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Série Revolução Espanhola: como Stálin e a Frente Popular abriram portas da Espanha ao fascismo – Parte 3

Da restauração burguesa à vitória fascista

Por Bruno Rodrigues, da redação
Fotografia histórica. Em Madrid, uma faixa estendida entre dois prédios, com a frase !No Pasaran! (Não passarão)
Domínio Público

Leia os artigos anteriores desta série:

Parte 1 – Dos antecedentes ao surgimento da Frente Popular
Parte 2 – Da ofensiva fascista de julho de 1936 à revolução espanhola

A Frente Popular restaura o estado burguês nas zonas republicanas

Propaganda da Frente Popular convocando as milícias a se juntarem em um exército regular subordinado ao governo

Passados alguns meses desse terremoto revolucionário de julho, a poeira já estava um pouco mais baixa e a Frente Popular, que praticamente havia virado fumaça, colocou-se na tarefa de retomar as rédeas da situação. Em outubro de 36 foi decretada a ilegalidade das coletivizações, a requisição de todas as armas e revólveres nas mãos dos operários, a reconstrução da polícia, a dissolução das milícias e a sua incorporação ao interior dos ministérios. Tais medidas gozaram da anuência dos próprios ministros da CNT, do POUM e dos stalinistas. Para garanti-las o decreto (apud Morrow, 1963) foi taxativo: “A resistência a essa dissolução será considerada com um ato fascista e seus incentivadores serão entregues aos Tribunais de Justiça Popular. ” Como não poderia deixar de ser, tais medidas também incidiram sobre as milhares de mulheres alistadas nas milícias, que ficaram proibidas de pegar em armas. A elas, que vinham cumprindo papéis de primeira linha na administração das empresas coletivas e nas barricadas, foram novamente reservadas as tarefas de reprodução social: enfermaria, ensino, cozinha, etc.

Na sequência foi lançado um decreto militar, através do qual o governo conseguiu recrutar 10.000 voluntários sob seu controle direto. Estavam sendo dados aí os primeiros passos para restaurar o estado burguês nas zonas republicanas e, assim, frear o processo revolucionário que vinha se desenvolvendo. Para endossar tais medidas, a imprensa stalinista local (apud Morrow, 1963) proclamou: “Não. Nada de milícias dirigidas por partidos e organizações. Nem nada de milícias de partidos ou sindicatos. São milícias que têm sua base fundamental na Frente Popular, leais à política da Frente Popular. ” e ainda “Tudo pela Frente Popular e tudo através da Frente Popular!”.

No plano econômico, o gabinete da Frente Popular, ao não ter sido destituído para dar lugar a um governo revolucionário apoiado nos comitês populares, operou uma série de manobras fiscais com o objetivo de desmantelar todas as coletivizações impostas pela revolução. O próprio Josep Tarradellas, presidente da Generalitat e conselheiro de finanças naquele momento, anos mais tarde explicou como funcionava a manobra:

[…], ante a negativa da CNT de dar facilidade a esse controle da Generalitat, dei ordem a todos os bancos para que não pagassem nenhum cheque e nem fizessem nenhuma entrega às fábricas coletivizadas sem a permissão da chancelaria da Generalitat. Então, os operários ficavam em uma situação difícil. Quando acabavam as reservas em dinheiro e iam ao banco, diziam que ‘não’ e que precisavam de uma permissão especial da Generalitat. A Generalitat dizia ‘não’, porque essa coletividade não está controlada pela gente. [4]

Ou seja, a sabotagem consistia em asfixiar economicamente as empresas coletivizadas, que logo se viam sem meios para pagar os trabalhadores, adquirir matérias primas, pagar a manutenção das máquinas etc. Com os recursos entesourados nos bancos republicanos, que permaneciam sob seu controle, foi possível reconstruir a polícia e o exército regular, leais ao governo.

No campo, a política da Frente Popular teve consequências graves e, talvez, decisivas, porque os camponeses que representam a grande massa de trabalhadores do país, foram caindo na indiferença e no desânimo, na medida em que foram reprimidas suas iniciativas de tomada de terras, sob a justificativa de combater os “excessos” e os “incontroláveis”.

Coroando toda a situação favorável à reestabilização da Frente Popular, em setembro de 1936 a CNT e o POUM entraram formalmente no governo Catalão, que se viu agora renovado perante as massas.

A esse respeito, M. Casanova assim observa:

A consigna central do Partido Comunista Espanhol e seu braço catalão era: ‘Todo o poder ao governo! A isso, os comunistas acrescentavam ‘Mais pão e menos comitês !’ Os stalinistas responsabilizavam os comitês, ou seja, a revolução, por todas as dificuldades administrativas, falta de organização e a desordem no abastecimento. No entanto, a supressão dos comitês pelo partido de Comorera não só aumentou as dificuldades. Comitês foram destruídos, mas havia ainda menos o pão (1939, p. 28).

A revolução em perigo

Em novembro de 1936, Franco tentou novamente cercar Madrid trazendo quatro colunas de distintos pontos do país. Os chefes da Frente Popular, vacilantes como sempre, convocaram a população civil a abandonar a cidade e resolveram transferir a sede do gabinete para Valência. Mas a população madrilenha, levando até às últimas consequências a consigna antifascista “No pasarán!”, contrariou mais uma vez a covardia do governo e rechaçou o ataque, apesar da intensa carga dos bombardeios aéreos enviados por Hitler. Madrid ainda resistiu como o último bastião antifascista até princípios de abril de 1939.

