O momento atual é inegavelmente ímpar! De um lado nos amedronta, de outro nos possibilita refletir sobre nossa práxis enquanto cidadãos, arquitetos e urbanistas. Caso, há algum tempo atrás, alguém sugerisse um cenário próximo ao que vivenciamos no momento, certamente seria rechaçado de forma talvez contundente. Importante ressaltar que o dinâmico contexto atual, talvez condene, num futuro próximo, os apontamentos aqui resumidamente indicados.
Não é novidade afirmar que o Brasil é parte periférica de um sistema-mundo maior orientado pela ordem social-metabólica do capital. Neste contexto, ao longo da história, notadamente no período recente, o padrão de acumulação experimentado tem reproduzido um padrão de urbanização que acirra ainda mais as desigualdades oriundas desse modo de produção. Ou melhor, a superexploração da força de trabalho e do território tem correspondido a um padrão de urbanização o qual, de forma bastante resumida, se expressa social e espacialmente numa problemática articulação entre um arquipélago de territórios dotados de infraestrutura, no sentido amplo e genérico do termo, dispersos num oceano de territórios populares precarizados. Esses dois grandes grupos apresentam diferenças e/ou desigualdades diversas, expressando a maneira, também desigual, pela qual a dinâmica da acumulação tem delineado o tecido socioespacial brasileiro, em especial as grandes metrópoles, aí incluída a diferenciação da qualidade do ambiente construído nelas presente.
Num primeiro patamar de análise, a crise provocada pela pandemia do coronavírus põe em cheque o atual modo de desenvolvimento capitalista, notadamente, aquilo que Davis (2020, p.7) nomeou de “o legado da austeridade”, questionando suas principais orientações e ordens de justificação e condenando a face horrenda de tal legado e sua respectiva orientação da política econômica. A revisão dos modos e formas de gestão e produção das cidades certamente será uma das pautas importantes a serem repensadas. Assim, a “guerra dos lugares”, de todos contra todos, e todas as formas travestidas de egoísmos, tais como empreendedorismo e precarização das relações de trabalho que têm permeado o mundo recentemente, irão também ocupar a agenda de reflexão e estudo após a tempestade.
No que concerne ao nosso campo de estudo, ou seja, ao urbanismo e por extensão à arquitetura, a análise das repercussões da epidemia nas cidades brasileiras requer um olhar mais apurado sobre a parte menos privilegiada do processo urbano brasileiro, ou seja, o que aqui nomeamos de territórios populares.
Favelas, ocupações e loteamentos clandestinos da periferia invisibilizados, que somente apareciam na grande mídia como territórios perigosos da violência, agora, são vistos como loci de onde pode se alastrar sem controle a pandemia, portanto, continuam sendo vistos como territórios perigosos.
Num primeiro momento, a epidemia desnudou a outra parte da cidade, isto é, as favelas, ocupações e loteamentos clandestinos da periferia invisibilizados, que somente apareciam na grande mídia como territórios perigosos da violência. Agora, eles são vistos como loci de onde pode se alastrar sem controle a pandemia, portanto, continuam sendo vistos como territórios perigosos. Assim, há surpresa e até perplexidade frente às condições de precariedade ali presentes. Na verdade, esse contexto construído historicamente, somado à ausência – ou mesmo uma demora na adoção de uma contundente política estatal que garanta condições mínimas para essa parcela da população (seja por transferência direta de renda ou qualquer outro dispositivo) poderá acarretar, segundo os relatos que nos chegam do exterior, um verdadeiro genocídio de parcelas significativas dessa população.
Assim, esse laboratório de horrores em que podem se transformar tais assentamentos e os grupos sociais que neles habitam, será colocado como desafio a ser enfrentado por nós, profissionais da área de arquitetura e urbanismo, após a tormenta, iluminando o caminho a ser seguido. Esperamos que este, por sua vez, inclua, dentre outras não menos importantes iniciativas, a valorização e o incentivo à universidade pública, gratuita e socialmente referenciada. Nesse contexto, será importante uma detalhada revisão dos currículos e dos modos de ensinar a arquitetura e o urbanismo, adequando-os às reais necessidades de uma significativa e esquecida parcela da população urbana brasileira. Esta tarefa necessariamente implicará, senão no abandono, na redefinição e/ou reorientação de parte dos atuais cânones que têm orientado a práxis (teoria e prática) da arquitetura e do urbanismo, principalmente aqueles vinculados às estreitas possibilidades da economia atual e, no interior das instituições de ensino superior, à valorização da estetização da arquitetura, ou em outros termos, às mentalidades vinculadas a uma arquitetura fashion, que acreditam possa ser socialmente higienizada.
