Nos últimos dias nos deparamos com números aparentemente insólitos, neste país de perplexidades diárias. São eles: quase 110 mil mortes por Covid-19, sem falar da subnotificação que acrescenta a este número aproximadamente 50 mil pessoas (mortes por SRAG, segundo a análise de Gilberto Calil); denúncias sólidas de corrupção na família presidencial – por meio dos milhões que envolvem o caso Queiróz; articulações espúrias e escusas com figuras carimbadas do toma-lá-dá-cá – Temer e o Centrão – o que já se traduz em regalias, cargos e números: mais recursos para estados e municípios governados pelos novos aliados, verbas carimbadas por deputados e senadores na saúde, representações internacionais. Em meio a tudo isso, houve um súbito aumento da popularidade presidencial, conforme enquetes do Datafolha nestas primeiras semanas de agosto de 2020. O tóxico e “cloroquínico” presidente obteve aumento de aprovação entre trabalhadores/as pobres, que com o crescimento do desemprego e das dificuldades dos que estão na informalidade, aprofundadas na pandemia, viram no auxílio emergencial a tábua de salvação que precisavam para suprir suas necessidades mais elementares. O auxílio já está sendo apelidado de “bolsa capitão”.
André Singer (2012), em sua análise sobre os governos petistas, nos falava de um “realinhamento eleitoral”, quando da criação do Programa Bolsa Família (PBF), em 2004, que constituiu uma base sólida para a continuidade dos governos petistas, embora ele se combinasse a outros elementos. A política de recuperação do poder de compra do salário mínimo, que teve importante impacto nos benefícios da previdência social e no BPC (Benefício de Prestação Continuada da assistência social, vinculado ao SM), teve mais impacto no Coeficiente de Gini que o PBF (Boschetti e Teixeira, 2019) devido ao seu reduzido valor e baixa capacidade distributiva. Agora, animado com a repercussão do auxílio emergencial implantado exclusivamente em decorrência da pandemia, Bolsonaro “descobriu” o mote do realinhamento e já pensa em um programa de “transferência de renda” (1) para chamar de seu – o Renda Brasil.
Consideramos pouco pertinente e equivocada a irritação de segmentos à esquerda com a população empobrecida e dilacerada, quando exigem uma consciência política que não foi estimulada nas últimas décadas e não resiste à fome e às necessidades mais prementes, flutuando seu apoio político. Não há qualquer novidade no uso oportunista da miséria e da ignorância para criar bases de legitimidade e sustentação: a fome é pragmática. E do ponto de vista dos milhões de pauperizados, é preciso considerar o impacto de R$ 600 a R$ 1200,00 mensais nas suas vidas (e que pode chegar a montante superior ao salário mínimo de R$ 1.045,00). São milhões de brasileiras/os que, de um dia para outro, ficaram sem condições de alimentar suas famílias. O impacto tem sido monumental, apesar deste valor não ter vindo do governo ultraneoliberal de Bolsonaro e Guedes, que propôs ao Congresso irrisórios R$ 200,00! Mas, sabemos que a desinformação e a falta de memória se combinam para transferir simpatias para quem não merece. Como fazer uma crítica pela esquerda deste processo?
Numa sociedade monetizada, marcada pela lógica do valor – o que envolve produção e reprodução -, quem não tem renda alguma se aproxima da morte e da brutalidade provocada cotidianamente pelo pauperismo. Este debate envolve como prover as necessidades mais elementares para as maiorias que hoje – no Brasil e no mundo – não encontram emprego ou quando o encontram, se deparam com uma imensa precarização, baixos salários, superexploração. Os programas de “transferência de renda” que se espraiam nos países capitalistas desde a crise da década de 70, longe estão de serem políticas de esquerda, mas têm sido sucessivamente utilizados por partidos de direita e da social democracia, com diferentes tonalidades e abrangência, diante da incapacidade de o capitalismo assegurar pleno emprego. Em sua origem, foram defendidos por neoliberais como Milton Friedman, sempre com valores baixíssimos para não desestimular ao trabalho, mesmo que não haja trabalho para todos e todas. O Bolsa Família, que resultou da unificação de vários auxílios assistenciais pontuais e focalizados, foi implantado no Brasil em 2003, no início do Governo Lula, na esteira de expansão desses programas em toda a América Latina. Essa era nossa crítica ao Programa Bolsa Família: seu não reconhecimento como direito social, o que possibilita seu uso de forma clientelista, seus valores extremamente rebaixados, sua ínfima parte na alocação do fundo público, mas com grande saldo político.