Sobre esses acontecimentos, Trotsky foi taxativo:

O fato de que a guerra se prolonga é consequência do programa conservador burguês da Frente Popular, ou seja, da burocracia stalinista. Quanto mais tempo durar a influência da política da Frente Popular no país e na revolução, maior será o perigo de que as massas acabem se exaurindo e se desmoralizando, e que o fascismo consiga a vitória militar.
A responsabilidade por essa situação recai diretamente sobre os stalinistas, os socialistas e os anarquistas ou, mais precisamente sobre seus dirigentes, que subordinaram a revolução aos interesses da burguesia […] (2014, 191).
Cônsul soviético Antonov-Ovseenko (de óculos) sendo recebido pelo chefe da Frente Popular na Catalunha, Lluís Companys (de punho erguido)

Para dar prosseguimento ao processo de desmobilização da revolução, a Frente Popular aceitou expulsar do governo catalão Andreu Nin, dirigente do POUM, em dezembro de 1936. Essa decisão se deu por orientação do emissário de Stalin na Espanha, Antonov-Ovseenko [5]. Sobre Nin, um veterano e reconhecido militante do movimento comunista mundial, foram lançadas uma série de calúnias, como a de que era espião a serviço da Gestapo, um ataque grosseiro e sem o menor fundamento. Para reforçar essa onda de perseguições a setores da Frente Popular, a propaganda stalinista na URSS publicava no jornal soviético Pravda: “Na Catalunha a eliminação de trotskistas e anarco-sindicalistas já começou: e isto será realizado com a mesma energia que na URSS” (apud Broué, 1973, p. 86). Na verdade, o que o stalinismo buscava com essa campanha demagógica e caluniosa sobre setores da esquerda era preparar o caminho para repressão interna no campo republicano logo em seguida.

Maio de 1937: uma nova esperança e o último alerta de Trotsky

A série de medidas reacionárias que a Frente popular tomou nas zonas republicanas foi recebida com desconfiança pelos operários que, no entanto, foram encorajados pelas suas lideranças a aceitá-las passivamente. Tais medidas culminaram na proibição dos atos de celebração do 1° de maio. A essa altura, os stalinistas resolveram lançar uma provocação: assaltar o prédio da central telefônica catalã, o símbolo da revolução em Barcelona, que estava sob controle da CNT. A operação comandada pelo dirigente stalinista e comissário de ordem pública da Frente Popular, Joan Comorera, foi como uma faísca lançada em um barril de pólvora. Ressoou novamente o alarme em toda a Espanha e explodiram as jornadas de maio de 1937. Nas palavras de Grandizo Munis (2006, p. 332), veterano do comunismo espanhol e partidário da IV Internacional:

Barcelona foi coberta de barricadas com uma rapidez extraordinária, como se elas estivessem escondidas debaixo do asfalto desde 19 de julho e um mecanismo secreto as tivesse colocado de volta na superfície. A cidade caiu rapidamente em poder dos rebeldes, salvo um pequeno setor do centro. Resposta unânime do proletariado, ação vertiginosa e apaixonada. A provocação stalinista se convertia em mais um triunfo do proletariado, assim como a provocação dos militares em julho do ano anterior tinha se convertido em um grande triunfo revolucionário. O domínio do proletariado não deixava a menor dúvida nem para os inimigos da revolução. Nos bairros operários, as forças governamentais se rendiam sem resistência ou se aproximavam das praças entregando suas armas aos homens das barricadas. Inclusive no centro, postos de guardas civis e policiais se declararam prudentemente neutros. Mesmo o Hotel Colón, toca central dos stalinistas, chegou a levantar a bandeira da neutralidade.

Esse novo levante foi animado por setores de base do POUM, agora expulso do governo, por anarquistas de base que haviam rompido pela esquerda com a CNT, como as Juventudes Libertárias e o grupo Amigos de Durruti, e pelos partidários da IV Internacional. O programa que defenderam buscou jogar ainda mais gasolina sobre o incêndio: greve geral até a renúncia do governo reacionário, socialização da economia, desarmamento da guarda-civil republicana, dissolução dos partidos que se colocaram contra a insurreição operária e a constituição de uma junta revolucionária para tomar o poder. Milhares de operários de Huesca se solidarizam com o novo levante enviando uma coluna de 5.000 milicianos para marchar sobre Barcelona.

Diante dessa nova oportunidade, Trotsky (2014, p. 93) vinha esgrimindo uma aguda crítica não só às traições da Frente Popular, mas também aos vacilantes chefes do POUM e da CNT:

É necessário mobilizar aberta e audazmente as massas contra o governo da Frente Popular. Há que desmascarar diante dos operários anarquistas e sindicalistas a traição destes senhores, […]. É preciso fustigar Stalin como o pior agente da burguesia. É preciso sentir-se como dirigentes da massa revolucionária, e não conselheiros do governo burguês.

Contudo, no dia 4, os ministros anarquistas Garcia Oliver e Federica Montseny lançaram um balde de água fria sobre os operários catalães ao emitirem pela rádio local um apelo para que suspendessem as barricadas e entregassem as armas ao controle do governo: “Devemos pôr um fim imediato a esta luta fratricida”, declararam (apud Durgan, 1981). Enquanto os ministros anarquistas da Frente Popular faziam discursos para persuadir os operários a dispersarem a mobilização, a polícia republicana abria fogo sobre os rebeldes nos bairros de Barcelona apoiada em veículos militares fornecidos por Stálin. Na sequência, a Frente Popular despachou 5000 soldados da Guarda Nacional para ocupar a Catalunha e impedir a chegada da coluna operária de Huesca. Depois de violentos conflitos entre operários poumistas e anarquistas contra militares stalinistas leais às Frente Popular, cujo saldo foi de 500 mortos, finalmente a central telefônica catalã foi desalojada e reincorporada ao governo, selando assim a derrota das jornadas de maio de 37.

