Recebi no dia 03/09/2020 no meu correio eletrônico uma carta do Secretário Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, Caio Paes de Andrade, endereçada a todas(os) as(os) “servidoras(es) públicos federais”.
Ela continha diversas palavras de efeitos encantadores trazidos pela instituição de uma gestão mais moderna e eficiente para a melhoria dos serviços entregues à população. Para o Secretário, “O Estado precisa ser mais flexível, dar mais incentivos aos bons servidores e tirar as amarras que atrapalham o serviço público”. O problema central para o gestor estatal é o próprio sistema burocrático, obsoleto e que não aproveita os talentos institucionais, nem estimula o engajamento e a motivação da força de trabalho. O projeto é apresentado como um amplo (1)processo de transformação da administração pública, mas não é inovador, já que mantém todas as diretrizes sinalizadas na contrarreforma administrativa implementada por Fernando Henrique Cardoso e materializadas em instrumentos jurídicos-políticos nos diferentes governos desde então. Caio Paes de Andrade afirma que o que vai preparar o país para o futuro é a modificação da gestão e um aprimoramento da sua cultura organizacional, baseada em quatro princípios(2) centrais:
1) Foco em Servir: consciência de que a razão de existir do governo é servir à população;
2) Valorização dos Servidores: reconhecimento justo, com foco no seu desenvolvimento efetivo;
3) Agilidade e Inovação: gestão de pessoas adaptável e conectada com as melhores práticas mundiais;
4) Eficiência e Racionalidade: atingir melhores resultados, em menos tempo e custando menos.
Caio Andrade, Secretário vinculado ao Ministério da Economia, solicita a união e a compreensão de todas e todos para enfrentar com coragem e maturidade as dificuldades em prol do desejo coletivo de “ver o Brasil avançar e sua gente prosperar”. Utiliza como estratégia argumentativa que as mudanças propostas na reforma administrativa entregue no mesmo 03 de setembro por Bolsonaro ao Congresso Nacional (PEC 32/2020) só serão válidas aos trabalhadores que ingressarem no serviço público após a aprovação da emenda constitucional.
A aplicação dos conceitos eficiência e eficácia podem envolver diferentes interpretações. Para o Estado, estão associados a uma maior produtividade, focados em indicadores quantitativos que priorizam resultados de um trabalho com menor custo e tempo.
Ao meu ver, nossos esforços no trabalho no serviço público direcionam-se a garantia de qualidade ao atendimento a população que o demanda. No caso das universidades, em especial às(aos) discentes que nelas ingressam. Assim, a racionalidade dos gastos, a eficiência no provimento dos recursos e a eficácia no desenvolvimento das ações deverão estar vinculadas a este objetivo. Qualificar o serviço resulta na ampliação: do conjunto de atividades a serem ofertadas, da rede a ser consolidada, da constituição de uma equipe qualificada e com condições de trabalho adequadas e, da autonomia profissional no exercício das suas atribuições.
Ocorre que, pouco se construiu para garantir uma força de trabalho necessária a conduzir o desempenho esperado: executar qualificadamente os serviços públicos demandados. A extinção de cargos vinculados ao Regime Jurídico Único, a terceirização de serviços considerados como auxiliares, tais como os da área de limpeza e vigilância e, o crescimento de contratos temporários, foram medidas contínuas de Fernando Henrique Cardoso a Jair Messias Bolsonaro. Vivencia-se um processo de terceirização sistemático desde Fernando Henrique Cardoso com a contrarreforma administrativa instituída pela Emenda Constitucional 19/1998. Apesar do significativo crescimento dos concursos públicos para trabalhadores estatutários do poder executivo federal durante o período dos governos petistas, o número de trabalhadores em 2014 era ainda 14% menor do que em 1988. De janeiro a junho de 2020, o número de contratações de trabalhadores temporários no executivo federal foi 33,4% maior do que o de ingressos no regime estatuário. De 2015 a 2019 os contratos temporários cresceram 48%. (3)
No campo das políticas sociais, a ampla terceirização da sua execução e de sua gestão, assim como de seus trabalhadores, pela supostamente virtuosa inciativa privada, foi conduzida pela implementação de Organizações Sociais, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) e Fundações Estatais de Direito Privado. Muito presentes na política de saúde, principalmente nos níveis estadual e municipal e, na política federal de educação superior, pelas Fundações de Apoio e pela privatização dos hospitais universitários (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares – EBSERH).
