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TEORIA

Florestan Fernandes e a Amazônia: Entre o mágico e o cruel

Luiz Fernando de Souza Santos

 

Há 20 anos atrás, no dia 10 de agosto de 1995, morria Florestan Fernandes, uma das principais referências intelectuais das ciências sociais brasileira e dos trabalhadores, dos partidos de esquerda e das camadas subalternas, em razão da mobilização teórica que fez da contribuição do marxismo para a interpretação do Brasil e de sua militância em defesa da escola pública, da universidade, do mundo do trabalho, do socialismo. Pretendo aqui avançar uma análise preliminar, ainda a ser aprofundada, por um “encontro” do autor, ao longo de sua trajetória intelectual com a Amazônia e a gente que vive nessa região.

Para tal, seguirei um conjunto de pistas deixadas ao longo de sua obra, particularmente aquela produzida nas décadas primeiras de sua formação e que está marcada pelas preocupações etnológicas, que aponta para uma contribuição do autor para uma interpretação da Amazônia e o destino da mesma na formação de uma nação em condições de subdesenvolvimento, do tipo particular de revolução burguesa que realiza e da sua estrutura de classes. Pretendo ainda, discorrer sobre o significado do diálogo do autor com o pensamento de Mariátegui para inferirmos o lugar da região amazônica e dos povos que a habitam na crítica do capitalismo na virada para o século XXI e nas trilhas a serem abertas na construção do socialismo.

 

Florestan Fernandes “encontra” a Amazônia

A contribuição de Florestan Fernandes para a pesquisa antropológica, segundo Pinto (2008), não deixa dúvidas quanto à relevância da mesma. O ensaio Tendências Teóricas da Moderna Investigação Etnológica no Brasil, publicado primeiramente entre 1956 e 1957, na revista Anhembi, e depois no livro A Etnologia e a Sociologia no Brasil, em 1958, é exemplar nesse aspecto, pois mobilizou e tem mobilizado o debate por parte de diversos pesquisadores do campo antropológico brasileiro como Egon Schaden, Roberto Cardoso de Oliveira, Júlio Cezar Melatti, Maria G.S. Peirano e Edgar Assis de Carvalho. Mas o que interessa desses estudos antropológicos, no escopo do presente trabalho é refletir sobre dois aspectos: por um lado, as conexões entre as angulações metodológicas sincrônicas e diacrônicas que trazem as articulações dialéticas propostas na hipótese apresentada ao final da seção anterior, e, por outro lado, a Amazônia que é possível perceber a partir de alguns etnólogos cujas pesquisas foram objeto dos estudos de Florestan Fernandes.

Em relação ao primeiro aspecto, deve-se observar que a compreensão de que o período marcado pelos estudos antropológicos, na obra de Florestan Fernandes, é fundamentalmente funcionalista, padece de um reducionismo que pouco esclarece sobre o encadeamento das ideias nesse autor. Ao lado de referências à Malinowski e Radcliffe-Brown nos estudos que realizou, por exemplo, sobre a sociedade Tupinambá, vamos encontrar a decisiva presença de Mannheim.

Em trabalho intitulado O Estudo da Organização Social, escrito inicialmente para ser introdução à dissertação de 1947 A Organização Social Tupinambá, a abordagem teórica mannheimiana sobre organização social ocupou lugar privilegiado: “penso que os etnólogos e antropólogos contemporâneos endossariam facilmente as explanações de Karl Mannheim, que tomo a seguir como ponto de partida para a discussão do conceito de organização social” (Fernandes, 1974).