Andreu NinEm fins de maio, o POUM, que havia sido parte do governo, foi novamente acusado pelos stalinistas de cumplicidade com os fascistas. Como consequência, o jornal La batalla e o quartel Lênin, ambos até então sob seu controle, foram fechados. As greves sofreram dura restrição e só puderam ser realizados com a autorização dos chefes da polícia. O grupo Amigos de Durruti e demais anarquistas críticos à Frente Popular também sofreram perseguição.  Segundo afirma o historiador britânico Andy Durgan (1989) e autor de alguns dos principais trabalhos sobre a guerra civil espanhola, “De fato, no final de 1937, havia quase tantos anarquistas na prisão quanto depois de outubro de 1934. ” Quanto ao POUM, em meados de junho o seu principal dirigente, Andreu Nin (foto), foi sequestrado e torturado até à morte em uma sinistra operação arquitetada pela NKVD [6] a, então, polícia secreta de Stalin. Até os dias de hoje seu corpo segue sem paradeiro [7] [8] [9] [10] [11]. Só depois dessa sucessão de acontecimentos é que a CNT finalmente abandonou o governo, que ficou nas mãos dos stalinistas e dos burgueses republicanos e agora se viram completamente livres para exercer a repressão interna.

Depois de quebrar ao meio o espírito revolucionário dos operários catalães, faltava ainda esmagar um último bastião revolucionário: Aragão. Em agosto de 1937, o general stalinista Enrique Líster, à frente da 11° divisão do Exército republicano, invadiu a província com aval do governo, dissolveu à bala os conselhos operários eleitos pela população, atacou as empresas coletivizadas e prendeu os dirigentes à frente dos conselhos. Para legitimar a campanha de repressão sobre o próprio campo antifascista, os stalinistas plantaram uma série de boatos e falsas acusações, muito antes das fake news de hoje em dia. Uma delas foi lançada contra o revolucionário anarquista e presidente do conselho regional de defesa de Aragão, Joaquín Ascaso, que foi acusado de roubo e contrabando de joias. Quanto ao POUM, a acusação era que seus militantes confraternizavam com os fascistas, inclusive, travando entre si amistosas partidas de futebol [12]. Pari passu à repressão interna no front de Aragão, seguiu a campanha sistemática de calúnias nas páginas da imprensa stalinista, como é o caso de uma das edições de Frente Rojo de agosto de 1937: “Sob o regime do extinto Conselho de Aragão, nem os cidadãos, nem a propriedade, podiam contar com a mínima garantia… […] No Conselho Municipal se instalam conhecidos fascistas e chefes falangistas. […] bandidos de origem exerciam uma profissão e um governo de bandidagem” (apud Morrow, 1963). A violência do massacre de Aragão chega a ser comparável à repressão franquista nas Astúrias dois anos antes. Inevitavelmente a indiferença e o desencanto se abateram sobre todo o povo. Estava derrotada a revolução espanhola. 

Despedida das Brigadas Internacionais

Segundo Martinez (1994 p. 166) “Uma vez liquidada a revolução, os franquistas apenas enfrentaram as massas desmoralizadas pela eliminação das conquistas revolucionárias.” Assim, território após território foi conquistado pelos fascistas. Málaga caiu em princípios de 1937. Em novembro de 1938, Stalin articulou com o governo da Frente Popular a saída das Brigadas Internacionais, um batalhão militar de 40.000 voluntários de vários países solidários à causa antifascista. Nesse mesmo ano, o campo republicano foi derrotado na batalha de Teruel. Apesar das inúmeras derrotas militares que acumulava e de territórios que perdia, a Frente Popular ainda se dava ao papel vergonhoso de fabricar uma série de peças de propaganda (imagem abaixo) em torno dos feitos supostamente heroicos e vitoriosos, enquanto os stalinistas se gabavam da ajuda militar enviada pela URSS [13].

A mesma ilusão era difundida quando os chefes da Frente Popular espalhavam boatos sobre a chegada de aviões e tanques emprestados pela França e Inglaterra, coisa que na verdade nunca aconteceu. Todavia, os fascistas seguiam avançando. Na sequência, o General Juan Yagüe, depois de organizar um massacre em Badajoz, ocupou Barcelona, a cidade que havia sido o coração e a fortaleza da revolução espanhola. Finalmente, em 28 de março de 1939 Madrid terminou ocupada, encerrando assim quase três anos de guerra civil. Começou então a longa noite fascista sobre o território espanhol.

Trotsky e o POUM

Coluna do POUM em atividade no quartel Lênin.

Trotsky via no vacilante POUM a chance de se desenvolver um partido revolucionário consequente, mas lhe reprovou quando este partido subscreveu o programa da Frente Popular e aceitou colaborar com ela, já que isso foi o equivalente a abrir mão da construção de um campo independente e alternativo ao da Frente Popular. Este combativo partido, que havia sido produto de uma fusão entre dois grupos anti-stalinistas do comunismo espanhol, apesar de pequeno e heterogêneo, de fato reunia excelentes condições para incidir positivamente nos acontecimentos e oferecer uma saída ao impasse entre Revolução Social vs. Frente Popular: suas fileiras reuniam entre 30 e 40 mil militantes, muito bem enraizados entre o operariado catalão; seus dirigentes eram lideranças prestigiadas e honestas; seu principal jornal, o La Batalla, era uma das publicações comunistas mais relevantes e tinha circulação diária; a Juventude Comunista Ibérica estava entre as juventudes mais dinâmicas do processo revolucionário [14].

Placa em memória de Andreu Nin, revolucionário marxista catalão e internacionalista, assassinado pelo stalinismo em 1937

Contudo, sob a justificativa de evitar o isolamento político, seus dirigentes ficaram tão reféns do pacto da Frente Popular, mesmo depois de terem sido expulsos do governo ao fim de 1936, que não lhes sobrava muita margem de iniciativa, à medida em que os eventos iam se sucedendo. A necessária unidade de ação entre todos os setores compreendidos no campo antifascista, mesmo os setores democrático-burgueses, em nada lhes obrigava a participação orgânica em um governo de conciliação de classes ao lado de Companys, Azaña, Largo Caballero e os stalinistas do PCE e do PSUC. Nesse sentido, é bastante lúcida a ponderação que faz Casanova (1939, p. 56) a esse respeito: “O POUM deveria evidentemente lutar contra Franco junto a outras forças antifascistas. Isso está fora de discussão. Porém, não deveria assumir a menor sombra de responsabilidade pela política dos dirigentes da Frente Popular”. Todavia, a situação era ainda pior. A posição do POUM estava baseada em uma apreciação teórica sobre aqueles eventos, no mínimo, estapafúrdia. Segundo Martinez (1994 p. 162):

O POUM chegou a caracterizar o novo governo da Generalitat como uma autêntica ditadura do proletariado na Catalunha, baseando-se na maioria operária que existia em seu interior e na suposta radicalização dos partidos da pequena burguesia, afirmando que os sovietes não eram necessários para a revolução espanhola.

