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BRASIL

Cajueiro: desapropriações, violências e solidariedade na resistência popular

Horácio Antunes de Sant’Ana Júnior, de São Luís, MA
Moradora, negra, entre 40 e 50 anos,gesticula e apela aos policiais militares no Cajueiro. Entre eles há uma portão.
Ingrid Barros/Brasil de Fato

No último dia 12 de agosto, fez um ano do terror vivido devido a violento despejo e derrubada das casas de 22 famílias no Cajueiro e da expulsão de mulheres, crianças e idosos da comunidade e de seus apoiadores que protestavam na porta do Palácio dos Leões em São Luís do Maranhão.

No dia 12 de agosto de 2019, a Comunidade Tradicional Cajueiro foi acordada pelo Batalhão de Choque da Polícia Militar do Maranhão. Sem aviso prévio, sem cumprimento dos ritos legais previstos para situações como essa, seguindo as orientações de funcionários da empresa em nome da qual a Justiça concedeu a desapropriação, os pertences das famílias iam sendo jogados em caminhões e suas casas derrubadas. A violência brutal foi uma marca dessa manhã. Gás de pimenta foi jogado contra aqueles que resistiam, sem respeitar pessoas idosas, crianças e, inclusive, uma mulher grávida. Uma senhora que tinha passado por recente operação de cesariana foi retirada à força de sua casa. Algumas das pessoas despejadas que não estavam em casa, ao chegarem, se deparavam com sua moradia derrubada.

O terror não se encerrou naquela manhã. Ainda sem saber de possível data e horário da desapropriação, pois não houve qualquer comunicação oficial anterior aos moradores, mas ouvindo rumores de que os ritos legais não seriam cumpridos e o despejo seria feito de surpresa, a qualquer momento, um grupo de moradores do Cajueiro, no dia 11 de agosto, véspera dos acontecimentos que relatamos aqui, se dirigiu ao Palácio dos Leões, para tentar ser ouvido pelo Governador Flávio Dino. Como não conseguiram a desejada audiência, resolveram passar a noite na porta do Palácio e assim o fizeram. Na manhã do dia 12, tiveram a notícia do que estava ocorrendo na comunidade e uma parte do grupo voltou para lá. Outra parte permaneceu acampada onde tinha passado a noite e insistiu na possibilidade de diálogo com o Governador. Depois de um dia inteiro de total menosprezo, sem obter qualquer resposta palaciana, aquele grupo de pessoas cansadas, desiludidas, decepcionadas e sofridas resolveu permanecer ali acampadas, resistir e insistir no mínimo de reconhecimento e respeito.

Mas a violência não se contentou com as derrubadas das casas e agressões aos moradores do Cajueiro. Quando os manifestantes e, dentre eles, mulheres, pessoas idosas e crianças, ajeitavam suas coisas para dormir, novamente a surpresa. A Polícia Militar comandada direta e presencialmente pelo Secretário de Segurança Pública do Estado do Maranhão, como se estivesse tratando com um perigoso grupo de terroristas, literalmente varreu, como se fosse lixo, aquelas pessoas da porta do Palácio. Batalhão de choque batendo em seus escudos e fazendo um barulho ensurdecedor, balas de borracha, spray de gás de pimenta… todos esses recursos usados contra pessoas desarmadas e desamparadas que lutavam pelo direito ao seu território. Apoiadores, ao saber do que estava acontecendo, foram prestar seu apoio e também sofreram toda a sorte de agressões. Um jornalista popular preto foi levado para a Delegacia de Polícia, um advogado sofreu tiro de bala de borracha, advogados foram afrontados, pessoas foram empurradas e impedidas de se aproximar dos moradores do Cajueiro que estavam encantoados e amedrontados. Como deseja o governo, a porta do Palácio estava “limpa”!!! “Limpa”???

Mais uma vez, a humilhação e desrespeito foram usados como instrumento de desmobilização de uma luta por defesa de território, no caso do Cajueiro, ancestralmente ocupado e com posse da terra reconhecida pelo Governo estadual desde 1998, através da criação de um assentamento rural e entrega, pelo Instituto de Terras do Maranhão (Iterma), de título condominial outorgando, através de Escritura Pública registrada em Cartório, pouco mais de 600 hectares para 103 famílias e instituições locais.