Os programas assistenciais de “transferência de renda” são estratégias político-econômicas importantes para garantir minimamente a sobrevida de trabalhadores/as de modo a garantir sua disponibilidade para a exploração; para assegurar um fluxo básico de consumo, evitando um curto-circuito na rotação do capital, e para controlar socialmente o pauperismo e os comportamentos das “classes perigosas”. No entanto, para quem está desprovido de todas as condições de reprodução social no capitalismo, programas que transferem recursos públicos sob a denominação de “transferência de renda”, “renda básica”ou “renda mínima” são uma questão de vida ou de morte, ainda mais em países como o Brasil, marcado pela informalidade, baixos e instáveis salários e precarização agressiva. A bárbara condição de mais de 100 milhões de homens e mulheres se tornou explosiva na pandemia. Se a “transferência de renda” é funcional à reprodução do capitalismo, não se pode negar que ela é igualmente necessária para reprodução da classe trabalhadora. Por isso, a esquerda deve fazer a defesa tática da “transferência de renda”, não nos termos e parâmetros panópticos e draconianos das propostas neoliberais – mesmo de um neoliberalismo de cooptação, conforme a análise de Cislaghi (2020). Este é o desenho que deverá ser reeditado pelo “museu de grandes novidades” do bolsonarismo com a proposta da “Renda Brasil”, como se verá mais adiante. Mas antes disso, queremos lembrar que pode existir um outro desenho para este tipo de política social.
Quando participamos da elaboração do programa de Guilherme Boulos e Sônia Guajajara, pelo PSOL, na disputa presidencial de 2018, elaboramos coletivamente um documento sobre Assistência e Seguridade Social que, além de defender a Assistência Social como política pública de seguridade social e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) com seus serviços socioassistenciais assegurados em lei, apontava uma perspectiva progressista de “transferência de renda”, com seu reconhecimento como direito social:
“Transformar o Programa Bolsa Família em uma Renda Básica de Cidadania Universal, como política pública e direito social, com: a) exclusão das atuais condicionalidades, tendo em vista que educação e saúde são direitos sociais constitucionais e não devem ser condição para acesso à assistência social. A assistência social pode e deve ser, via mobilização nos seus equipamentos, estimuladora do acesso à saúde e educação, mas não se pode impor uma condição que recai sobre as mulheres e as crianças quando muitas vezes a ausência do acesso àquelas políticas nada tem de responsabilidade individual ou das famílias. Por exemplo, a criança que não consegue chegar na escola por ausência de transporte e a família é penalizada e excluída do programa; b) alteração dos critérios per capita para acesso, de modo a ampliar o número de pessoas beneficiadas, a exemplo do BPC, ½ Salário Mínimo per capita, conforme apontava a proposta inicial da LOAS e que foi vetada no Governo Itamar Franco, pela equipe econômica coordenada por FHC. Vale lembrar que o Cadastro Único registra informações socioeconômicas de famílias com renda mensal per capita de até meio salário mínimo. c) aumento do valor do benefício e correção monetária anual. Em maio de 2018, o PBF abrangeu 13.919.429 famílias, que receberam benefícios com valor médio de R$ 178,46. O valor total transferido foi de R$ 2.484.070.551,00 neste mês. (MDS, 2018). Nossa proposta é de ½ a 1 Salário Mínimo, considerando a composição familiar e a presença de idosos, pessoas com deficiência e crianças. d) Não computar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) no cálculo da renda familiar, para efeito do acesso ao Programa de Renda Básica de Cidadania Universal