Uma das lições mais básicas do marxismo, é que “[…] a classe operária não pode simplesmente se apossar da máquina do Estado tal como ela se apresenta e dela servir-se para seus próprios fins” (Marx, 2011, p. 54), ela precisa ser rompida e dar lugar a uma nova. Entretanto, o POUM aceitou assumir todas as responsabilidades de um governo burguês que, segundo consideravam, era a própria realização acabada de um governo proletário. Erro trágico. A consequência foi que essa posição os colocou aos olhos das massas como meros cúmplices das medidas de desmonte do processo revolucionário, bem como lhes deixou vulneráveis à repressão stalinista. Ao fim e ao cabo, os trabalhadores catalães ficaram completamente sem alternativa quando tentaram pela última vez abrir caminho para a vitória da revolução espanhola, quando das jornadas de maio de 1937.

Para Trotsky, que travou diversos debates com Andreu Nin, não havia porque ser condescendente com os erros do POUM, a despeito de tudo o que veio a acontecer a esse partido:

Apesar de suas intenções, o POUM se achou, no fim das contas, o principal obstáculo no caminho da construção de um partido revolucionário. A revolução não combina com centrismo. A linha de menor resistência patenteia-se, na revolução, a linha de pior falha. O medo de se isolar da burguesia leva a se isolar das massas. […] O excesso de prudência é a prudência mais funesta. Esta é a principal lição do desmoronamento da organização política mais honesta da Espanha, o POUM, partido centrista (2014, p 253).

O anarquismo entre reforma e revolução

A Espanha foi um dos poucos lugares onde o anarquismo conseguiu se enraizar entre a classe trabalhadora e construir uma corrente de massas. Sem dúvidas “É a primeira vez na história que os anarquistas são capazes de desempenhar um papel tão importante. De fato, pelo menos na Catalunha, tudo depende deles” (Broué, 1961, p. 177).

Durruti, Ascaso e Oliver

Essa corrente operária, cujos principais dirigentes eram os heroicos José Buenaventura Durruti , Francisco Ascaso (não confundir com o presidente do conselho regional de defesa de Aragão, Joaquín Ascaso, de quem era primo) e Garcia Oliver, de longe estava entre as mais influentes e mais combativas do proletariado espanhol. No passado, os três lideraram o lendário grupo Los Solidarios, que se encarregou de assaltar bancos e organizar atentados contra mercenários patronais conhecidos como Pistoleros. Ascaso e Durruti morreram nos primeiros meses depois do levante de julho de 1936, no contexto dos enfrentamentos armadas contra Franco. Assim, a direção da CNT-FAI ficou praticamente nas mãos de Garcia Oliver. A despeito da sua indiscutível combatividade, a visão política e teórica anarco-sindicalista comprovou-se incrivelmente limitada, uma vez posta à prova no calor da revolução.

O anarquismo sempre se caracterizou pela absoluta rejeição à participação na luta política, bastando-se a atividade sindical como o caminho para a libertação social: salários, jornadas de trabalho justas, direitos laborais em geral, etc. Trotsky (2014, p. 250) considerava os sindicatos como organizações de combate, mas os concebia como instrumentos forjados para combates em tempos de paz, e não para tempos de guerra e revolução. Assim, para o velho revolucionário soviético, os anarquistas limitavam a revolução ao restritivo espaço da luta sindical e nisso consistia boa parte dos seus erros. Foi por rejeitar a participação na luta política que, por exemplo, a CNT optou pela abstenção na greve geral convocada pela UGT, quando da entrada dos ministros da CEDA no governo Lerroux.

Paro os anarco-sindicalistas, era irrelevante que a ultrarreacionária CEDA entrasse no governo, incluindo aí o sinistro Gil Robles, que acabou ficando com o ministério da defesa e aproveitou essa posição para promover milhares de militares golpistas que tomaram parte no levante de 1936 [15]. A consequência foi que o levante nas Astúrias de 1934, embora tenha sido um feito heroico e de grande magnitude, terminou isolado.

Ao mesmo tempo, nem de longe constava em seu arcabouço ideológico a mais remota ideia de tomada do poder e a instauração da ditadura do proletariado. Como explica Broué (1961, p. 177), “Inimigos do estado a quem consideram a forma mais acabada da opressão, os anarquistas sempre recusaram distinguir entre o estado burguês e o estado operário, como era o estado russo nascido dos sovietes em 1917” [16]

Como assinala Casanova,

[…] em 1936 e 1937, estes antiestatistas aboliam e inclusive às vezes queimavam o dinheiro nos pequenos povoados de Aragão, onde se instaurava o comunismo libertário e o reino do amor e da fraternidade, porém nunca lhes ocorreu a ideia de tomar os grandes bancos. Entretanto […] a filial do Banco da Espanha em Barcelona ficava em frente ao Comité Regional da CNT, sede do estado-maior anarquista, […]. (1939, p. 9) 

A raiz desse posicionamento estava em suas concepções essencialmente antiautoritárias e anti-estatistas, formuladas por teóricos como Bakunin, Proudhon, Malatesta, etc. No entanto, qual revolução que não é autoritária? Se a revolução russa não tivesse sido suficientemente ‘autoritária’ contra seus inimigos, tal como foi, o desenlace da guerra civil teria sido o mesmo? Quantos dias teria durado o governo de Lênin e Trotsky se medidas ‘autoritárias’ contra a burguesia não tivessem sido tomadas? Como muito bem assinala o velho Engels:

Já alguma vez viram uma revolução, estes senhores? Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários (2005).