No mesmo trabalho introdutório ao escrito de 1947, vamos encontrar o recurso à contribuição de Marx e Engels que explicitamente atende às exigências de maior rigor conceitual, mas que resulta, conforme inferência nossa, numa análise que já aponta para a necessidade de estabelecer os nexos entre o empírico singular e os processos históricos que o marcam. Daí considerar a fundamental anterioridade de Marx, já nos escritos deste de 1844, em relação à Antropologia, no que tange à dicotomia entre indivíduo e sociedade: aquele só pode ser compreendido no âmbito das relações concretas estabelecidas nesta última. Em O Manifesto Comunista, Florestan Fernandes ancora a explicação em torno das mudanças tecnológicas e econômicas e seus impactos nas representações e ideologias e dessas, na organização social. A obra Crítica da Economia Política, de Marx, ao lado de Economia e Sociedade, de Weber, ao estabelecer o nexo histórico entre o protestantismo e o capitalismo, contribui para elucidar a influência do que o autor chama de “mentalidade grupal” sobre a organização social.

Na esteira dessa argumentação, vamos encontrar na obra A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, escrita originalmente no período de 1947-1951, a presença da contribuição de Marx e Engels e ainda, de Lênin. A referência à vida em sociedade e seus equipamentos culturais adaptativos ao meio natural, que reforçam a interdependência entre os homens, recorre ao estudo A Ideologia Alemã como fonte de fundamento teórico. Entre os autores que serviram de referência para uma explicação sociológica da guerra nas “sociedades civilizadas” encontramos Lênin, com o trabalho La guerra y la Humanidad.

Em relação à incursão que o pensamento de Florestan Fernandes faz pela Amazônia, por meio dos escritos dos primeiros cronistas, naturalistas e etnólogos propriamente dito, para dar conta de suas pesquisas sobre a sociedade Tupinambá e da sistematização dos estudos etnológicos realizados até então no país, gostaríamos de apontar para a diversidade de nomes que formam parte das referências desse autor: Carvajal, Cristóbal, Acuña, Martius, Euclides da Cunha, Curt Nimuendajú, Koch-Grünberg, Charles Wagley, Eduardo Galvão, Mauro Wirth, Nunes Pereira.  Inferimos que tais nomes puderam proporcionar a Florestan Fernandes aquilo que Lukács (1968), em Narrar ou Descrever? chamou de poesia íntima da vida, no caso, a vida íntima dessa parte do Brasil chamada Amazônia.

Podemos imaginar o autor adentrando essa região e encontrando, com os primeiros cronistas, as monstruosidades antropomórficas que habitam um lugar que às vezes é o Édem, outras vezes é o inferno; ou então, pelo olhar do naturalista, o encontro com a cidade de Manaus do século XVIII, quando ainda era a Fortaleza da Barra do Rio Negro, lugar “tomado por casebres distribuídos em ruas irregulares e uma situação de ausência de médico, boticário e professor (Santos, 2014); o encontro pelo olhar de Euclides da Cunha, que faz emergir uma região tão esquecida, abandonada, que até Deus deixou de olhá-la; o encontro, através dos estudos de Charles Wagley e de Eduardo Galvão, com a vida dos caboclos, suas manifestações religiosas, economia (com seu sistema de aviamento), casas na beira do rio, medicina popular, etc.; e o encontro com uma pluralidade de grupos étnicos (Tenetehara, Mundurukú, Tukano, Vapidiana, Nambikwara, entre outros).

Encontros diversos, dos quais emergem no pensamento uma região cujas sociedades são compreendidas dentro dos limites do conhecimento da época, seja ele antropológico, econômico, ecológico, etc., limites que conformam novos e reatualizam antigos estereótipos. O pensamento de Florestan Fernandes, no momento em que não lida com as classes típicas do mundo urbano e industrial, ao mesmo tempo em que procura empreender uma apreensão crítica da conquista europeia apresenta traços das velhas visões dos exploradores portugueses, das missões religiosas e dos naturalistas a respeito dos povos indígena. Ao mesmo tempo, supera tais limites, por um lado, pelas necessidades teórico e metodológicas postas pelo conjunto de referências intelectuais que assinalamos anteriormente, mobilizadas pelo autor na busca por empreender a análise sociológica sob a observação rigorosa que garantisse a cientificidade de suas arguições; e por outro lado, pelas exigências analíticas que emergem quando passa a lidar com questões relativas à formação econômica da sociedade brasileira, sua estrutura de classes, a natureza do seu desenvolvimento desigual e combinado, etc.

