Em 1843, na cidade de Kreuznach, Karl registrou em seus cadernos de estudo a defesa de uma democracia onde a sociedade civil se autodeterminasse em oposição ao Estado e marcasse o seu fim. Tratou-se de uma noção abstrata de democracia sem que Marx deixasse de sinalizar um programa prático: a “máxima generalização possível da eleição”. (1) Entretanto, estes seus “Manuscritos de Kreuznach” (também conhecidos como “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”) são importantes não apenas por expressarem a posição política do jovem Karl: ali também se vê que suas concepções teóricas estavam se transformando. Vamos destacar aqui dois de seus aspectos.
Marx critica Hegel (2) por este filósofo entender a política a partir de um logicismo abstrato, e não do próprio objeto e de seus elementos concretos. Ou seja, Hegel possui uma construção teórica e lógica que não leva corretamente em consideração a realidade, não parte dos sujeitos reais, e é como se os conceitos fossem sujeitos da história. Marx aponta que neste caráter especulativo de Hegel a realidade só aparece para confirmar um esquema teórico já pensado e pronto.(3) “O momento filosófico [de Hegel] não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve à demonstração do Estado, mas o Estado serve à demonstração da lógica.” (4) É esta postura teórico-metodológica que levaria Hegel a resultados como a apologia do monarca ou a de que é possível uma harmonia entre sociedade civil e Estado através do arranjo político da monarquia constitucional. Marx não era o único de sua geração que estava se contrapondo a Hegel, ainda a maior influência intelectual entre jovens opositores ao governo da Prússia. Karl foi bastante influenciado por Ludwig Feuerbach que, discutindo religião, apontava que o único conhecimento possível deveria partir dos seres sensíveis e não da “especulação”. (5) Muito embora nestas notas de Marx não haja maior investigação empírica, é neste sentido que seu pensamento está apontando. (6)
Outra característica teórica importante é que Marx apontou que, para compreender o Estado e a política, deve-se também compreender as dinâmicas da sociedade civil. Relações jurídicas e formas de Estado não poderiam ser explicadas por si próprias ou por uma evolução geral do espírito humano (como queria Hegel). Elas seriam, na verdade, condicionadas pela sociedade civil. Portanto, é para ela que seus estudos deveriam se voltar. Neste sentido, nos “Manuscritos de Kreuznach”, chama a atenção de Marx a influência da propriedade privada sobre o Estado (onde Hegel pensaria, invertidamente, que o Estado determinaria a propriedade). (7) Este deslocamento é algo fundamental no desenvolvimento intelectual posterior de Marx. Mas em 1843, ele ainda não sabia que para compreender esta sociedade civil deveria partir para o estudo crítico da Economia Política. (8)
No final de 1843, Marx chega com Jenny a Paris para editar um novo jornal, os Anais Franco-Alemães. Os meses seguintes seriam alguns dos mais decisivos de sua vida.
NOTAS
1 – Este foi o tema de nosso último texto “Karl Marx e a democracia (1843)”
2 – Assim como fizemos em nosso último texto, nosso objetivo não é fornecer o que seria uma interpretação correta de Hegel ou contemplar sua complexidade, mas tão somente destacar os elementos que chamaram a atenção da crítica de Marx.
3 – Por exemplo: “O único interesse [de Hegel] é, pura e simplesmente, reencontrar “a Ideia”, a “Ideia lógica” em cada elemento, seja o do Estado, seja o da natureza, e os sujeitos reais, como aqui a “constituição política”, convertem-se em seus simples nomes, de modo que há apenas a aparência de um conhecimento real, pois esses sujeitos reais permanecem incompreendidos, visto que não são determinações apreendidas em sua essência específica.” MARX, Karl, Crítica da filosofia do direito de Hegel, São Paulo: Boitempo, 2005, p. 34.”
4 – Ibid., p. 38.
5 – Ibid., p. 33–44. LUKÁCS, György, O jovem Marx e outros escritos de Filosofia, Rio de Janeiro: UFRJ, 2007, p. 147–50. DE DEUS, Leonardo Gomes, Soberania popular e sufrágio universal: o pensamento político de Marx na Crítica de 43, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001, p. 23–6.
6 – Além desta crítica, há uma outra, imanente, que revela inconsistências lógicas de Hegel.
7 – “…e aquilo que Hegel apresenta como o fim, como o determinante, como a prima causa do morgadio, é, antes, um efeito, uma consequência, o poder da propriedade privada abstrata sobre o Estado político, ao passo que Hegel descreve o morgadio como o poder do Estado político sobre a propriedade privada. Ele faz da causa o efeito, e do efeito a causa, do determinante o determinado e do determinado o determinante.” “ Qual é, então, o poder do Estado político sobre a propriedade privada? O próprio poder da propriedade privada, sua essência trazida à existência. O que resta ao Estado político, em oposição a essa essência? A ilusão de que ele determina, onde ele é determinado. Ele rompe, é verdade, a vontade da família e da sociedade, mas apenas para dar existência à vontade da propriedade privada…”MARX, Crítica, p. 115–6.
8 – DE DEUS, Soberania popular, p. 80; 88; 95–6. MARX, Karl, Contribuição à Crítica da Economia Política, São Paulo: Expressão Popular, 2014, p. 46–7. MARX, Crítica, p. 116–23.José Paulo Netto assim sumariza o conteúdo dos Manuscritos de Kreuznach: Dentre os traços mais importantes dessa análise, dois devem ser destacados: 1°) Marx assume, no plano filosófico, uma perspectiva materialista; 2°) Marx avança a ideia de que a compreensão do Estado supõe a compreensão da sociedade civil. Em meados de 1843, porém, ele não tem condições de explorar, de modo fundado, esta ideia […]; somente com as chaves heurísticas proporcionadas pela Economia Política ele poderá, subsequentemente, descobrir a natureza do Estado […]. Também por isto o Manuscrito de 1843 é um texto inconcluso.” NETTO, José Paulo. “Marx em Paris” IN: MARX, Karl, Cadernos de Paris & Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844, São Paulo: Expressão Popular, 2015, p. 28.
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