Os acontecimentos do dia 12 de agosto têm sua origem na tentativa de construção de um porto privado cujos primeiros passos foram dados em 2014, ainda no mandato da Governadora Roseana Sarney Murad, por uma empresa criada para esse fim pela construtora Paulista WTorre e que se denominava WPR – Gestão de Portos e Terminais. Depois de muitos escândalos, processos judiciais e comprometimento de sua imagem, a empresa mudou seu nome para TUP Porto São Luís. Ainda no governo de Roseana, foi dada ao empreendimento a Licença Prévia (LP) pela Secretaria de Meio Ambiente, sem que a comunidade fosse devidamente ouvida em audiência pública, como prevê a legislação ambiental brasileira. A única audiência pública que consta no processo de licenciamento ambiental do empreendimento aconteceu no Comando Geral da Polícia Militar do Maranhão, no bairro do Calhau, no segundo semestre de 2014, como forma de intimidar e impedir a efetiva participação da comunidade. Sem acesso aos estudos ambientais, pessoas de outras comunidades, na sua maior parte distantes do Cajueiro, foram levadas para um farto lanche e para criar a impressão de legitimidade do evento. Porém, os moradores do Cajueiro, ao mesmo tempo, faziam uma Assembleia Popular na União de Moradores do Cajueiro, recusando o projeto do porto.

Desde o abril de 2014, os moradores do Cajueiro passaram a conviver com intimidações, cerceamentos, divisões na comunidade promovidas por agentes da empresa. Boatos e informações desencontradas eram espalhados na comunidade com a finalidade de confundir seus moradores e criar a aceitação de que o deslocamento seria inevitável. Uma empresa de segurança, que posteriormente se descobriu que não tinha permissão da Polícia Federal para atuar, foi contratada para pressionar, vigiar e intimidar os moradores. No final do ano, às vésperas do Natal, 19 casas foram derrubadas, com apoio da Polícia Militar e sem nenhum mandado judicial e Arnaldo Melo, que assumiu o comando do Governo estadual em dezembro, assinou um decreto de desapropriação que afetaria áreas do Cajueiro. Desde esse ano, as famílias tradicionais do Cajueiro não tiveram mais descanso.

Com o final do Governo Roseana, que não conseguiu eleger seu candidato à sucessão, a comunidade passou a alimentar a esperança de que o porto não seria construído e de que poderiam retornar ao seu modo de vida baseado na pesca, na mariscagem, na agricultura familiar, na coleta de frutos, na extração vegetal e no artesanato. Desde que foi instalada a equipe de transição para o Governo de Flávio Dino até o início de 2016, havia uma situação de permanente diálogo da equipe governamental com moradores e moradoras da comunidade do Cajueiro que resistiam à instalação do porto. Inúmeras reuniões foram feitas com a equipe de transição e, a partir de 2015, com secretários de governo e agentes governamentais participavam regularmente de reuniões e assembleias populares realizadas na comunidade. Houve também uma reunião no início de 2016 com o próprio Governador, mediada pela Subprocuradora da República Débora Duprat. Em seus primeiros atos, o Governador suspendeu a Licença Prévia do Porto para estudos e anulou o decreto de desapropriação assinado por Arnaldo Melo.

A partir de 2016, para a construção do porto, a WTorre, que vinha passando por sérios problemas financeiros, conseguiu avançar negociações com vista a uma parceria com uma construtora chinesa conhecida por seu nome em inglês: China Communications Construction Company (CCCC). A partir das notícias divulgadas na época em seu próprio portal de notícias, pode-se constatar que o Governo do Maranhão se envolveu nesse processo de negociação. As reuniões com os moradores foram se escasseando e, sem comunicação à comunidade, a Licença Prévia que havia sido dada pelo Governo Roseana foi reabilitada e, pouco tempo depois, a Licença de Instalação foi concedida, sem levar em consideração os inúmeros problemas ambientais, sociais e fundiários apontados, em alguns casos, até mesmo judicialmente. Desde então, a atuação governamental na comunidade tem sido francamente favorável à instalação do empreendimento, contribuindo nos processos de divisão interna dos moradores e contribuindo para as cooptações promovidas pela empresa. Desde então, com base nessas licenças governamentais, negociações e compras de terrenos em um assentamento rural estadual, sem qualquer mediação do Iterma (exigência da Escritura Pública do Condomínio) foram realizadas, mais casas foram derrubadas, o desmatamento da área foi iniciado.