No artigo Os Tupi e a Reação à Conquista, originalmente escrito em 1960 para o livro organizado por Sérgio Buarque de Holanda intitulado História Geral da Civilização Brasileira e, posteriormente relançado no livro Mudanças Sociais no Brasil, de 1960, e em A Investigação Etnológica no Brasil e Outros Ensaios, em 1975, Florestan Fernandes refuta o “mito” de que a invasão e a colonização europeia e seus efeitos foram aceitos passivamente pelos indígenas, particularmente, os Tupinambás. Ao mesmo tempo em que foram elemento de apoio aos agentes da colonização, foram também a “principal fonte de resistência organizada” (Fernandes, 1975, p. 11). No encontro com os Tupinambás, observa o autor que os objetivos da colonização portuguesa só seriam atingidos por meio da expropriação do território dos primeiros, bem como sua escravização e destribalização. “O anseio de ‘submeter’ o indígena passou a ser o elemento central da ideologia dominante” (Idem, p. 25). Cada qual à sua maneira, segundo seus cálculos políticos, econômicos e religiosos, o colono, o administrador que representava a Coroa e o jesuíta, concorreram para a sujeição, exploração e imposição da “civilização cristã” (Idem. p. 27) aos Tupinambás. Nesse processo, o referido grupo indígena reagiu de três modos distintos: por meio do confronto guerreiro contra o invasor, pela “submissão voluntária”[1] (que tem por consequência o extermínio num ritmo lento) e pela retirada para regiões distantes onde teriam que pagar “elevado preço por tal solução, pois tiveram de adaptar-se, progressivamente, a regiões cada vez mais pobres” (Idem, p. 30). Convém observar que essas “regiões mais pobres” às quais se refere o autor correspondem ao Maranhão, Pará e Amazonas, para onde se deslocaram no século XVI os Tupinambás, em fuga do litoral tomado pela intensificação das estratégias de colonização portuguesa e transformado na “terra dos males sem fim” (Vainfas, 1995).

Florestan Fernandes parece se aproximar da Amazônia por uma imagem recorrente desde os primeiros viajantes, entre tantas outras imagens que inventam a região: que se trata de um lugar pobre, ainda que nesse caso, ele não se refira à uma condição econômico-social, mas ecológica. Sobre os sistemas de organização social e econômica dos Tupinambás, o autor toma as informações obtidas pelas suas “fontes quinhentistas e seiscentistas”[2] e nos fornece uma imagem que que lembra os discursos ambientalistas da contemporaneidade representativos das correntes da deep ecology[3], que veem o elemento indígena e o caboclo como um risco às frágeis condições ecológicas: 

Eles [os Tupinambás] praticavam a horticultura, a coleta, a caça, e a pesca, possuindo o equipamento material que permitia a realização dessas atividades econômicas. Sua mobilidade no espaço era relativamente grande. Essas atividades eram realizadas sem nenhuma tentativa de preservação ou de restabelecimento de equilíbrio da natureza. Por isso, a exaustão relativa das áreas ocupadas exigia tanto o deslocamento periódico dentro de uma mesma região, quanto o abandono dela e a invasão de outras áreas, consideradas mais férteis e ricas de recursos naturais. O que quer dizer que a migração era utilizada como uma técnica de controle indireto da natureza pelo homem. Quando se rompia o equilíbrio entre as necessidades alimentares e os recursos proporcionados pelo meio natural circundante, as populações se deslocavam de um modo ou de outro” (Fernandes, 1975, p. 12).

