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MUNDO

A tragédia humanitária no Líbano e as tensões políticas no país

Crise econômica e protestos, conflitos com Israel e julgamento internacional marcam três momentos das tensões políticas do Líbano antes e depois da tragédia

André Freire, do Rio de Janeiro

O Líbano está localizado no Oriente Médio, com um território de apenas 10.400 kme uma população de 5,4 milhões de habitantes, com fronteiras territoriais bastante conflagradas, tanto com Israel como com a Síria. Em meio à maior crise econômica desde o fim da guerra civil que assolou o país durante 15 anos (1975-1990) e ainda sob os efeitos da pandemia da Covid-19, no último período a população do Líbano assistiu a uma desvalorização recorde de sua moeda, um salto inflacionário galopante (sobretudo no preço dos alimentos), um grande crescimento do desemprego (estimado em 30%) e da desigualdade social.

Diante deste quadro terrível, o Líbano vê sua situação piorar ainda mais com a terrível explosão ocorrida na zona portuária de sua capital, Beirute, na terça-feira, 04. Segundo dados mais recentes da Cruz Vermelha, o número de mortos já ultrapassa 100 pessoas – o governo libanês tinha anunciado o número de 78, os feridos são mais de 4 mil e estima-se em 300 mil o número de desabrigados.

Nas próximas horas, esses números devem crescer ainda mais. Uma terrível catástrofe humanitária, o rastro de destruição se espalha por mais da metade do território de Beirute. Os efeitos da explosão foram sentidos mesmo numa distância de dezenas (e até centenas) de quilômetros. Existe ainda o grave risco de contaminação pelos gases tóxicos liberados pela explosão.

Ainda não se sabe ao certo as reais causas da explosão, o governo anunciou uma investigação imediata. Mas, pelas informações disponíveis até o momento, o mais provável que explosão tenha sido gerada por um acidente. Autoridades do país e de outros países da região se apressaram a descartar a hipótese de um atentado político.

Israel, principal inimigo político e militar do Líbano, foi logo à público para negar o envolvimento num possível ataque militar. Trump foi o único que afirmou taxativamente que a explosão foi gerada por uma bomba, citando fontes militares estadunidenses. Mas, as declarações do atual presidente dos EUA estão mais preocupadas em ganhar dividendos geopolíticos com o episódio.

Ao que parece, um incêndio em armazéns portuários acabou por gerar a incrível explosão, atingindo especialmente um ou mais depósitos onde se encontravam cerca de 2,7 mil toneladas de nitrato de amônio, substância utilizada na produção de fertilizantes, mas também na fabricação de explosivos para fins militares.

Portanto, mesmo não sendo diretamente um atentado político, existe uma evidente responsabilidade criminal a ser apurada, pelo fato de se armazenar um produto tão perigoso e nocivo, sem rigorosas regras de segurança. Fontes do governo local de Beirute afirmam que desde 2014 já havia alertas de perigo em relação ao estoque destes produtos no porto da capital libanesa.

O gravíssimo momento exige um amplo esforço de solidariedade internacional ativa com o sofrido povo do Líbano. Especialmente aqui no Brasil, onde vive uma das maiores colônias de libaneses e seus descendentes.

Mesmo se for confirmada a hipótese de um acidente, a explosão e suas brutais consequências sociais e econômicas. Os prejuízos já são estimados em 3 bilhões de dólares, sendo que o PIB do país é avaliado em 5,3 bilhões de dólares. A explosão, somada à pandemia, irá intensificar ainda as já graves tensões políticas que já estavam presentes na região. Especialmente três:

Conflito e tensões com o Estado de Israel

Existe um histórico de confrontos políticos e militares entre o Líbano e Israel, devido principalmente a agressão imperialista do Estado Sionista contra os povos da região. O último grande confronto ocorreu em 2006, culminando com a retirada de tropas israelenses de parte da Região Sul do Líbano.