No entanto, para não cometerem o pecado de exercer um governo proletário, portanto ‘autoritário’, os anarco-sindicalistas optaram por colaborar em um governo…. burguês. Assim, Juan López Sánchez, Federica Montseny, Garcia Oliver e Joan Peiró, (foto), assumiram respectivamente os ministérios do Comércio, Saúde, Justiça e Indústria ao final de 1936, ao custo de rebaixarem suas bandeiras. É um fato inacreditável que a organização mais poderosa de toda a Espanha, que não devia nada a mais ninguém, tenha aceitado conscientemente submeter-se a um governo burguês, emprestando-lhe todo o prestígio que haviam adquirido em anos de greves e enfrentamentos, quando tinham atrás de si o grosso do proletariado espanhol disposto a tomar o poder para esmagar Franco e os capitalistas espanhóis. 

Comoção popular durante o cortejo fúnebre do revolucionário José Buenaventura Durruti

Infelizmente, somente muitos anos mais tarde Federica Montseny reconheceu: 

Se tivéssemos tomado o poder, porque éramos majoritários, seria à custa de trair o pacto de luta comum que havíamos, de certo modo, selado com o sangue de muitos de nossos homens, de um lado e de outro, de comunistas, socialistas, sindicalistas, rabassaires [camponeses arrendatários] e, sobretudo, anarquistas. Era trair esse pacto e realizar na Catalunha o que havia realizado Lênin e Trotsky em seu país com a tomada do poder pelo Partido Bolchevique. Não o fizemos, e têm-se nos reprovado muitas vezes. Com o passar do tempo, quem sabe, talvez, talvez devêssemos ter feito… [17]

Ao fim e ao cabo, como sentencia Morrow (1963), “Ao aceitar sem críticas o programa do governo, a CNT revelou a bancarrota completa do anarquismo como a via revolução social. ” Assim, depois de todos esses eventos, nunca mais o anarquismo conseguiu recuperar a notoriedade que tiveram, nem na Espanha, nem em nenhum outro lugar.

A Frente Popular e o Marrocos

A Frente Popular foi incapaz, inclusive, de negociar a libertação do lendário líder nacional-libertador marroquino, Abd el-Krim (foto). El-Krim era da tribo amazigh (anteriormente denominada berbere) e um exímio estrategista político e militar. Usando suas qualidades de agitador e propagandista político, El-Krim conseguiu liderar o conjunto das tribos locais para travar resistência unificada contra a administração colonial franco-hispânica na região. Depois de liderar a guerra do Rife nos anos 20, El-Krim foi desterrado para a longínqua ilha de Reunião, no Oceano Índico, dominada pela França, mas isso não o impediu de enviar uma carta a Largo Caballero solicitando que seu governo interviesse junto ao governo francês para permitir o seu retorno ao Marrocos. O plano de El-Krim era voltar ao seu país e, lá, encabeçar um levante insurrecional contra Franco, que usou a região como base de operações nos primeiros meses do golpe. O historiador espanhol e veterano da guerra civil, Abel Paz (2000), afirma que uma delegação do CAM-Comitê de Ação Marroquino chegou se deslocar diretamente para a Espanha com o objetivo de entrar em contato com a Frente Popular e tentar estabelecer um acordo, cujos termos exigiam para o Marrocos o mesmo estatuto de autonomia do qual desfrutava a Catalunha, em troca de um levante anti-franquista. Tal oportunidade, de fato, poderia impactar de maneira formidável sobre a própria base militar de Franco, composta por soldados coloniais marroquinos. Todavia, o governo rechaçou sumariamente a proposta e “as delegações de nacionalistas marroquinos que foram à Valência pedir dinheiro e material voltaram com as mãos vazias” (Broué, 1961, p. 241). O fato é que a Frente Popular tinha mais receio dos efeitos que uma possível libertação do Marrocos poderia desencadear em seu território nacional, bem como no continente africano, do que receio do próprio Franco.

De fato, a coalizão frente-populista seguiu exercendo a administração colonial sobre o Marrocos, em nada muito diferente dos governos anteriores, de modo que o povo marroquino não viu diferença entre a Frente Popular e a ditadura de Franco. Para Trotsky: 

A principal base de operações de Franco era o Marrocos, uma colônia subjugada pela Espanha após muitos anos de violentas batalhas no deserto. Até mesmo do ponto de vista da democracia burguesa, a República poderia ter proclamado a independência do povo oprimido da colônia. Estrategicamente, na luta contra Franco, era o que deveria ter feito se queriam ganhar o apoio marroquino contra o fascismo. Mas Stálin e Azaña temiam alarmar os governos britânico e francês, que possuíam vastos impérios coloniais na África. Então, a República defendeu a exigência imperialista espanhola de governar o Marrocos.

Stalin, o coveiro de todas as revoluções ou era possível um outro desfecho

Livro de memórias do trotskista polonês Mieczyslaw Bortenstein, que o assina como M. Casanova

Sem dúvidas, uma possível vitória revolucionária dos operários espanhóis no coração da Europa, bem no exato contexto que antecedeu a segunda guerra, teria conseguido produzir um desenlace capaz de contagiar os operários dos países vizinhos e erguer uma muralha contra o expansionismo militar ítalo-germânico. Possibilidade, não quer dizer inevitabilidade, assim como não era inevitável a vitória de Franco. Todavia há que se reconhecer que essa possibilidade de fato esteve colocada em julho de 1936 e, com alguma chance, em maio de 1937. Para compreender porque uma oportunidade tão formidável como essa se perdeu, são de grande serventia as avaliações de M. Casanova (1939, p. 6), militante da IV Internacional que serviu no front de Aragão e que deixou um importante livro de memórias: “Para compreender a tragédia de 26 de janeiro de 1939, teremos de recordar a de 3-6 de maio de 1937. Entre essas duas datas há uma relação lógica. Quando se esmagou a revolução, esmagou-se a guerra antifascista”.