Em que pese a presença de certos traços de imagens recorrentes nas invenções produzidas pelo colonizador, pelos naturalistas, religiosos, entre outros, sobre o indígena e sobre as terras que vão do Maranhão ao Amazonas, compreendemos que, o artigo Os Tupi e a Reação à Conquista, representa um exercício etnológico que traz as marcas de uma etapa do trabalho intelectual de Florestan Fernandes que é bem distinta daquela dos anos de 1940 até meados da década seguinte. Enquanto no anos iniciais de sua trajetória acadêmica, conforme seu depoimento em A Condição do Sociólogo, ele teoricamente apresenta limites em sua empreitada etnológica – em A Organização Social dos Tupinambás, o autor reconhece que a teoria se apresenta de modo implícito, como um exercício de reprodução do que outros estudiosos produziram e, em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, compreende a manifestação explícita de uma teoria mas que está circunscrita e só pode reivindicar validade à análise da cultura tupi[4]-, o período em que produziu o referido artigo é marcado pela busca por contribuir para a construção de uma teoria que desse conta de interpretar o Brasil e o continente latino-americano e a natureza subdesenvolvida e dependente dos mesmos[5].

Desse modo, Os Tupi e a Reação à Conquista, é um trabalho em que a presença de certas imagens imprecisas sobre o elemento indígena e a Amazônia não se sobrepõe a relevância da articulação teórica que é feita entre o sistema cultural e econômico dos Tupinambás e as regiões distantes das “terras dos males sem fim” do litoral para onde migraram, com os processos desencadeados pela expropriação capitalista. O contexto intelectual do artigo em foco é aquele em que Florestan Fernandes, à frente da Cadeira de Sociologia I, empreende, ao lado de Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Maria Sylvia Carvalho Franco, Marialice Mencarini Foracchi e Paul Singer, o projeto “Economia e Sociedade no Brasil” que se desdobrará em diversos livros desses estudiosos que expressam o esforço por contribuir para “uma área da Sociologia que poderia ser chamada de sociologia econômica: a teoria do desenvolvimento econômico nas nações capitalistas dependentes” (Fernandes, 1978. p. 26).

É em tal contexto que o autor se envolve com a Campanha de Defesa da Escola Pública, da qual foi um dos principais militantes entre 1960 e 1961, participando em conferências, comícios, reuniões de sindicatos, do movimentos estudantil, por compreender e defender que uma “Lei de Diretrizes e Bases para a educação nacional se constituía em uma oportunidade de ouro para colocar o sistema educacional brasileiro em consonância com o processo modernizador e democratizante pelo qual o páis passava” (Romão, 2003, p. 73). É o contexto da criação, no âmbito da cadeira de Sociologia I, do centro de Sociologia Industrial e do Trabalho (CESIT), que se propunha a estudar o “Brasil moderno” e as resistências culturais à modernização (Idem, p. 110). Inferimos, então que esse contexto atravessa o raciocínio do autor em Os Tupi e a Reação à Conquista, retirando a análise do sistema Tupinambá dos limites do ser-em-si e conectando-o aos movimentos mais gerais do processo de formação da economia brasileira, da colonização aos eventos de industrialização e urbanização, e os dilemas do desenvolvimento em uma economia periférica.

A Amazônia e o marxismo latino-americano: entre Florestan Fernandes e Mariátegui

Considerando os objetivos desse trabalho, o sentido dos estudos etnológicos de Florestan Fernandes observados acima deve, primeiramente, ser situado no seu esforço por produzir um conhecimento sociológico que expresse a autoconsciência científica da sociedade brasileira.

Em relação à Amazônia, a contribuição do autor para desvelarmos o seu sentido não se esgota nas décadas primeiras, em que o pesquisador está em formação, a aprimorar seus procedimentos de pesquisa empírica, a mobilizar diversas chaves conceituais em busca de maior rigor teórico e metodológico. Ao contrário, compreendemos que a vida íntima das sociedades indígenas e caboclas da Amazônia está presente naqueles trabalhos em que os problemas enfocados dizem respeito à revolução burguesa, a estrutura de classes, à dependência e ao subdesenvolvimento, e nos quais há uma prevalência das categorias explicativas oriundas das matrizes marxiana e marxistas.