Nestes espaços, portanto, já se vivencia a condução de uma política pública, majoritariamente, por trabalhadores que não possuem direito à estabilidade. E como a realidade e diversos estudos demonstram, não causaram os impactos significativos na melhoria do atendimento, tal como a promessa dos defensores da contrarreforma administrativa querem ludibriar. Além disso, das contínuas denúncias e reclamações dos serviços, essas instituições são objeto de inúmeros processos investigativos de corrupção por sua gestão.
Para que um trabalho “prospere” no serviço público é necessário investimento público que garanta condições de trabalho adequadas, uma organização institucional estruturada, transparente, com métodos de trabalho que estimulem a participação e a capacidade crítica e interventiva de cada trabalhador, além de sua qualificação. Não existe trabalho de qualidade sem trabalhadores qualificados e com condições de trabalho que permitam sua plena atuação.
A estabilidade é crucificada como a causadora do absenteísmo e da ineficiência no serviço público. Sem ela, nas palavras de seus defensores e infelizmente reproduzidas por muitos, inclusive pela classe trabalhadora, seria mais fácil alcançar a dita eficiência e eficácia. Esquecem de dizer que a estabilidade tem uma função essencial: garantir ao trabalhador autonomia sobre a avaliação da forma de conduzir o seu trabalho (balizado nos mesmos princípios de eficácia e eficiência) e o proteger do assédio, a partir de práticas autoritárias e político-partidárias que permeiam a gestão e a execução dos serviços.
A estabilidade é uma ferramenta a impedir os impasses quanto ao alcance da impessoalidade, da ética e do interesse público em detrimentos de interesses privados. Objetiva-se retirar o instrumento que resguarda as trabalhadoras e os trabalhadores da submissão a políticas de governo, da imposição de uma função de “guardiões”. Ou seja, ao invés de receitar o remédio correto para corrigir um problema de saúde, indica-se a utilização de métodos que não o resolvem e tendem a inflar os problemas.
Acabar com a estabilidade não é a única saída. O bom uso dela, em conjunto com outros instrumentos, podem indicar possibilidades de transformações aos elementos que de fato carecem de melhorias no serviço público. Tais como: a aplicação de métodos eficientes que permitam gestões democráticas e participativas; a identificação de espaços ocupacionais que potencializam a contribuição de cada trabalhador; as múltiplas práticas de valorização profissional, como o incentivo e a aplicabilidade das qualificações e capacitações realizadas e; uma adequada utilização dos instrumentos de acompanhamento do desempenho do trabalhador e do cumprimento de suas responsabilidades.
O fim da estabilidade e a ampliação da contratação por tempo indeterminado ou temporário (4) propostos na EC 32/2020, reduzem significativamente os direitos dos trabalhadores. Muitos do que hoje atuam nas organizações sociais ou em empresas terceirizadas possuem contratos flexíveis e precarizados, com direitos trabalhistas negados e contínuos atrasos em seus pagamentos. A economia dos custos propagandeada pelo Estado à força de trabalho estatutária, tem como fundamento a não efetivação/pagamento de direitos.
Os direitos dos trabalhadores do Regime Jurídico Único (RJU) não são privilégios: são conquistas que essa fração da classe trabalhadora obteve a partir de muita luta e que deveriam ser ampliado para todas trabalhadoras e todos trabalhadores. Ao invés disso, o desejo é que esta fração passe a ter medo de perder o emprego, pois só assim valorizariam o seu trabalho.
Não tenho dúvida que os trabalhadores do serviço público valorizam a sua função pública. Se não o fizessem, deixariam de resistir a contínuas campanhas depreciativas (“parasitas”, “zebras”, “peso ao Estado”, “ineficientes”, “inimigos”) e a crescentes degradações as suas condições de trabalho que inviabilizam muitos de seus objetivos.
Por exemplo, o orçamento das universidades públicas (que efetivam as condições de trabalho ofertadas) têm sido objeto de contingenciamentos contínuos desde 2012. Além disso, como revela Vívian Mattos (5) (2018) em seu estudo de doutoramento, as quatro universidades públicas federais do Rio de Janeiro, por exemplo, entre 2013 e 2017 tiveram um escasso crescimento do orçamento destinado a manutenção das ações institucionais. Enquanto que o montante direcionado à expansão e à compra de equipamentos, foi em 2017 90% menor que o de 2013, em três das quatro IFES.
