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EDITORIAL

Cem mil vidas perdidas: não aceite “o novo normal”

Editorial 08 de agosto
Rebeca Belchior | Cobertura campanha Fora Bolsonaro 07/08/2020

Rio de Janeiro | Coverage Fora Bolsonaro campaign

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Patrícia Beatriz tinha 38 anos e morreu em Goiânia sem conhecer a filha bebê. Ela estava com 34 semanas de gestação quando foi diagnosticada com covid-19.  Danilo Moura, de 41 anos, era enfermeiro no Acre e pegou o coronavírus trabalhando na linha de frente. Foi internado em 1º de julho e veio a falecer poucos dias depois. O cacique Aritana Yawalapiti, liderança do Alto Xingu, tinha 71 anos quando sentiu uma dor forte em uma pescaria, morreu duas semanas depois.

Oito em cada dez grávidas e puérperas que faleceram de covid no mundo morreram aqui. O Brasil é também líder mundial em mortes de profissionais de saúde na pandemia. E os indígenas são o grupo étnico com maior taxa de letalidade da doença no país. O descaso com que são tratados os povos originários, um verdadeiro genocídio, ameaça de aniquilamento culturas milenares.

Patrícia, mãe, Danilo, enfermeiro, e Aritana, indígena, são três das mais de cem mil vítimas da covid-19 no Brasil. Os números da pandemia, anunciados diariamente na TV com gráficos coloridos, revelam quase nada dos seres humanos por trás das estatísticas frias. Não falam da dor de quem perdeu pessoas amadas sem sequer contar o direito a uma despedida digna. Não falam dos sonhos que foram enterrados junto com os corpos.

Os números — mais de mil mortes todos os dias — passaram a ser tratados como mais um dado ordinário qualquer, tal como a previsão do tempo no Jornal Nacional. Em um processo de banalização da morte, as vidas perdidas parecem como uma fatalidade inescapável, tal como a noite que sucede o dia todos os dias.

O Presidente da República, dias atrás, disse que é preciso “tocar a vida”, desdenhando, como sempre faz, dos que já se foram e dos muitos outros que serão acometidos mortalmente pelo vírus. É como se a vida da gente trabalhadora e negra das periferias, que compõe a grande maioria das vítimas da doença, não valesse nada.

Atendendo aos apelos do empresariado, sedentos de lucro, e curvando-se a Bolsonaro, sedento de sangue, governadores e prefeitos retomam a circulação de pessoas e as atividades comerciais. A quota diária de sacrifício de seres humanos é o “novo normal”.

Desse maneira, atingimos, desde junho, um platô macabro que parece sem fim. Do alto da montanha de corpos, brada-se que “há leitos de UTIs disponíveis” destinados para todos que sofrerão os sintomas graves da doença. O objetivo principal, portanto, já não é mais salvar vidas do maior número possível de pessoas (o que só pode ser feito com isolamento social eficaz e testagem em massa), mas sim administrar as milhares de mortes sem que isso afete as atividades empresariais. No atual ritmo, chegaremos a 200 mil óbitos oficiais em meados de outubro. O cinismo e a degradação moral nas cúpulas governantes e da grande burguesia atingiram níveis de sordidez incalculáveis.

A banalização da pandemia e a pressão pela reabertura das escolas

O cansaço provocado pela pandemia, que já dura cinco longos meses, e a devastação de empregos e renda causada pela crise econômica brutal (até junho, 8,9 milhões de pessoas perderam seus empregos) ajudam na propaganda de banalização da pandemia. Essa vil campanha é liderada por Jair Bolsonaro, patrocinada pela classe dominante e apoiada agora, com poucos disfarces, por governadores e prefeitos.

Uma parte significativa da população, especialmente os bolsonaristas, foi ganha para essa ideia. Mas não é verdade que a maioria do povo brasileiro cedeu à indiferença e à apatia propagadas pelos governantes e pela burguesia. A classe trabalhadora, majoritariamente, aderiu ao isolamento social na medida de suas possibilidades concretas, é contrária à política genocida de Bolsonaro, é solidária com os próximos e segue preocupada com a disseminação da doença.

Nesse momento, a batalha principal é a luta contra a reabertura das escolas — talvez uma das últimas fronteiras coletivas de combate ao coronavírus. A plena retomada dos negócios capitalistas requer a volta às aulas, para que as mães, principalmente, e os pais sejam liberados para exercer plenamente seus trabalhos sem ter que despender muitas horas do seu dia com o cuidado de seus filhos.

Ocorre, como demonstram diversos estudos, que a reabertura das escolas levará, inevitavelmente, ao agravamento da pandemia. Primeiro, porque aumentará consideravelmente a circulação nas cidades, ao implicar o transporte diário de milhões de estudantes, professores e funcionários do sistema educacional. Segundo, porque provocará a contaminação de muitas crianças e adolescentes, os quais trarão o vírus para dentro de casa, onde estão seus pais e avós, muitos deles pertencentes ao grupo de risco. Por fim, causará a infecção — e, por consequência, a morte — de muitos profissionais da educação. Um ano letivo se recupera, vidas perdidas não.

A luta pela vida e a resistência da classe trabalhadora 

Apesar de todas dificuldades e dores impostas pela tragédia humanitária sem precedentes, o povo trabalhador resiste e luta. Mesmo com a sobrecarga de trabalho com os filhos em casa, mães e pais, em sua maioria, não querem a reabertura das escolas e apoiam a luta dos profissionais da educação. A pressão popular foi muito importante para a aprovação do FUNDEB no Congresso, enfrentando a linha do governo Bolsonaro, que atuou contra o aumento dos recursos públicos para a educação básica.

Outro exemplo de resistência vem da luta dos entregadores de aplicativos, que fizeram dois dias nacionais de paralisação, evidenciando para a sociedade a exploração cruel a que estão submetidos. Temos também a corajosa luta do metalúrgicos da Renault, no Paraná, que entraram em greve contra a demissão de 747 trabalhadores, obrigando a Justiça a impedir, por ora, a demissão em massa.

A luta dos metroviários de São Paulo também merece destaque. Esses trabalhadores essenciais, que garantem o transporte público na maior cidade do país, tiverem seus direitos rasgados pelo governo Dória em plena pandemia. Com a decretação da greve na capital paulista, conseguiram impedir os ataques. Outra categoria que prepara sua luta são os trabalhadores dos Correios, que marcaram greve nacional para o dia 18 de outubro em defesa de direitos e contra a privatização da estatal.

A luta pela vida unifica a ampla maioria do povo brasileiro. Mesmo com o reforço da política da morte em nome do lucros dos grandes capitalistas — seja na expressão selvagem de Bolsonaro, seja na forma mais sutil da maioria dos governadores e prefeitos —, as lutas da classe trabalhadora vão abrindo caminhos.

É verdade que ainda são mobilizações defensivas em um contexto de tragédia humanitária e de um governo neofascista que ainda conta com apoio de parte expressiva da população. Mas essas mobilizações parciais são sementes para uma batalha maior: a necessária luta de massas pela derrubada de Bolsonaro e seu governo genocida, para salvar vidas, empregos, direitos sociais e as liberdades democráticas.

 

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One hundred thousand lives lost: do not accept the “new normal”