No que tange ao campo do urbanismo, poderemos ver uma divisão em dois campos opostos, um expresso pelas iniciativas hegemônicas que irão, pelo que tudo indica, construir uma argumentação onde a culpa pelo genocídio recairá sobre a população de baixa renda e sua forma de fazer a cidade, enquanto outro, talvez seja a oportunidade de reinventar uma maneira de repensar a cidade. Ou seja, os apologéticos da concorrência e da competitividade, que se redefiniram como “planejamento estratégico” e, seus congêneres daí derivados, a saber, “urbanismo por projetos estratégicos”, que apostavam que o mercado poderia equacionar a questão civilizatória, não desistirão. Eles estarão prontos para propor projetos de remoção, inclusive, com recursos públicos, revestidos e justificados em termos de reforma sanitarista.
No contexto da atual epidemia, o segmento social objeto das nossas preocupações exigirá respostas e ações, muitas delas já constantes da pauta do movimento popular. Em outros termos, a discussão entre remoção ou urbanização voltará com maior força à ordem do dia. A orientação aqui privilegiada defende um intenso e extenso programa de regularização fundiária e redesenho urbanístico, que incluí a reparação e/ou prevenção de risco ambiental e a implantação de saneamento básico, ou seja, um efetivo esforço visando a melhoria do ambiente construído, criando em tais assentamentos as qualidades urbanísticas devidas.
Além disso, cabe destacar, que a universidade pública pode, imediatamente, trabalhar no sentido de colocar em prática parte do arcabouço jurídico brasileiro voltado para a questão urbana, especialmente aquele voltado para garantir assistência técnica às famílias de baixa renda (Lei nº 1.888 de 2008). Ou seja, após a tormenta, os saberes e as propostas socialmente referenciados dessa instituição já podem ser colocados efetivamente em prática.
A batalha já começou! A articulação entre a crescente precarização das relações de trabalho e a gestão neoliberal do orçamento público, com destaque para a PEC-95 (“PEC do fim do mundo”), acarretará não somente óbices na capacidade de reprodução dos estratos mais baixos da classe trabalhadora, mas, principalmente, sua própria sobrevivência. A impossibilidade de este segmento ter acesso às orientações gerais e meios concretos de se precaver contra a pandemia, que têm sido amplamente divulgadas, resultará na contaminação daqueles que hoje não têm condições de se isolar e de ter acesso às suas necessidades básicas cotidianas (além dos negacionistas). Assim, o cenário pode se tornar ainda pior, pois não havendo uma organização do Estado, conforme estamos vivenciando, poderá disparar a emergência de situações de desespero por um imenso contingente da população, facilitando a irrupção de atos diversos que tendem ao caos, a um “salve-se quem puder”, que não ficará muito distante de algumas produções cinematográficas de Hollywood! Ou seja, considerando a atual epidemia, as diferentes formas praticadas de isolamento social, a estrutura de saúde existente nas cidades e, por fim, a desigualdade socioespacial em um país com dimensões continentais irão abrir novos caminhos para investigação cientifica, que poderão (ou não) indicar o que é enunciado no título deste breve ensaio.
* Professor Titular do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, PPGAU/UFF. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense, NEPHU/UFF.
** Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, PPGAU/UFF. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense, NEPHU/UFF.
*** Doutorando do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, PPGAU/UFF. Pesquisador do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos da Universidade Federal Fluminense, NEPHU/UFF. Arquiteto e Urbanista do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Rio de Janeiro.
Artigo publicado originalmente no livro
Coronavírus e as cidades no Brasil:
reflexões durante a pandemia
(Outras Letras, 2020)
Bibliografia
DAVIS, Mike et. al. Coronavírus e a luta de classes. Terra sem anos: Brasil, 2020.
Universidade e Luta pela Moradia (Organizadores: Glauco Bienenstein, Regina Bienenstein, Daniel Mendes Mesquita de Sousa. 1a. Ed. Rio de Janeiro: Consequência Editora, 2017. 320p.
Disponível em: <https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2020/03/27/especialistas-caracteristicas-do-brasil-nao-permitem-o-isolamento-vertical.htm> Acesso em: 25/03/20.
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