De fato, os chefes da Frente Popular, que se viam pressionados entre a revolução operária de um lado e a contrarrevolução fascista de outro, temiam mais os primeiros do que os segundos. Assim, fizeram de tudo para desautorizar, desmoralizar e desmobilizar os trabalhadores que se lançaram de corpo e alma para conter o avanço de Franco. A própria declaração de Jesus Hernandez, um dos dirigentes do PCE e editor do jornal stalinista Mundo Obrero, não deixa margem para dúvidas: “É totalmente falso que o objetivo desta mobilização operária é a instauração de uma ditadura proletária ao fim da guerra. […] Nós, os comunistas, somos os primeiros a repudiar semelhante suposição. Nos motiva unicamente o desejo de defender a república democrática” (apud Morrow, 1963).

Stalin, o principal articulador da política da Frente Popular no plano internacional, vinha operando um posicionamento diplomático cujo objetivo era não afastar Inglaterra e França, pois era ciente de que “[…] nem a França burguesa de Blum nem a Inglaterra conservadora de Chamberlain podiam admitir a vitória da revolução proletária na Espanha” (Claudín, 1996, p. 199). Ambos os países chegaram a embargar o envio de armas em socorro da república, tomadas pelo receio de que tais armas caíssem nas mãos dos trabalhadores. Estes, por sua vez, eram o tempo todo levados a acreditar na ilusão de que a república receberia apoio militar das democracias europeias. Stalin chegou, inclusive, a enviar uma carta pessoal a Largo Caballero [18] em que aconselhava: “É necessário evitar que os inimigos da Espanha vejam nela uma República comunista”. Assim, a burocracia governante da URSS via como decisivo manter resguardadas suas relações diplomáticas com as burguesias democráticas europeias, nem que isso exigisse sufocar a revolução na Espanha.

Passados tantos anos desde esses acontecimentos, e com tão farta documentação disponível, somente a gente muito dogmática pode caber o cínico papel de “passar pano” sobre tantos crimes e traições relativizando-os como meros “erros do camarada Stalin” [19]. Nenhuma manobra distrativa ou falsificação histórica por parte de tais setores conseguirá ocultar o fato de que uma oportunidade ímpar de instaurar uma república vermelha no coração da Europa foi rifada, a troco de uma aliança burguesa que, para todos os efeitos, foi incapaz de resistir à ofensiva dos fascistas. Toda experiência de conciliação de classes e de unidade programática com a burguesia, só pode levar a derrotas como a que se abateu sobre a Espanha e, talvez, seja esse o principal ensinamento dessa grande revolução. Ter isso em conta é indispensável, quando setores da esquerda brasileira, inclusive stalinista, ensaiam a exumação da tese da frente popular, como caminho para se construir a oposição a Bolsonaro. Portanto, para evitar que a história repita tragédias como aquela, a atual geração de jovens que se levanta contra o neofascismo bolsonarista só tem a ganhar se souber rechaçar as teses do stalinismo requentado e jogá-las de volta ao entulho da história.

