Pular para o conteúdo
TEORIA

O “papel” do panfleto

Abel Ribeiro*

Começo 

A quem interessar a crítica. Quem não questiona a origem e o significado ideológico das palavras escorrega na reprodução acrítica de frases e ideias que elas nos impõem na transmissão de informações e produção de efeitos e sentidos entre os locutores.

No sistema semântico de significados das palavras há sempre uma variedade de interpretações, afinal a linguagem é um campo de disputa e só aquele que não duvida, acha que encontrará neutralidade no discurso dos sujeitos. Ora, o lugar da palavra no mundo é deveras contraditório e produto de construções históricas concretas que ajuízam interesses sociais expressos nas ideias institucionalizadas nas relações de poder e de hegemonia.

Uma ajudinha de Pêcheux

Para Pêcheux (1988, p. 160), o sentido das palavras tem um “caráter material”, dependente da “formação ideológica”. A dependência, que é constitutiva do sujeito, é explicitada de duas maneiras. O sentido da palavra “é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio histórico, no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas)” (PÊCHEUX, 1988, p. 160) e b), ou seja, ele localiza “a relação entre o sentido das palavras e dos enunciados e a formação ideológica não é determinada pela formação discursiva e, sim, pelo “estado da luta de classes” (MAGALHÃES, 2019, p. 17) 

A produção de significados não é alheia à luta de classes e tampouco as ideologias hoje “escondidas” em todo tipo de fetiche maculado na linguagem. Vejamos o papel dos ideogramas e algoritmos no jogo linguístico de disputa do poder, onde fala e os gostos assumem papel de destaque. 

Do vazio ao conteúdo 

Dito isto, precisamos desfazer o modismo acadêmico que coloca a palavra panfleto e seus derivados, panfletário, panfletarismo, como antítese de tudo que seja científico, filosófico ou racional, isto é, como negação, exatamente pelo seu caráter sintético e objetivo. Ao que tudo indica o “panfleto” surgiu na Inglaterra no século XII, quando circulou um poema curto de amor, anônimo, escrito em latim, com o nome de “Pamphilus seu de amore” (Panfilo ou sobre o amor), que se popularizou e em seguida foi traduzido para inglês como Phamphlet, no dicionário Oxford English Dictionary.

Vejamos que a palavra “panfleto” nunca se propôs a ser um sinônimo de produção científica, embora o seu conteúdo possa ter informações advindas de um conhecimento racional qualquer. E ele, que lembra de imediato um papel, certamente descartável, apresenta uma circulação rápida, de mão em mão, ideias, é útil de acordo com os objetivos a que se propõe: um poema, uma agitação política, um merchandising ou uma informação qualquer. Todavia, o tempo como sempre, transformou este “sir” numa via de papel de marketing comercial, agora mais virtual, melhor dizendo, propaganda rápida de mercadorias e produtos em campanhas nas redes sociais de todo tipo. 

É preciso dizer as palavras como elas são. O panfleto, no sentido discursivo e textual, já vem sendo utilizado como uma antinomia por intelectuais, artistas, e diversos discursos de ordem acadêmica, quer seja como sinônimo de “coisa mal escrita” quer como coisa defeituosa, quer seja como “coisa limitada”. Porém, este “ser” chamado panfleto, ou folheto, aparece na vida social cotidianamente inclusive como divulgação do “cientifico”, ou “acadêmico”. O manifesto, por exemplo, é um panfleto, mas nem todo panfleto é um manifesto.

Não há nenhum registro que associa a ideia de panfleto a senso comum, ou conhecimento vulgar expresso nos discursos que utilizam a palavra de forma pejorativa. Até os fins do século XIV a palavra pamphlet era usada em inglês para designar qualquer texto de tamanho menor do que os enormes livros manuscritos da época, antes da invenção da imprensa. Nos séculos seguintes, o sentido do vocábulo evoluiu até significar um libelo difamatório, folheto escrito em estilo satírico ou violento, especialmente sobre assuntos políticos, entrando no português com estas acepções. 

Há determinados estudiosos da língua que preferem indicar no seu lugar a palavra ‘folheto’. Para o revolucionário russo Vladimir Lenin o objetivo do panfleto era passar em poucas palavras a mensagem política dos sociais democratas russos aos trabalhadores e operários em particular. O famoso Manifesto Comunista publicado em várias línguas no mundo todo é, nas palavras de Marx e Engels, um panfleto, aliás um espetacular panfleto de natureza eminentemente política e programática, publicado em 21 de fevereiro de 1848.

Em julho de 1938, o revolucionário russo Leon Trotski e o surrealista André Breton publicaram o Manifesto por uma Arte Revolucionária e Independente, um chamado a construção de uma Federação Internacional da Arte Revolucionária e Independente (FIARI) em forma próxima de um panfleto. Alias um belo manifesto, e é bom que se diga que, no século XX, várias vanguardas artísticas e literárias manifestaram publicamente por meio de manifestos que como dizia Barroso (2007, p. 9) “A cultura dos manifestos corresponde a uma “necessidade legítima dos artistas de conquistar um espaço nos meios de comunicação responsáveis por fazer a ponte entre suas ideias e o grande público”.  

Portanto o “discurso panfletário”, ou o “panfletarismo”, fustigado no meio dos diálogos jornalísticos e de variados sujeitos, carrega em si uma carga ideológica que em última análise pretende desqualificar não só a palavra, mas seu conteúdo e os sujeitos que a utilizam como forma de mobilização, nesse caso grupos sociais e políticos que utilizam o “objeto” panfleto como comunicação de massa.

O papel do panfleto não é o mesmo do livro, da tese, da poesia, do artigo, da crônica, do romance, da matéria jornalística e de outros tipos de linguagens, mas pode anunciar a todos, como um instrumento auxiliar da propaganda e divulgação de seus conteúdos. Portanto nesse campo tenso da linguagem coloquemos a palavra no seu devido lugar. Não é? Senão a “crítica” será criticada e perderá sua crítica.

*Professor, sociólogo e doutorando em educação pelo PPGED/UFPA.

 

REFERÊNCIAS

https://pt.wikipedia.org/wiki/Panfleto

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto 

https://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_por_uma_Arte_Revolucion%C3%A1ria_Independente

BARROSO, A. B. de P. C. – A mediatização da arte, p. 9, Universidade de Brasília, 2007. (Tese de Doutorado).

MAGALHÃES, Izabel. Um método de Análise Textual para o estudo da Prática Social. In: MAGALHÃES Laert (Org.). Análise do Discurso Crítica e Comunicação: percursos teórico e programático do discurso, mídia e política. Teresina: UDUFPI, 2019.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Ed. Unicamp, 1988.

Marcado como:
imprensa / pravda