A Amazônia e todo o conjunto de estudos etnológicos de Florestan Fernandes, não ficaram para trás, como relicários de uma época ultrapassada. Ela permanece, suprassumida, no momento mesmo em que o autor se debruça sobre a análise do capital monopolista e seus efeitos na periferia capitalista. É possível, desse ponto de vista, inferir que as sociedades indígenas, caboclos e imigrantes nordestinos levados à região nos ciclos econômicos de extração de recursos naturais –particularmente a borracha, essa “ilusão bastante tropical nas suas origens e em suas características”[6]– fundamentais para o mercado internacional, estavam presentes, especialmente no diálogo do autor com uma das principais referências do pensamento marxista latino-americano, a saber, José Carlos Mariátegui. Convém ressaltar que, ao se debruçar sobre a questão do desenvolvimento e subdesenvolvimento, a estrutura de classes, a relação centro-periferia, que marca a América Latina, e particularmente o Brasil, Florestan Fernandes estabelecerá uma disposição teórico-prática que mobilizará diversos autores do marxismo, tais como Lênin, Trotski, Gramsci, Lukács, Rosa Luxemburgo[7] e o já citado Mariátegui, que passamos, nos limites do presente trabalho, a nos focalizar brevemente.

No paralelo que o autor faz entre o movimento modernista da década de 1920 e o pensador peruano, ressalta que o primeiro não nos proporcionou “nenhum livro importante para o conhecimento objetivo e a interpretação crítica do Brasil”[8]. O Modernismo brasileiro foi, para Florestan Fernandes, um “Movimento pobre”[9] que permaneceu presa do “obscurantismo tradicionalista”[10], não foi capaz de tecer a crítica da sociedade brasileira, permaneceu circunscrito, em sua reflexão, às contradições de um mundo burguês sedento por ser europeu sem poder sê-lo. Mariátegui, por sua vez, em sua obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana (2010 [1928]), proporcionou “uma interpretação densa, crítica e negadora do Peru”[11].  A realidade peruana é negada em seu passado e presente por meio de uma interpretação de totalidade que aponta para a perspectiva de uma revolução socialista.

A obra Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1975, acompanhada de um Prefácio escrito por Florestan Fernandes, que teria assim, contribuído decisivamente para a recepção de Mariátegui no país (Ferreira, 2008; Pericás, 2010). Mas, o que chama a atenção na participação de Florestan Fernandes nessa publicação, é a possiblidade de avançarmos a hipótese de que suas preocupações com uma perspectiva socialista estão articuladas aos seus estudos sobre as sociedades indígenas e caboclas efetuados ao longo dos anos 40 e 50. Para tal, observemos primeiro como Mariátegui refletiu sobre a condição econômica do povo Inca antes e após o encontro com os conquistadores ocidentais:

Até a conquista, desenvolveu-se no Peru uma economia que nascia espontânea e livremente do solo e da gente peruana. No império dos Incas, agrupação de comunas agrícolas e sedentárias, o mais interessante era a economia. Todos os testemunhos históricos concordam na afirmação de que o povo incaico –trabalhador, disciplinado, panteísta e simples – vivia com bem-estar material. As subsistências abundavam: a população crescia. O império ignorou radicalmente o problema de Malthus. A organização coletivista, regida pelos incas, tinha amortecido o impulso individualista nos índios; mas havia desenvolvido extraordinariamente neles, em proveito desse regime econômico, o hábito de uma humilde e religiosa obediência ao seu dever social (Mariátegui 2010 [1928]).

Todavia, com a chegada do conquistador espanhol, todo esse regime de organização econômica foi dissolvido. “os conquistadores espanhóis destruíram, naturalmente, sem poder substituir, essa formidável máquina de produção. A sociedade indígena e a economia incaica se decompuseram e se aniquilaram completamente sob o golpe da conquista (Idem, p. 34). Como alternativa aos problemas que atingiram os Incas, Mariátegui assinala a defesa do socialismo:

A reivindicação indígena carece de concreção histórica enquanto se mantiver em um plano filosófico ou cultural. Para adquiri-la – isto é, para adquirir realidade, corporeidade – precisa se converter em reivindicação econômica e política. O socialismo nos ensinou a colocar o problema indígena em novos termos. Deixamos de considerá-lo abstratamente como problema étnico ou moral para reconhecê-lo concretamente como problema social, econômico e político. E assim o sentimos, pela primeira vez, esclarecido e demarcado (Idem, p. 54).

