-las e buscar ajuda para interpretar a conjuntura atual. E não servir como manuais que buscamos aplicá-las em nossas realidades para promover a revolução socialista, de novo, isto é antimarxismo. (12)
Os revolucionários de todo o mundo devem apoiar a Revolução de Rojava
A partir de tudo que abordamos nesse texto, só é possível chegarmos à seguinte conclusão: a Revolução de Rojava é o processo revolucionário mais avançado do mundo hoje. Há uma teoria e uma prática essencialmente anticapitalista, atacando as principais bases de sustentação do sistema burguês. Contudo, temos que ter claro: é experiência muito sui generis. As condições colocadas aos curdos são a tempestade perfeita da falência do Estado e do sistema burguês, permitindo aos revolucionários a “escolha” entre reconstruir o regime capitalista e construir um novo modo de vida mais inclusivo e democrático, e buscando garantir a paz na região.
Obviamente, é uma experiência em andamento, ainda não se completou nem uma década de existência. Não só o perigo da degeneração ou capitulação ronda a revolução, mas ela é constantemente ameaçada pelos avanços militares do Estado Islâmico ou dos Estados burgueses regulares, como Síria e Turquia. Por isso, apesar das incertezas que cercam a Revolução de Rojava, existem motivos mais do que suficientes para que os trotskistas defendam, apoiem e prestem solidariedade ativas aos revolucionários curdos.
Comentários