Em todo esse período, chama atenção o grande número de processos judiciais abertos pela comunidade ou pela empresa. Num dos principais processos, se questiona a regularidade do título da terra apresentado pela empresa, que tem fortes indicadores de grilagem. Chama também atenção as tentativas de cerceamento por parte da empresa à atuação de agentes públicos, pesquisadores e apoiadores da comunidade; a situação de insegurança para lideranças locais; as intimidações sofridas pelas mulheres da comunidade assediadas por seguranças e funcionários. Enfim, temos aqui uma tentativa de instalação de um porto privado completamente eivada de contestações e irregularidades.

Nesse ano de 2020, moradores e moradoras do Cajueiro que ainda resistem na defesa de seu território têm enfrentado uma nova ação direta do Governo estadual em favor da empresa. Dois decretos de desapropriação foram assinados. Um deles, pelo próprio Governador, para a área pretendida para a construção de vias de acesso entre os sistemas rodoviários e ferroviários existentes e o porto. O outro decreto de desapropriação voltado para sete proprietários localizados na área direta de construção do porto foi assinado pelo Secretário de Indústria e Comércio, desrespeitando um dispositivo da Constituição do Maranhão que prevê que esse tipo específico de decreto somente poderia ser assinado pelo próprio Governador. Com base nesse decreto e contando com a participação do Juiz de Direito encarregado do processo, 5 dessas famílias não resistiram às pressões e negociaram seus terrenos e casas. No entanto, percebendo a manobra que vinha sendo feita, as famílias de João Germano da Silva (seu Joca) e de seu irmão Pedro Sírio da Silva resistiram à pressão e não aceitaram negociar suas propriedades.

A partir de provocação do Ministério Público, posteriormente às negociações acima referidas e temendo um processo de improbidade de administrativa, o próprio Secretário de Indústria e Comércio reconheceu a ilegalidade do decreto que assinara e o anulou. A empresa recorreu ao Tribunal de Justiça do Maranhão e surpreendentemente o Desembargador encarregado do caso anulou a anulação do decreto e, dando sequência à colaboração com a empresa, o Governo do Estado, que é quem deveria fazê-lo, não recorreu da decisão do Tribunal.

No Cajueiro, seu Joca, do alto de seus 86 anos, tem dito publicamente que não sai da casa que construiu, do terreno a partir do qual criou treze filhas e filhos, da casa em que viu a saúde de Dona Diná Amorim da Silva, sua amada esposa, se desgastar até a morte pelo sofrimento de ver os esforços de toda uma vida tão ameaçados. Seu Joca, que viu seu irmão Pedro Sírio perder a vida para a Covid-19 em abril desse ano e que resistiu ele mesmo ao corona vírus e recuperou sua saúde, afirma que, se o processo de desapropriação for levado adiante, vão ter que retirá-lo à força de dentro de sua casa ou derrubá-la com ele dentro. E esse processo tem, em plena pandemia (como em Minas Gerais), prosseguido e estão tentando fazer, como diria o ministro do Meio Ambiente em famosa reunião governamental, passar a boiada agora na Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV). Mais uma vez as pressões e ameaças sobre as pessoas que resistem na defesa de seu território se intensifica.

Em plena pandemia de Covid-19, qualquer ação de desapropriação no Cajueiro, repetindo o repertório adotado em 2019 relatado acima, indica que, apesar do importante papel político que esse Governo tem representado na resistência ao avanço fascista de Jair Bolsonaro no Brasil, quando as decisões de poderosos agentes econômicos se impõe, as práticas efetivas se equiparam. Não importa se o que se impõe é o capital americano, como no caso do Centro de Lançamentos de Alcântara (que não poderemos detalhar aqui, mas que é um projeto encampado por Bolsonaro que contou com apoio da base dinista no Congresso Nacional), ou se o capital é chinês, como no caso da CCCC. No combate ao bolsonarismo, a solidariedade dos que estão sob permanente ameaça para com os mais vulneráveis deve se intensificar. No combate ao bolsonarismo, temos que lembrar permanentemente de D. Pedro Casaldaglia quando dizia: “Na dúvida, fique do lado dos pobres”.