*Siglas e referências
Generalitat – Governo catalão
Cortes – Parlamento espanhol
PSOE – Partido Socialista Operário Espanhol
CNT-FAI – Confederação Nacional do Trabalho-Federação Anarquista Ibérica
CEDA – Confederação Espanhola de Direitas Autônomas
UGT – União Geral dos Trabalhadores
POUM – Partido Operário de Unificação Marxista
PCE – Partido Comunista Espanhol
PSUC – Partido Socialista Unificado da Catalunha
NOTAS
[4] Declaração de Josep Tarradellas, presidente da Generalitat e conselheiro de finanças do governo catalão, no documentário La Guerra Civil Española – Episodio 5 Cara y cruz de la revolución, J. Blake, D Hart e D. Kemp (Granada Televisión Channel 4, Reino Unido, 1983), disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=5_X2CAHO3oA [29:53] Trad. Bruno Rodrigues
[5] Antonov-Ovseenko havia lutado ao lado de Trotsky no Exército Vermelho, durante os anos da guerra civil na Rússia, mas se passa para o lado de Stalin nos anos seguintes. Mesmo tendo cumprindo à risca sua missão de orientar a Frente Popular a desmontar a revolução na Espanha, é convocado de volta à URSS onde é arrolado nos processos de Moscou sob acusação de “pertencimento a organização terrorista trotskista e por espionagem” e fuzilado em 1939. 
[6] Os distintos textos que usamos neste artigo ora podem usar a sigla NKVD, ora GPU. Para todos os efeitos, NKVD e GPU foram os nomes adotados pela polícia política soviética ao longo da sua história.
[7] Batizada de Nikolay, tal operação consistiu em uma conspiração para destruir o POUM, a começar pelo seu principal dirigente, Andreu Nin. O húngaro Ernö Gerö, emissário de Stalin na Catalunha e assessor do PSUC, envia um informe à Moscou no qual implica o POUM como responsável pelas jornadas de maio de 1937, qualificando este partido como fascista. Na sequência, o agente da NKVD, Alexander Orlov, é encarregado de endossar tais acusações contra o POUM. São forjados documentos que “demonstram” a existência de uma suposta rede de espionagem franquista recém-desarticulada pela inteligência republicana. Ao “descobrir” essa suposta rede de espionagem, a inteligência também “descobre” suposta a cumplicidade do POUM com os franquistas. A farsa estava então montada.
Uma vez dispondo de “provas”, o Diretor Geral de Segurança, Antonio Ortega, emite ordens de prisão contra centenas de militantes do POUM, dentre os quais estava praticamente todo o seu comitê central. Na lista dos intimados estão, inclusive, Julian Gorkin, editor do jornal La Batalla, e Andreu Nin, o principal dirigente do partido. Nin é detido em Barcelona, no dia 16/06/1937, e levado à prisão de Alcalá de Henares, nos arredores de Madrid. Na prisão de Alcalá de Henares, Nin é interrogado continuamente e até torturado. Os torturadores buscam a todo custo arrancar-lhe confissões que comprometam a si mesmo e a seus camaradas poumistas. Todavia, ao se negar a confessar o que os stalinistas queriam, Nin é assassinado. A versão falsa sobre o paradeiro de Nin que começa a circular pelas ruas de Madrid, Barcelona e demais cidades é que, em vez de ter sido assassinado, Nin havia sido libertado pela Gestapo alemã.
Os arquivos do NKVD, que passaram a ser acessados no fim dos anos 80, endossam a versão sustentada por militantes do POUM, de que agentes de Stalin estavam envolvidos neste crime. Estes arquivos são exibidos no documentário Operación Nikolai. El secuestro y asesinato de Nin (Dir. Maria Dolors Genovès, España, 1992 [60 min]. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zLAfmtlCgTU). Produzido em base a depoimentos de diversos historiadores, jornalistas, veteranos do POUM, além do historiador anti-stalinista Anton Antonov (filho do cônsul soviético na Espanha, Antonov-Ovseenko) e de Nora Nin (filha de Andreu Nin), e lançado em 1992, quando começavam a ser abertos os arquivos soviéticos, este documentário não deixa dúvidas quanto à conspiração montada pela polícia política de Stalin para sequestrar e assassinar Andreu Nin. Além do próprio Antonio Ortega, que havia sido empossado no cargo de Diretor Geral de Segurança da república por indicação do PSUC, e do agente Alexander Orlov, estão envolvidos, Yusik (pseudônimo de José Escoy, agente brasileiro do NKVD encarregado de forjar documentos que tentaram associar o POUM e a Falange), o húngaro Ernö Gerö (posteriormente um dos responsáveis pela repressão ao levante antiburocrático de 56 na Hungria), o italiano Vittorio Vidali (um dos responsáveis pela repressão em Aragão e posteriormente partícipe de um dos atentados à residência de Trotsky no México) e três espanhóis. 
O documentário também mostra que, mesmo alguns chefes da Frente Popular como, Federica Montseny e Largo Caballero, rechaçam a acusação contra Nin e os demais militantes do POUM. Azaña chega a qualificar como “novelesca” toda aquela trama. Um Tribunal Especial Central de Espionagem e Alta Traição chegou a ser montado para julgar os militantes do POUM, no entanto, são rejeitadas as absurdas acusações de cumplicidade com os fascistas e os militantes do POUM são condenados “apenas” pela sua participação nas jornadas de maio de 1937. Tal operação corresponde, no tempo, aos chamados processo de Moscou que também perseguiram e condenaram milhares de comunistas honestos e inocentes.
Com o êxito da operação Nikolay, Alexander Orlov é convocado de volta à Rússia no ano seguinte, mas temendo que lhe ocorresse o mesmo que ocorreu a outros stalinistas como o cônsul Antonov-Ovseenko, o embaixador Rosenberg, os generais Goriev ou Berzin, Orlov resolve tomar o caminho para os EUA, junto com sua família. Orlov ainda chegou a enviar uma carta para Stalin prometendo manter em segredo tudo o que sabia, com a condição de que Stalin mantivesse a sua família incólume. Somente quinze anos depois da morte de Stalin é que Orlov publica seu livro de memórias cujo título é The Secret History of Stalin’s Crimes.
Anos mais tarde, ninguém menos que o dirigente stalinista Jesus Hernandez, haveria de escrever em seu livro La Grande Trahison: “Nin teve que suportar a dor das torturas mais refinadas. Depois de alguns dias, sua face não era mais que uma massa de carne tumefacta. Orlov, frenético, aterrorizado pelo escândalo que podia significar sua própria liquidação, rugia de raiva ante esse homem enfermo que agonizava sem ‘confessar’ e sem denunciar seus camaradas de partido. ”
[8] O programa de TV espanhol La víspera de nuestro tiempo, de 1983, também dedicou um episódio ao tema do desaparecimento de Andreu Nin, entrevistando três veteranos do POUM: Julian Gorkin, Enrique Adroher e Victor Alba, bem como o historiador hispanista da universidade da Califórnia, Gabriel Jackson. A entrevista está disponível no YouTube, em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=m_bHEi-Zpns