Ao observarmos o estudo feito por Florestan Fernandes sobre os Tupinambás, particularmente aquele sobre a função social da guerra, veremos que o autor percebe que tais sociedades assim como todas as outras reúnem um conjunto de equipamentos culturais adaptativos que lhes permitem dominar o ambiente e os recursos naturais nele existentes contra outros grupos sociais ou catástrofes decorrentes de mudanças na natureza (Fernandes, 1970 [1952]). Todavia, com a colonização pelos portugueses, essas formas de organização social anteriores e outras, foram devassadas. Mesmo com o advento da República, a empresa capitalista moderna, se articulará num arranjo que manterá as “condições favoráveis de acumulação originária herdadas da Colônia”[12] que fazem prevalecer uma lógica da “dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes”[13]. Esses grupos, por sua vez, são responsáveis por definir os inimigos comuns das classes burguesas: na época colonial, os negros (e também indígenas, caboclos e portugueses empobrecidos) e no período republicano, os assalariados dos campos e das cidades.

Mesmo quando esses trabalhadores reivindicam através de suas organizações sindicais e partidárias nos marcos de uma “revolução dentro da ordem”, portanto, sem pôr em risco a continuidade do sistema, os grupos dominantes são tomados por pânico.  Em um conjunto de estudos publicados no livro Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina (2009 [1972]), Florestan Fernandes aponta que tais condições de submissão das massas populares se acentua em toda o continente latino-americano com o advento do que ele chamou de “Imperialismo total”, que emerge quando “envolve um controle externo simétrico ao do antigo sistema colonial, nas condições de um moderno mercado capitalista, da tecnologia avançada e da dominação externa compartilhada por diferentes nações”[14]. Nesse regime de “imperialismo total” a dominação externa ocorre

a partir de dentro e em todos os níveis da ordem social, desde o controle de natalidade, a comunicação de massa e o consumo de massa, até a educação, a transplantação maciça de tecnologia ou de instituições sociais, à modernização da infra e da superestrutura, os expedientes financeiros ou do capital, o eixo vital da política nacional etc. (Florestan Fernandes, (2009 [1972], p. 27).

Num de seus últimos escritos, Florestan Fernandes retorna a Mariátegui. É o ano de 1994, poucos meses antes de sua morte. É um artigo intitulado Significado Atual de José Carlos Maritátegui. É um texto escrito mais de vinte anos depois do livro em que trata do “imperialismo total”, mas num contexto em que as contradições só se agudizaram: com o fim do socialismo real anunciava-se o fim da história, a morte do socialismo. E Florestan Fernandes se enredou de novo com o pensamento de Mariátegui pois sabia que este não sucumbiria ao discurso mistificador que diz “o socialismo está morto”. De acordo com o sociólogo brasileiro:

Sua convicção era clara: os progressos do capitalismo redundam em aumentos geométrico da barbárie. Essa realidade sempre foi subestimada de uma perspectiva eurocêntrica. Um marxista peruano, todavia, não tem por que enganar-se a respeito. Basta olhar para trás ou para o presente. Êxitos e progressos trazem consigo contradições crescentes – no extremo fatal implosivas. Uma civilização que repousa na riqueza, na grandeza e no poder por quaisquer meios exige um sistema social de exclusão, opressão e repressão. Ela pode manter-se e reproduzir-se liberando suas potencialidades fascistas e racistas, ou seja, a devastação da natureza, da humanidade e da cultura. É sua estrutura, funcionamento e ritmos históricos que arruínam seus alicerces e sua continuidade. Não importa se os agentes históricos sejam proletários ou todos os que repudiam a iniquidade como estilo de vida (1994, p.17).

Ainda no mesmo texto, Florestan Fernandes assinala que a sociedade peruana tem um lugar central no pensamento de Mariátegui, mas dentro dos limites fundamentais da tradição do marxismo. “A sua condição de peruano é básica. Ele tinha atrás de si e sob seu olhar uma grande civilização, o destino dos seus portadores e os seus escombros. Isso o impelia ao estudo do passado e do presente que nenhum outro marxista de envergadura poderia realizar” (Idem, p. 19).

