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TEORIA

A atualidade do marxismo de Florestan Fernandes

Sóstenes Brilhante R. Silva, de Salvador, BA

“Se resta ainda alguma esperança, ela vem do socialismo”
Florestan Fernandes

Há poucos dias comemoramos os 100 anos do nascimento de Florestan Fernandes. Muitos textos, lives e vídeos foram produzidos em homenagem aquele que foi com certeza o maior sociólogo brasileiro e também um dos maiores marxistas do país, ao lado de nomes como Clóvis Moura, Ruy Mauro Marini, Heleieth Saffioti, Jacob Gorender e Vânia Bambirra.

Neste texto não pretendo ter a ousadia de apresentar a complexidade e riqueza categorial do pensamento de Florestan, que vai desde a análise do povos originários e sua cultura, passando pela questão racial no Brasil, a dependência latino-americana e os regimes de dominação correlatos, o papel do imperialismo e de debates políticos internos à esquerda socialista no Brasil.

Procurarei me concentrar apenas em três aspectos que nos tocam muito particularmente na atual conjuntura por que passa nossa América e o Brasil, além é claro dos debates internos à esquerda revolucionária.

O primeiro destes aspectos é a questão da formação social do Brasil e a “revolução burguesa em atraso”; o segundo a questão racial e o problema da formação de um Estado Nação inconcluso; a terceira questão é a do papel do Estado na América Latina e as categorias de contrarrevolução preventiva e Autocracia Burguesa.

A escolha destes aspectos não é arbitrária, mas obedece aos dilemas nos quais o Brasil e a América Latina hoje se debruçam, objetos da reflexão apaixonada daquele sociólogo marxista.

Florestan se inscreve, no que tange ao primeiro dos aspectos da obra aqui destacados, num largo debate que podemos aqui chamar de “debate da revolução burguesa no Brasil”. Florestan argumenta que:

“Durante muito tempo prevaleceu a ideia de que o desenvolvimento capitalista podia produzir resultados similares em qualquer parte, dependendo do “estágio” em que ele estivesse e de sua “potencialidade de amadurecimento” ou de atingir uma “forma pura” ( Fernandes, 2015)

O debate aqui referido está no cerne do pensamento de esquerda no Brasil, mobilizando nomes como Octavio Brandão, Mario Pedrosa, Caio Prado Júnior, Ruy Mauro Marini, Nelson Werneck Sodré, Alberto Passos Guimarães, Celso Furtado etc.

As visões predominantes da esquerda brasileira no pré-golpe giravam em torno do desenvolvimentismo de base na CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) ancorado no Brasil no pensamento de Celso Furtado e outros, e na América Latina ao nome de Raul Prebisch, entre outros; e de outro nas diversas modulações da estratégia democrático-nacional do PCB.

De uma lado defendia-se que o Brasil tinha um passado marcado por uma herança colonial e feudal, e que era necessário superar uma troca desigual dos termos de troca através do incentivo a industrialização maciça do pais, e de outro que tal política deveria ser implantada através de uma aliança da burguesia nacional com a classe trabalhadora e os setores do campesinato existentes, a versão do PCB por sua vez se tornava em grande medida caudatária desta visão por seguir os modelos grosso modo propugnados pela Internacional Comunista inspirados numa ideia de revolução por etapas, onde dever-se-ia nestes países periféricos e tidos por semifeudais, confrontar os resquícios feudais e o imperialismo com uma aliança de classes.

Florestan afirma em algum momento que esta hipótese do desenvolvimentismo e sua versão de esquerda radical encarnada no PCB eram uma “hipótese de trabalho”, de fato se observarmos suas obras como Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento ou mesmo A integração do negro na sociedade de classes , Florestan persegue a ideia de gestação de uma sociedade de tipo “competitivo” usando um linguajar weberiano. Florestan procura aqui o objetivo de influir nos dilemas e obstáculo que cerceavam a seu modo de ver a gestação de uma sociedade de tipo nacional, ou seja, aquilo que poderíamos classificar como uma sociedade capitalista moderna onde os indivíduos fossem “classificados socialmente” nos moldes acabados das classes sociais, superando a fratura social da existência de amplos estratos da população que estavam a margem dos critérios “modernos” de “classificação”, poderíamos citar as massas subproletárias negras da cidade e o largo semi-proletariado/semi-campesinato rural submetidos a formas semi-livres de trabalho, e as massas operarias mesmo que classificadas restringidas em sua possibilidade de intervenção democrática, confluía portanto o mestre naquele momento de sua trajetória para a ideia de uma democracia de participação ampliada nos moldes talvez da socialdemocracia europeia.