[9] O historiador francês Pierre Broué foi, sem dúvidas, um dos principais estudiosos do movimento operário do século XX e particularmente da guerra civil espanhola, tendo dedicado dois livros ao tema. Um deles, La revolution espagnole (1931-1939), chegou a ser lançado no Brasil em 1992 pela Editora Perspectiva com o título A revolução espanhola, um livro que, a bem da verdade, merecia uma nova publicação. Nele, Broué assim descreve a atmosfera de calúnias e provocações que havia em meio às zonas republicanas e nos círculos da esquerda, na sequência do assassinato de Andreu Nin: “Logo estourou um enorme escândalo: Andreu Nin, capturado junto a seus camaradas, desapareceu. Os stalinistas insinuam que ele fugiu e, diante da pergunta marcada nos muros, ‘Onde está NIN?’, respondem com esta rima imunda: ‘Em Salamanca ou Berlim”, insinuando que o revolucionário Catalão desaparecido, na verdade, estava abrigado nas zonas franquistas ou mesmo na Alemanha nazista. Trad. Bruno Rodrigues
[10] Mesmo tendo polemizado duramente contra Nin, em razão dos seus erros políticos que foram fatais para a revolução Espanhola, Trotsky escreveu: “Quando Nin, o dirigente do POUM, foi detido em Barcelona, não podia existir a menor dúvida: os agentes da GPU não o deixariam vivo. As intenções de Stalin ficaram evidentes, com um cinismo excepcional, quando a GPU, que tem em suas garras a polícia espanhola, lançou uma declaração em que acusava Nin e toda a direção do POUM de serem ‘agentes’ de Franco. O caráter absurdo dessa afirmação é evidente para todos os que conhecem os dados elementares da revolução espanhola. […] Os militantes do POUM lutam heroicamente contra os fascistas em todas as frentes da Espanha. Nin é um veterano e incorruptível revolucionário. Defendia os interesses do povo espanhol e combatia os agentes da burocracia soviética. Precisamente por isso, os agentes da GPU se livraram dele, graças a uma operação bem calculada na prisão de Barcelona. […] Apesar das divergências que me separam do POUM, devo reconhecer que, na luta que Nin levava contra a burocracia soviética, a justiça esteve inteiramente ao seu lado. […] Recusou-se a colaborar com a GPU para arruinar os interesses do proletariado espanhol. Este foi seu único crime. E o pagou com sua vida. ” (Trotsky, O assassinato de André Nin pelos agentes da GPU, 08/08/37)
[11] Na esteira da repressão stalinista ao POUM e aos anarquistas, depois da derrota das jornadas de maio de 1937, muitos militantes da IV internacional também foram implacavelmente perseguidos, como assinala Monteiro (2016): “a repressão desencadeada a partir de maio de 1937 sob o comando de Negrín e dos stalinistas também se estendeu aos ‘bolchevique-leninistas’, que tiveram os dirigentes Hans Freund e Erwin Wolf assassinados em meados de 1937 e Munis, Alfonso Rodríguez e Antonino Alvarez presos em fevereiro de 1938, sob falsas acusações de terem assassinado um agente da NKVD.” (MONTEIRO, Marcio Lauria, A história esquecida do trotskismo na Revolução Espanhola: o POUM e os “bolchevique-leninistas”, Scielo, 2016. Disponível em https://bit.ly/3hkbQBp, acessado em agosto de 2020)
[12] “Nossos comissários políticos nos disseram que as tropas à frente de Aragão, a maioria anarquistas e membros do POUM, conhecidos como trotskistas, estavam confraternizando com os inimigos, inclusive jogando partidas de futebol. ”  Declaração de Frank Deega, comunista britânico e voluntário das Brigadas Internacionais, para documentário La Guerra Civil Española – Episodio 5 Cara y cruz de la revolución, J. Blake, D Hart e D. Kemp, (Granada Televisión Channel 4, Reino Unido, 1983), disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=5_X2CAHO3oA  [36:10] Trad Bruno Rodrigues
[13] Fato importante a este respeito é que a ajuda militar que a república recebeu da URSS, no final de 1936, chegou com a condição de que as armas permanecessem sob o estrito controle da ala direita do governo e em troca das reservas de ouro do banco da Espanha, uma chantagem disfarçada de apoio político, portanto. 
[14] O POUM chegou também a organizar uma seção voltada especificamente para o trabalho político entre mulheres trabalhadoras. Sobre essa experiência, vale conferir o documentário Mujeres del POUM: doblemente olvidadas [24:29], de 2011, dirigido por Jordi Gordon. Disponível no YouTube, em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=IZfHr_FTO58 
[15] Os anarco-sindicalistas brasileiros adotaram postura similar, por exemplo, quando do golpe parlamentar que derrubou a ex-presidenta Dilma Rousseff e quando das eleições presidenciais que levaram Bolsonaro ao poder. Em ambos os casos, tais setores se posicionaram de maneira indiferente, equiparando no mesmo patamar político o governo Dilma e o congresso golpista, ou mesmo Haddad e Bolsonaro. Em suas publicações muitos militantes anarco-sindicalistas chegaram, inclusive, a caracterizar o governo Dilma como fascista e a defender e o voto nulo em 2018 em base a uma consigna aparentemente combativa: ‘Não vote, lute! ’ . Sob a máscara da rejeição ao que consideram ‘jogo político’ e ‘chantagem eleitoral’, tal postura aparentemente radical, na verdade, camufla a passividade anarco-sindicalista frente à ofensiva burguesa que abriu uma situação marcadamente desfavorável para a classe trabalhadora brasileira.
[16] Com a queda da monarquia e a tomada do poder em outubro de 1917 na Rússia, Nestor Makhno, Piotr Arshinov, Volin e vários outros anarquistas chegaram a recrutar camponeses em Gulai-Polé, região agrária da Ucrânia, para organizar um exército com o objetivo não só de combater a contrarrevolução burguesa, mas o próprio estado operário soviético. Por mais de uma vez o exército de Nestor Makhno enfrentou o exército vermelho, exatamente em meio a uma invasão de vários países que, por muito pouco, não acabou esmagou a primeira revolução socialista vitoriosa da história.    
[17] Declaração de Federica Montseny, ex-ministra da saúde da Frente Popular na Catalunha e dirigente Anarquista, ao documentário La Guerra Civil Española – Episodio 5 Cara y cruz de la revolución, J. Blake, D Hart e D. Kemp, (Granada Televisión Channel 4, Reino Unido, 1983),disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=5_X2CAHO3oA  [4:36] Trad Bruno Rodrigues
[18] A carta em questão é comentada no documentário La guerra civil española – Episodio 3 La guerra de los idealistas, J. Blake, D Hart e D. Kemp, (Granada Televisión Channel 4, Reino Unido, 1983), disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=lvbL93jJaVM&t=2131s [35:05]. Ela também pode ser acessada aqui: https://bit.ly/3hjO6h3 Trad Bruno Rodrigues
[19] É emblemática a declaração de Bill Bailley, comunista norte-americano e voluntário das Brigadas Internacionais, para o documentário La Guerra Civil Española: “Havíamos visto que Stalin tentava defender o país diante dos inimigos. E, por isso, estava realizando estas purgas de pessoas, que acreditávamos serem inimigas do povo. Inimigas do povo russo e, portanto, de toda a classe operária. Mais adiante, se demonstrou que estava equivocado. Que era somente um paranoico. Esta gente que purgavam havia lutado pelo grande ideal socialista. Passaram penas e sofrimentos para criar esta sociedade e acabaram morrendo como cachorros.” La Guerra Civil Española – Episodio 5 Cara y cruz de la revolución, J. Blake, D Hart e D. Kemp, (Granada Televisión Channel 4, Reino Unido, 1983), disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=5_X2CAHO3oA [33:57] Trad Bruno Rodrigues
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