Na condição de pensador brasileiro, Florestan Fernandes, como Mariátegui, ao se debruçar sobre a formação econômica da realidade brasileira, seu “capitalismo difícil”[15], sua estrutura de classes em que as elites têm pânico das camadas subalternas, tinha presente os escombros do capitalismo dependente, desigual e combinado, em que vai encontrar todos os povos indígenas, caboclos, caipiras, negros e imigrantes. E nesses escombros, vão estar, particularmente os lugares da Amazônia e seus povos, por onde percorreram Rojas, Carvajal, La Condamine, Spix e Martius, Alexandre Rodrigues Ferreira, Euclides da Cunha, Curt Nimuendaju, Eduardo Galvão, Nunes Pereira, etc.

No encontro com Mariátegui, por fim, percebemos que os estudos etnológicos de Florestan Fernandes, ainda que ele não os cite mais, ganham em atualidade, uma vez que se apresentam agora suprassumidos nas leituras em torno da exploração capitalista no continente latino-americano e na alternativa socialista que é possível vislumbrar. Como assinalamos anteriormente, a Amazônia não é, então, um relicário de um passado remoto, mas é presente, intimamente ligada que está às formas de acumulação capitalista. E por isso, mais que uma espacialidade geográfica particular, ela se constitui para as ciências sociais num potente elemento de explicação heurística, que nos ajuda a refletir melhor sobre o sentido de nossa época.

Referências bibliográficas:

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——————————- A Investigação etnológica no Brasil e Outros Ensaios. Petrópolis: Vozes, 1975.

——————————- A Condição de Sociólogo. São Paulo: Hucitec, 1978.

——————————- A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá. São Paulo: Pioneira/Editora da Universidade de São Paulo, 2ª ed., 1970.

——————————– Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina. São Paulo: Global, 2009.

——————————- Significado Atual de José Carlos Mariátegui. Revista Princípios, nº 35. São Paulo: Editora Anita, nov/1994-jan/1995.

——————————– Em Busca do Socialismo: últimos escritos e outros textos. São Paulo: Xamã, 1995.

——————————– Marx, Engels, Lênin: a história em processo. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

FERREIRA, John Kennedy. A Questão Indígena-Camponesa e a Luta Pelo Socialismo: apontamentos sobre a contribuição de José Carlos Mariátegui. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2008.

LUKÁCS, Georg. Ensaios Sobre Literatura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.

PERICÁS, Luiz Bernardo. José Carlos Mariátegui e o Brasil. Estudos Avançados 24 (68). São Paulo: USP, 2010.

PINTO, Renan Freitas. A Sociologia de Florestan Fernandes. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2008.

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[1] Florestan Fernandes, A Investigação Etnológica no Brasil e outros Ensaios, 1975, p. 29.

[2] Idem, p. 12.

[3] Antônio Carlos Diegues, em O Mito Moderno da Natureza Intocada (2000), assinala que a corrente ambientalista da deep ecology se caracteriza por advogar uma perspectiva ecocêntrica para pensar a relação sociedade-natureza, na qual o pólo social só é compatível com o natural em condições de reduzido número populacional, de modo a pressionar o menos possível o ambiente.

[4] Florestan Fernandes, A Condição do Sociólogo,

[5] Idem, p. 24-26.

[6] José Carlos Mariátegui, Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, (2010 [1928]), p. 45.

[7] Ver Em busca do Socialismo: últimos escritos e outros textos, 1995, A condição de Sociólogo, 1978, e Marx, Engels, Lênin: a história em processo, 2012.

[8] Florestan Fernandes, A Condição de Sociólogo, 1978, p. 32.

[9] Idem, p. 34

[10] Idem.

[11] Idem, p. 36.

[12] Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, p. 247.

[13] Idem.

[14] Florestan Fernandes, Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina, 2009, p. 27.

[15]Florestan Fernandes, A Revolução Burguesa no Brasil, p. 251.