Neste confronto militar, o Hezbollah se fortaleceu politicamente no Líbano. Esse movimento político e militar é formado principalmente por setores da população de origem xiita (a maioria muçulmana da nação é dividida quase meio a meio entre sunitas e xiitas) e é visto por grande parte da população como um grande aliado na luta contra a opressão imposta por Israel. Atualmente, o Hezbollah integra, como parte minoritária, o governo do Líbano.

No dia 11 de agosto é lembrado o fim da Guerra de 2006 e eram aguardadas manifestações no Líbano lembrando a data. Principalmente, depois que recentemente um membro do Hezbollah foi morto devido a um bombardeio israelense ao território sírio.

Já havia uma nova escalada de tensões entre Líbano e Israel no último período. A explosão no Porto de Beirute no mínimo não vai interromper este processo, mas pode ainda agravá-lo, a partir de seus desdobramentos geopolíticos, que ainda são impossíveis de prever com exatidão.

Julgamento internacional deve condenar membros do Hezbollah

Um dos elementos que mais estavam ampliando as tensões políticas no Líbano, no último período, era o anúncio para a próxima sexta-feira, 07, da conclusão de um julgamento internacional sobre um atentado político ocorrido no país em 2005 (portanto, há 15 anos atrás), que matou o ex-Primeiro-Ministro Rafic Hariri, entre outras vítimas, um político influente ligado à população de origem sunita.

O julgamento ocorre num Tribunal Internacional Especial para o Líbano, criado pela ONU, e a maioria dos analistas internacionais concorda que sua sentença unilateral será pela responsabilização direta de membros do Hezbollah pelo atentado, com critérios no mínimo bastante duvidosos.

O Hezbollah já disse que não reconhecerá esta decisão. E a tensão política só deve se agravar após seu anúncio, previsto ainda para esta semana. Veremos qual será seu impacto desta decisão, principalmente depois da explosão na região portuária da capital do Líbano.

Mobilizações populares devem continuar

Em outubro do ano passado, na esteira das fortes mobilizações que atingiram o Sudão, a Argélia e outros países da região, se iniciou um importante processo de luta popular no Líbano, exigindo, por exemplo: mudanças democráticas no regime político atual, antecipação das eleições e melhores condições de vida para a maioria do povo. Estas manifestações unificaram nas ruas o povo libanês, passando por cima, pelo menos por algum momento, das grandes diferenças étnicas e religiosas que marcam esta sociedade. Um destaque importante: a presença organizada das mulheres nos protestos.

O atual regime político libanês tem forte componente religioso e sectário, obrigando que necessariamente o Presidente seja de origem Maronita (Cristã), o Primeiro-Ministro de origem Sunita e o Presidente da Câmara dos Deputados de origem Xiita.

Apesar de gerar uma forte crise política, gerando inclusive a demissão do Primeiro-Ministro da época, Saad Hariri (um dos filhos de Rafic Hariri), o movimento iniciado no segundo semestre do ano passado não viu atendidas as suas principais reivindicações. Portanto, novamente, em junho deste ano, mesmo em meio a pandemia, importantes manifestações de rua voltaram ocorrer nas principais cidades do país, principalmente em Beirute e Trípoli (libanesa).

Os protestos são contrários ao conjunto do atual governo libanês. Sequer o Hezbollah é poupado pela crítica dos manifestantes, incluindo os de origem Xiita.

A intensificação da crise econômica com suas terríveis consequências sociais, quadro agravado pela terrível explosão da última terça-feira, mais cedo ou mais tarde, provocará uma nova onda de protestos, exigindo mais direitos sociais e democráticos. Processo de luta que deve ser apoiado pela esquerda e os movimentos sociais de todo mundo.

Referências
esquerdaonline.com.br/2019/10/28/libano-o-povo-exige-a-queda-do-regime/
EOL – Há um enorme potencial progressista nas revoltas do mundo árabe
shifter.sapo.pt/2020/06/libano-protestos/
Matéria G1
Matéria Folha de S. Paulo
Matéria Folha de S. Paulo sobre a explosão
Materia Estado de S. Paulo
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Líbano