Nossa proposta defendia constitucionalizar o direito à “transferência de renda”, fugindo ao oportunismo político do governo de plantão (qualquer um), saindo da lógica da dádiva e da tutela para a lógica do direito – mesmo reconhecendo as limitações deste último. Mas vale afirmar que, num país extremamente desigual, racista e misógino como o Brasil, a defesa da emancipação política e da igualdade formal perante a lei, muitas vezes tem muito sentido, dada a violência e a discricionariedade que marcam o Estado e a sociedade brasileiras. A proposta previa, também, ampliar a apropriação do fundo público pelos/as trabalhadores/as, pois o programa seria financiado no contexto do fim do teto de gastos (EC 95) e da DRU (EC 93), da realização de auditoria da dívida pública e controle de fluxo de capitais, da cobrança da dívida empresarial com a previdência, da taxação de grandes fortunas, e com uma reforma tributária que realmente reduzisse a carga de impostos sobre o trabalho e a ampliasse para o grande capital.
Este é um desenho inteiramente diferente do que vem sendo anunciado a conta gotas pelo governo ultraneoliberal e neofascista, que pegou carona na tragédia da pandemia e no impacto imediato do auxílio emergencial no Coeficiente de Gini (que mede a desigualdade de renda, mas não de apropriação da riqueza, e nem de acesso à propriedade, é sempre bom lembrar) para defender o que criticava antes. Presos ao argumento da defesa férrea do teto de gastos, dentro da lógica ultraneoliberal do ajuste fiscal permanente (Behring, 2020), o governo propõe financiar o “Renda Brasil” a partir da extinção de direitos trabalhistas como seguro-defeso, salário família e abono salarial (cujo valor é de um salário mínimo), sob o discurso de que seriam “ineficientes”. Seu financiamento sobrecarregaria ainda mais os/as trabalhadores/as, porque haveria criação de novos impostos, a exemplo da tributação sobre pagamentos por meio eletrônico (eufemismo para a antiga CPMF) e aumento do imposto de renda. Na qualidade de programa assistencial, seus beneficiários não terão acesso ao seguro-desemprego e previdência social. Assim, o programa substituirá o Bolsa Família (PBF) – com seus irrisórios R$ 178,00 a 200,00 no máximo – por um benefício um pouco maior, de R$ 250,00 a 300,00, para um universo mais amplo que o PBF: cerca de dez milhões de pessoas a mais, segundo declarações de Guedes. Ou seja, ao invés de trabalho com direitos, o governo bolsonarista pretende lançar 52 milhões de trabalhadores/as pobres no “Renda Brasil”, a um custo aproximado de R$ 50 bilhões, segundo notícias já divulgadas. O governo argumenta que manter os valores do auxílio emergencial não seria sustentável para o ajuste fiscal das contas públicas, que os direitos trabalhistas como salário família, abono salarial e seguro defeso não são suficientemente focalizados e, por isso, são “ineficientes”. Na prática, trata-se de reduzir direitos do trabalho, ampliar um programa assistencial de “renda mínima”, de natureza clientelista e a baixo custo, para ampliar sua base eleitoral junto aos trabalhadores/as pobres e substituir o Bolsa Família, considerado uma marca do lulismo.
