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BRASIL

Governo pretende taxar os livros, mas não as grandes fortunas

Ministro Paulo Guedes, o da estante vazia, recorre ao argumento de que o livro “é um produto de elite”

Tiago Silveira*, de Porto Alegre, RS

Nessa semana o governo Bolsonaro-Guedes anunciou que pretende taxar os livros em 12%, defendendo que este é um produto de elite e por isso quem o compra poderia pagar um preço maior. Ainda, na maior cara de pau, contra tudo o que seu governo defendeu e aplicou até o momento, colocou que o “governo dará livro de graça aos pobres” em um evidente jogo discursivo para “defender” sua taxação como se beneficiasse aqueles que hoje não tem acesso ao mercado de livro.

A isenção tributária ao mercado de livros não é pauta recente, vem desde muito tempo, como bem apresentado no manifesto “Em Defesa do Livro” assinado pelas entidades representativas do setor livreiro: “a Constituição Democrática de 1946 consagrou no país o regime de isenção de impostos para o papel utilizado na impressão de livros, jornais e revistas… De tal forma se enraizou no espírito da sociedade brasileira o apego à importância da leitura como fonte de educação e crescimento intelectual, de formação de cidadãs e cidadãos, de difusão da cultura e da informação qualificada, que a reforma de 1967 não só preservou o ‘espírito imunitário’ da Constituição, como ampliou, estendendo a isenção ao próprio objeto: livro… A Constituição Cidadã de 1988 não poderia fazer diferente e consolidou a reiterada jurisprudência que isenta o livro, ferramenta básica de conhecimento, educação e cidadania, de impostos. A atual Carta Magna diz, em seu artigo 150, que é vedada à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios criarem impostos de qualquer natureza sobre o livro e a imprensa escrita”.

Assegurado constitucionalmente a não tributação do livro, não o isenta, todavia, de incidir sobre ele as chamadas Contribuições de Bens e Serviços. Porém, desde 2004 a alíquota das contribuições sociais sobre os livros foi zerada pela lei nº 10.1865. É nessa alíquota que o atual governo pretende mexer.

Na lógica do governo, sendo o livro um produto “de elite”, seus compradores poderiam pagar um preço maior ainda por este produto. Primeiro é preciso apontar que o livro não deveria ser um produto de elite, deveria ser de fácil acesso no mercado e mesmo de fácil acesso em bibliotecas públicas em uma verdadeira política de acesso cultural. Mas sabemos que o preço médio de um livro no Brasil (valor de R$ 40,00 em 2017) é inacessível para grande parte da população, onde um em cada cinco trabalhadores tem renda média de R$ 471,00 segundo o IBGE – o livro corresponderia a 10% dessa renda. Cabe ainda destacar que em pesquisa realizada em 2005, o preço médio do livro no Brasil (de R$ 26,00 na época) era três vezes mais que em países como a França e Japão. A lógica do governo em taxar o livro não é sua popularização, é apenas torná-lo um item ainda mais restrito a uma pequena parcela da população já detentora de poder, dinheiro e cultura.

O manifesto “Em Defesa do Livro” aponta que “É fácil calcular o quanto o governo poderá arrecadar com a nova CBS (Contribuição de Bens e Serviços), proposta em regime de urgência ao Congresso. Muito mais difícil é avaliar o que uma Nação perde ao taxar o bem comum da formação intelectual de suas cidadãs e cidadãos. Em perspectiva histórica, o dinheiro arrecadado à cultura, aos livros e à formação científica, significa, de fato, um desinvestimento no crescimento futuro do país – que não se dará sem o crescimento intelectual amplo e igualitário de sua população”.

Em uma rápida análise do quanto a taxação de livros poderia trazer aos cofres públicos, aplicando o percentual de 12% sobre o faturamento em venda de livros em 2019 (valor estimado em 1,75 bilhão) e em comparação com o valor estimado se aplicássemos um imposto previsto na constituição – Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) observamos a grande hipocrisia de qualquer reforma de tributação e alteração de alíquotas de contribuições que não mexer nas reais desigualdades tributárias nacionais. A taxação sobre os livros não representa nem 1% do valor arrecadado se o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) fosse efetivamente aplicado. Em estimativa recente, a expectativa de arrecadação com o IGF gira em torno dos R$ 75 bilhões, enquanto a taxação dos livros corresponderia a algo como R$ 210 milhões, apenas 0,3% do IGF.

