Um semestre já se foi de tanto trabalho docente à distância. Seminários, lives, reuniões administrativas, orientações, escrita de artigos e muita leitura. Talvez essa tenha sido, até aqui, a realidade de todos nós professores. Ou seja: muito trabalho. Mas confesso que já não aguento tantas dores. A começar pela da alma, aquela que nos angustia, que nos deprime, que nos isola, que nos estressa; as dores da solidão, dores que mediação técnica nenhuma pode curar, pois necessitamos do calor afetuoso da presença das pessoas. Somos o animal social.
A tela do computador, com aquela fotografia de ícones da distância ao final de nossas atividades, me causa dores profundas, pois lembro com saudade daquelas pessoas da convivência coletiva presencial do nosso cotidiano universitário. O máximo que consigo para suprir a saudade é ter que se contentar com uma imagem e a voz que me chegam por meio da reprodutibilidade técnica. Mas como assinalava Walter Benjamin, para a arte e a cultura de um modo geral, a técnica tem o poder de retirar a aura dos bens culturais em favor da cópia massificadora dos mesmos. Fazendo com ele uma analogia, se a aura se esvai quando da substituição da presença das pessoas nos espetáculos teatrais e a técnica permite que os artistas cheguem as nossas casas por meio do rádio e do cinema, algo semelhante acontece com a nossa educação quando muitos intelectuais relativizam a defesa do encontro aurático na universidade em favor das possibilidades técnicas do home office.
Antes que o leitor me acuse de “dinossaurico”, gostaria de dizer que não sou contra o uso das tecnologias para fins educativos e políticos, desde que não esqueçamos duas condições fundamentais: que elas não podem substituir a realização presencial de assembleias, aulas, eventos acadêmicos, sindicais, partidários, etc; assim como também não podemos esquecer que a técnica não é neutra, mas política e ideológica. No caso atual, de tempos de crise total, as plataformas digitais aparecem para muitos como a saída para o desemprego. Contudo, como demonstrado nas pesquisas dos sociólogos Ricardo Antunes e Ruy Braga, a uberização do mundo do trabalhado tem se intensificado pelo grande capital a fim de extrair mais valor de uma fração cada dia mais precarizada do proletariado mundial. E nós docentes não estamos livres dessa sanha burguesa, pois em muitas universidades e faculdades pelo mundo a fora já impera a figura do “professor horista”, aquele que ganha por seu trabalho intermitente e sem quaisquer garantias de direitos trabalhistas. Minha dor nesse momento é aumentada porque acredito que essa realidade travestida de modernização no mundo do trabalho, nem começou, nem parece terminar com o corona vírus. Pelo contrário, os burgueses estão cada vez mais de olho na possibilidade de fazer da educação à distância uma realidade generalizada e lucrativa. O pior é que muitos professores e estudantes universitários, direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente, sancionam essa situação sem maiores resistências. Privatizados na sua consciência, olham para si como uma fração de classe média, procuram saídas individuais e se afastam de projetos coletivos, inclusive se retirando dos sindicatos e se afastando das assembleias da categoria. Esquecem apenas que, se a universidade pública, gratuita, presencial e de qualidade desparecer, eles também sucumbirão nos escombros com todo resto de tecnologia que ainda tiver debaixo do braço.
Além das dores da alma, o semestre de 2020 tem causado muitas dores físicas a todos nós. Isolados em casa também deixamos de praticar alguma atividade física e ficamos mais sedentários do que nunca, o que implica em acometimento de doenças. Porém, com a mesa de trabalho repleta de atividades para cumprir. Recentemente participei de um seminário com carga horária de 20 horas, para o qual tinha que dedicar mais que o dobro para preparar a exposição. Sentado à frente de um computador, 4 horas todas as tardes, durante uma semana. Assim como os outros dois companheiros docentes com os quais dividi a atividades, terminamos muito cansados, exaustos, na verdade. Dores musculares, dores na coluna, fadiga, cansaço pela repetição dessa modalidade super desgastante que é fazer o papel de tutor da EAD. Adoecimento, na verdade, é o que nos causa o já sistema produtivista implantado nas universidades, sobretudo, nos programas de pós-graduação. Multiplique esse adoecimento docente, físico e psíquico, nesses tempos de pandemia. Problemas familiares com covid; no caso das mulheres, jornada tripla de trabalho em função de também desempenharem o trabalho remoto enquanto mãe, mais uma vez sentada à frente de uma tela para acompanhar seus filhos; pressão da burocracia universitária pela volta do semestre de forma à distância; um governo neoliberal e neofascista ameaçando os direitos que ainda restam; o recurso financeiro que temos que retirar do nosso salário para adquirir equipamentos que as universidades não oferecem.
Tomara que escapemos desse imperativo do reinado do burocratismo doentio e que juntos possamos tomar a vacina produzida pela ciência e pela universidade pública para ficarmos imunizados aos vírus, incluindo nesses o vírus capitalista do trabalho uberizado e o vírus político encarnado naqueles que representam os interesses desse modo de produção.
Estou ansioso para encontrar as pessoas na universidade, conversar, abraçar, beijar, debater, fazer política e produzir conhecimento histórico com qualidade pedagógica. A presença sempre gratificante e acalentadora das pessoas. Isso faz bem à saúde.
*Historiador da UFCG.
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