E preciso cuidado com a ideia de um corte epistemológico ao se analisar um pensador como os exemplos de Marx e Lukacs nos sugerem, mas o golpe de 64 vai significar um abalo neste esquema florestaniano, isto pode ser demonstrado na própria tessitura de sua opus magnun, “A revolução Burguesa no Brasil”, obra cuja primeira parte foi ainda inscrita sob a influência deste projeto político cultural de influir numa democrática e progressista revolução burguesa no Brasil.

De todo modo nesta obra Florestan chegara a conclusões radicalmente diversas daquelas que orientavam a ideia de “uma revolução burguesa no brasil” como estratégia central dos embates políticos, Florestan ira observar que a Revolução Burguesa no Brasil possui um longo e acidentado trajeto, comparando-a a uma “catástrofe” cujo momento culminante é a Contrarrevolução Preventiva de 31 de marco de 1964.

Em artigo escrito em 1981 denominado “Reflexões sobre as Revoluções Interrompidas”, no mesmo espírito de A Revolução Burguesa no Brasil, agora tratando do conjunto de Nuestra América, Florestan coloca os objetivos a serem alcançados por uma reflexão sobre a forma específica das revoluções burguesas em nossa realidade de ex-colônias.

“Ele consiste em indagar aonde poderia levar a transformação capitalista em países que não romperam por completo com formas coloniais de exploração do trabalho e nos quais as classes dominantes se tornaram burguesas através e atrás do desenvolvimento do capitalismo. Na luta interna para a submissão das classes subalternas – que não eram propriamente classes, mas estamentos e castas – elas lutavam por converter formas coloniais de propriedade em formas capitalistas de propriedade e de apropriação social. O seu êxito engendrou uma transformação capitalista peculiar, que não pode ser esclarecida em função da desagregação do mundo feudal na Europa. A história não se ”repetiu” porque não havia razão para que ela se repetisse. Tratava-se de uma outra história, a história do capitalismo nos países de origem colonial.” (idem)

Para Florestan portanto a revolução burguesa em atraso engendra uma forma capitalista especificamente periférica e dependente, onde o “congelamento da descolonização “ é conduzido por um processo de articulação do arcaico e do moderno numa totalidade orgânica, no sentido marxiano, onde as contradições estruturais destas sociedades marcadas pelo profundo abismo social de raças e classes, corroboram um projeto burguês que ao fim e ao cabo impede o surgimento de qualquer coisa de realmente nacional e democrática, a epifania da Revolução Burguesa no Mundo culmina numa espécie de “desenvolvimento monstruoso” como diria outro clássico marxista latino-americano e brasileiro ( Ruy Mauro Marini).

Aqui portanto podemos articular os diversos aspectos destacados neste texto, visto que o problema da forma específica da Revolução Burguesa, nos leva ao segundo elemento por nos destacado no pensamento florestaniano, a saber a questão racial e o seu necessário entrelaçamento com a impossibilidade de criar no Brasil uma formação social de tipo nacional, o que nos relega a no dizer de Clóvis Moura “uma nação inconclusa”.

O congelamento da história que implica o processo de descolonização , significa relegar um grande contingente de nosso povo a “desclassificação social”, Florestan em sua obra nos revela como a situação histórica do povo escravizado após a Abolição da escravidão, foi relegado a situações de “anomia social” (não no sentido de que estes não criassem suas próprias formas heroicas de soerguimento e resistência comunitária) e posto a margem dos estratos competitivos da sociedade emergente, como nos ensina outro grande mestre o referido Clóvis Moura, o abolicionismo foi um negócio de brancos, para resolver o problema dos brancos, ou seja, da elite racista do país.