A conjuntura da crise pandêmica pôde evidenciar a importância dessa função pública a toda sociedade, independente de quem pode ou não pagar pelos serviços. As políticas públicas de saúde, educação, pesquisa e inovação têm literalmente salvado vidas. Entretanto, o ranking das instituições de ensino superior, por exemplo nunca deixou dúvidas sobre a qualidade do serviço prestado pelas universidades públicas.
O principal argumento à contrarreforma administrativa é o da necessidade de diminuição dos custos. Custos que, para as políticas sociais, significam investimento estatal. A redução dos gastos com a força de trabalho e com as políticas sociais estão inseridas em uma política de ajuste fiscal para os trabalhadores que tem como objetivo criar espaços ampliados de lucratividade ao capital. Seja pela mercantilização dos serviços públicos ou pela liberação de recursos do orçamento às políticas sociais para serem destinados a outros fins, especialmente ao pagamento da dívida pública. Retira-se a necessidade obrigatória do Estado pagar os trabalhadores do serviço público e espremem essa despesa na barreira orçamentária da Emenda Constitucional 95/2016 (que limitou o crescimento das despesas primárias por 20 anos). No caso do orçamento das universidades, sua redução expressa as escolhas políticas sobre as prioridades de investimento público a cada ano na Lei Orçamentária Anual. Para 2021 a proposta é enxugar 18% desse orçamento.
Encolhem-se os investimentos com as políticas sociais e seus trabalhadores ao ponto de garantir a incapacidade de sua operacionalização. É sobre esse objetivo que a carta não fala. Sobre o conjunto de medidas que têm sido estabelecidas (6) e que inviabilizam a continuidade do serviço público que conhecemos. Especialmente aquele vinculado às políticas sociais que, reconhecidas como direito de todos e dever do Estado na Constituição Federal de 1988, materializam o acesso a educação, a assistência, a aposentadoria e ao cuidado com a saúde.
O foco da correspondência está no envolvimento de uma força de trabalho que sofre as dificuldades para o desenvolvimento do seu trabalho e que tem as suas capacidades profissionais subutilizadas e desvalorizadas. Como trabalhadora neste espaço, a leitura desse documento causa indignação. É preciso reagir, de forma ampla, intensa e coletiva. E, em conjunto com toda a classe trabalhadora, “estar atento e forte, [pois] não temos tempo de temer a morte”, como nos ensina Caetano.
*Mariana Flores é técnica-administrativa na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutoranda na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
NOTAS
1 – Nem tão amplo, já que a contrarreforma administrativa se destina a força de trabalho empregada pelo Estado pela Lei 8.112/90. É importante ressaltar, a Proposta de Ementa Constitucional (PEC) 32/2020 ignora os que recebem as remunerações mais altas do serviço público: os parlamentares, os militares das forças armadas, os juízes e os procuradores do Ministério Público.
2 – Para cada princípio é necessário um amplo debate que apresente a essência da transformação da administração pública almejada, em contraponto ao discurso ideológico que coloca como oposição o arcaico (burocracia atual) e o moderno (uma gestão eficiente e eficaz). Aqui, pretendemos fazer breves ponderações sobre o tema.
3 – AUGUSTO, Otávio. Contratação de servidores temporários supera em 33% chamada de concursados. In: Metrópoles, 2020. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/servidor-brasil/contratacao-de-servidores-temporarios-supera-em-33-chamada-de-concursados. Acesso em: 04 de set. 2020.
4 – Previstos no art. 1 da PEC 32/2020 que altera o art. 37, incisos IIa e IV, da Constituição Federal de 1988.
5 – MATTOS, Vívian. Força de Trabalho empregada pelo Estado: pródiga ou mantenedora? Contribuições ao debate do fundo público e universidade. Tese de Doutorado, Universidade do Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 2018.
6 – Dentre elas: contingenciamento e reduções no orçamento, contrarreforma da previdência, contrarreforma trabalhista, interrupção dos concursos, restrições de direitos e instituição de nova modalidade de trabalho – teletrabalho (IN 65/2020). Esta última inclusive, repassa às trabalhadoras e aos trabalhadores a total responsabilidade por prover suas condições de trabalho.
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