A taxação dos livros vai aumentar a desigualdade cultural no país que já é enorme, mas que vinha de alguma forma diminuindo. Segundo dados da Bienal do Livro do Rio de Janeiro, dos 600 mil participantes, grande parte era de jovens de classe C. Ainda, na Festa Literária das Periferias 72% dos frequentadores eram de não brancos, e 68% pertencentes às classes C, D e E. Em coluna de opinião recente no jornal Folha de São Paulo, o Editor da Companhia das Letras (maior grupo editorial brasileiro) Luiz Schwarcz aponta que “Diante do crescimento da demanda de livros por uma nova classe, que passou a participar do mercado livreiro pela primeira vez, os editores mantiveram preços estáveis, mesmo num período de inflação considerável, como nos anos Dilma/Temer. Com preços relativamente estáveis, os novos leitores de classes menos favorecidas permaneceram no jogo, e o grande perdedor foi o livreiro, que tinha seus aluguéis e salários aumentados, e o faturamento, diminuído. Esse é um exemplo da fragilidade da cadeia editorial/livreira, que agora enfrentará um inimigo diferente da inflação e quebrará em dominó com a elitização de seu produto e mais: com taxas que não cabem em seu orçamento”. Soma-se a esse cenário, o grande impacto que teve na categoria o fechamento de livrarias e lojas para conter a pandemia do coronavírus, provocando uma queda no faturamento que chegou a 47,6%.

Taxando em benefício próprio, já que o ministro Guedes parece não ser muito afeito a leitura, como pudemos acompanhar em recente live onde este aparecia em frente uma estante vazia de livros. Um dos comentários sobre o fato parece ser um vaticínio sobre o que estaria por vir: “fiquei impressionado com a estante de Paulo Guedes. É um deserto de livros, que talvez explique o deserto de ideias para a economia na pandemia. Podia comprar uma enciclopédia para enfeitar a live, ministro.”

Enquanto isso, na capital de nosso país vizinho, em Montevidéu, foram distribuídos livros em cestas básicas para enfrentar o isolamento: “Não se trata apenas de minimizar a crise em termos econômicos, mas de fortalecer o espírito. A literatura e a arte colaboram com isso. A distribuição permite que, em alguns casos, obras cheguem a pessoas que habitualmente não compram livros” explica Juan Canessa, secretário-geral da prefeitura e idealizador da iniciativa.

“Em Defesa do Livro” encerra seu manifesto lembrando que “ainda não se descobriu nada mais barato, ágil e eficiente do que a palavra impressa – em papel ou telas digitais – para se divulgar as ideias, para se contar a história da humanidade, para multiplicar as vozes da diversidade, para denunciar as injustiças, para se prever as mudanças futuras e para ser o complemento ideal da liberdade de expressão”. As injustiças nos Brasil, estão em todas as partes, e como não poderia deixar de ser, estão presente no sistema tributário brasileiros que é regressivo, ou seja, onerando mais aqueles que menos tem. É preciso que seja feita uma ampla reforma tributária no Brasil, taxando as grandes fortunas, os lucros e dividendos. Começar dessa forma não só não soluciona o problema, como joga querosene no problema. Talvez o equivalente moderno de uma queima de livros (como na distopia Fahrenheit 451) seja limitar sua circulação e seu acesso por amplas camadas da população através de taxação.

Por falar no romance Fahrenheit 451, escrito por Ray Bradbury em 1953, deixamos uma trecho dessa obra para reflexão e indicamos sua leitura:

“Não se pode construir uma casa sem pregos e madeira. Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver, dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag.”

 

*Economista. Texto publicado na Página do Movimento Economia Pró-Gente no Facebook.