Esta burguesia de berço escravocrata através de seus intelectuais procurou elaborar uma visão de mundo que com a emergência do pós escravidão alijasse das veias principais do processo histórico e relegasse a efetiva marginalização social a maioria negra e mestiça do nosso povo, como sustentáculo necessário de um processo de acumulação dependente que se baseia na superexploração do trabalho, até o fim Florestan levou claro a percepção de que a resolução do problema racial do Brasil era o obstáculo central a criação de fato de uma nação. Ressalvados os aspectos específicos a situação de negros e povos autóctones na América Latina remete aos mesmos processos básicos de espoliação e marginalização social.

Uma sociedade “congelada” num curto circuito e onde os mecanismos de classificação social excluem a massa majoritária da população, dos mais básicos elementos de cidadania e progresso socioeconômico só pode culminar na necessidade de um Estado especificamente brutal e repressivo.

Aqui se inscreve o terceiro elemento que  diz respeito a impossibilidade de uma continuidade democrática real nestas sociedade e a formação de regimes políticos onde uma democracia restrita (para os setores da classe dominante) convivem com autoritarismo e fascismo no modus operandi habitual do Estado.

“O ponto mais grave, que se configurou nas nações latino-americanas de maior envergadura econômica, demográfica e política, é que a revolução burguesa acabou se definindo e se desatando pela cooperação com o polo externo e através de iniciativas modernizadoras de monta, desencadeadas pelo polo externo. O Estado autocrático burguês (ou, como outros preferem, o Estado neocolonial ou, ainda, Estado de segurança nacional) acabou sendo o elo mediador pelo qual uma revolução que deixou de ser feita por decisão histórica está caminhando pela modernização dirigida e autocrática e por transformação de estruturas previamente drenadas ou esterilizadas. Na verdade, na medida em que a forma do desenvolvimento capitalista não foi tocada pelos interesses maiores, o novo modelo de desenvolvimento capitalista tinha de conduzir nessa direção”. (2015, Fernandes)

A autocracia burguesa portanto é forma do Estado periférico dependente, dentro de seu espectro podem haver variações, que Florestan se refere desde como ditaduras fascistóides e terroristas, até democracias de cooptação (certamente pensava n modelo da chamada República populista de 45 a 64). onde mesmo nos períodos supostamente democráticos, os aspectos autoritários e fascistas do Estado periférico são os dominantes.

A tarefa histórica da autocracia burguesa é portanto tanto conduzir a bom termo a revolução burguesa em atraso, como administrar o apartheid sócio-racial que caracteriza a sociedade periférica se valendo constantemente daquilo que Florestan denomina de contrarrevolução preventiva, um necessário desdobramento da impossibilidade objetiva das sociedade periféricas de incorporar na vida econômica e social de modo minimamente tolerável as grandes massas populares. Pois “as classes burguesas não querem (…) abrir mão: das próprias vantagens e privilégios; dos controles de que dispõem sobre si mesmas, como e enquanto classes; e dos controles de que dispõe sobre as classes operárias, as massas populares e as bases nacionais das estruturas de poder.”

A contrarrevolução preventiva se modula com a democracia de cooptação, de acordo com os limites pouco elásticos da capacidade hegemônica da burguesia periférica, trocando em miúdos, se a sociedade  burguesa dependente/neocolonial, que resulta do processo “abortado” de revolução nacional na periferia, é incapaz de realizar as chamadas “tarefas democráticas da revolução burguesa (nos remetendo aqui a ideias de Revolução Permanente de Trotsky e as reflexões leninistas), e só pode oferecer às massas a violência brutal ou o engodo permanente da democracia de cooptação, caberia as classes trabalhadoras, camponeses, a massa negra e indígena marginalizada forçar os caminhos da história e iniciar a luta por uma revolução na ordem ou contra a ordem, sendo esta última a preferida por Florestan, e onde Cuba o iluminava como modelo.

Na segunda década do século XX, após o fracasso da chamada “onda progressista” na América Latina, dos golpes em Honduras, Haiti, Paraguai, Brasil e agora Bolívia, mostra-se que o diagnóstico de Florestan, e também a única alternativa que ele visualizava corporificada na Revolução Cubana, seguem vivos e atuais. Nada mais podemos exigir de um pensamento senão a sua capacidade de iluminar o passado e o presente.

*Historiador e militante da Resistência/PSOL.

 

Referências Bibliográficas

FERNANDES, Florestan. Poder e Contrapoder na América Latina. Ed: Expressão Popular 2015 SP

____________. A revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Globo 2006 SP

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