O Renda Brasil vem sendo tratado como estratégico, tendo em vista as eleições presidenciais de 2022, conforme vem aparecendo largamente na imprensa. É uma aposta arriscada do bolsonarismo, pois esses que aumentaram sua popularidade podem abandonar o barco, ao ver sua renda mínima cair pela metade, depois de experimentar o auxílio emergencial, conforme a reflexão de Leonardo Sakamoto, sem falar dos/as trabalhadores/as atingidos diretamente com o corte de programas que pagam um salário mínimo. Diz-se, por fim, que os que atuarem por meio da Carteira Verde e Amarela, que será vinculada ao Renda Brasil, poderão receber o salário reduzido junto aos R$ 300 do programa. Porém, não terão acesso a leis trabalhistas como seguro desemprego, previdência social e FGTS. Não resta dúvida de que o impacto econômico e político da proposta não pode ser subestimado.
Do ponto de vista do orçamento público, podemos vislumbrar um aumento significativo da função Assistência Social devido à “transferência de renda”, com corte de recursos de outras políticas e rubricas centrais – como educação e saúde – e não com medidas como as destacamos antes e que não operam na lógica do ajuste. Ou seja, se trata de uma política de cobertor curto, que tira dos serviços e direitos para a “transferência de renda”, em proporções muito maiores do que já vinha ocorrendo.
O que se vislumbra é um processo acelerado e ampliado de assistencialização da pobreza, o que difere imensamente do direito à assistência social. Este último pode e deve compor uma política de seguridade social, fundada em trabalho estável com direitos, previdência e saúde públicas e universais. Como direito social, programas de “renda básica universal” podem complementar ou substituir temporariamente a perda de direitos do trabalho, mas jamais terão a capacidade de reduzir desigualdades no acesso à riqueza socialmente produzida. Sua expansão expõe, na verdade, a incapacidade do capitalismo de superar suas crises. A substituição de empregos estáveis e com direitos por programas assistenciais de “transferência de renda” clientelistas revela a mais brutal forma de subsunção do trabalho ao capital: além de manter a classe trabalhadora sem trabalho a baixo custo, nos limites da sobrevida, também age para rebaixar o valor dos salários, transfere para o Estado a quase totalidade dos custos da reprodução da força de trabalho, já que desonera o capital, e cria um ciclo de reprodução de desigualdades ainda mais perene, pois interdita o acesso de homens e mulheres a possibilidades de trabalho com direitos. Mais que garantir proteção social, programas como o “Renda Brasil” querem mesmo é garantir proteção ao capital.
A esquerda não pode se furtar de disputar o fundo público na perspectiva de ampliação dos direitos sociais e humanos, onde cabe, sim, um programa efetivo e contundente de atendimento às necessidades sociais, que favoreça a classe trabalhadora. Para combater o oportunismo ultraneoliberal e neofascista, é necessário qualificar o debate e pautar propostas na perspectiva das lutas anticapitalistas, mostrando o quão falacioso é este projeto que se enuncia.
Notas
1 – Tradicionalmente os programas assistenciais sob a modalidade de benefícios monetários vêm sendo chamados de transferência de renda. No entanto, as aspas se justificam, pois há um grande debate sobre se tais recursos são efetivamente renda, já que são parte do fundo público e não são remuneração da força de trabalho, embora muitas vezes se constituam como única possibilidade de sobrevivência da superpopulação relativa estagnada. Por outro lado, como parte do fundo público, destacadamente em países com cargas tributárias regressivas, a exemplo do Brasil, não tem qualquer impacto redistributivo.
Referências
BEHRING, Elaine Rossetti. Fundo Público, Valor e Política Social. No prelo. 2020.
BOSCHETTI, Ivanete & TEIXEIRA, Sandra Oliveira. O draconiano ajuste fiscal do Brasil e a expropriação de direitos da seguridade social. In: SALVADOR, Evilásio, BEHRING, Elaine e LIMA, Rita de Lourdes (ORGs.) Crise do Capital e Fundo Público – implicações para o trabalho, os direitos e a política social. São Paulo: Cortez Editora, 2019.
CISLAGHI, Juliana Fiuza. Do neoliberalismo de cooptação ao ultraneoliberalismo: respostas do capital à crise. Disponível aqui , Partes I, II e III, 2020.
SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo: Reforma Gradual e Pacto Conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
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