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OPRESSÕES

Sobre aplicativos, críticas e tom da pele

Camila Lisboa
Reprodução

Nesta semana, uma polêmica importante apareceu nas minhas redes sociais e, provavelmente, extrapolou um pouco a bolha da esquerda, uma vez que envolveu pessoas maiores do que essa bolha.

A filósofa e colunista da Folha de São Paulo, Djamila Ribeiro, importante expressão política e intelectual da luta antirracista fez um post publicitário do aplicativo “Vou de 99”.

Esse post foi alvo de muitas críticas pelo fato de ocorrer justamente no período em que os trabalhadores desses aplicativos estão organizando lutas de resistência contra a superexploração, expressas nas duas greves ocorridas em 01 de julho e 25 de julho.

Uma das críticas foi feita pela editora do Esquerda Diário, Letícia Parks. Essa crítica ganhou projeção e, numa Live realizada entre Djamila e o deputado federal do PSOL Marcelo Freixo, ela respondeu a essa crítica com alguns argumentos, os quais quero sistematizar e debater abaixo, mas também se referiu à Letícia como “clarinha de turbante”.

O ponto de partida do problema

Eu reconheço e respeito o papel de Djamila na realidade brasileira. Não é pouca coisa ganhar respeito e autoridade política e intelectual num país estruturalmente racista, hipócrita e tomado nos últimos anos por uma onda reacionária que levou Jair Bolsonaro, um neofascista, racista, preconceituoso, ao poder.

No marco desse respeito e reconhecimento, e na base do debate político e intelectual, que é suscetível a diferenças e críticas, não concordo com algumas visões que Djamila expressa sobre a luta contra o racismo. Fato que não me impede de estar lado a lado dela contra qualquer expressão de preconceito racial e machista.

Em minha opinião, a propaganda do aplicativo não foi feliz. Entendo sim essa atitude como um descompasso entre uma luta real das mulheres negras – a luta contra a superexploração dos aplicativos – e a propaganda de um desses aplicativos. Entendo que isso é errado porque o racismo estrutural tem sujeitos, ele não vem da “cultura em termos genéricos”, ele vem da superexploração do trabalho, do Estado, das grandes empresas que controlam o Estado. Esses setores são os inimigos que queremos derrotar pra derrubar o racismo. Portanto, não acho que foi uma opção feliz.

É claro que o senso de proporção tem que valer. A propaganda de Djamila não é o maior problema da luta contra os aplicativos. Mas ao se falar desse fato em específico, tenho essa opinião.

Crítica X Discurso de ódio

O que fiz aqui foi uma crítica. O que Letícia Parks fez foi uma crítica, não foi um discurso de ódio.

Na Live realizada com Freixo, Djamila apresentou uma série de dados que demonstram como o twitter é uma rede tóxica sobretudo para as mulheres negras. E sem dúvida, esses dados refletem a experiência empírica de analisar a força dos discursos de extrema direita e racistas que tomam conta dessa rede e que ajudaram inclusive a eleger o presidente racista que governa o Brasil hoje, evidentemente também com base em muita fake news.

No entanto, o enquadramento da crítica de Letícia a esse cenário de fake news e discursos de ódio é um tanto quanto desproporcional e errado.

Vale também dizer que qualquer crítica a uma mulher negra não significa um discurso de ódio. É óbvio e ululante que em um sistema dominado pelo racismo, pelo preconceito e em um dos países mais racistas do mundo, a probabilidade de uma mulher negra ser criticada e desqualificada pelo fato de ser uma mulher negra é enorme. Sabemos disso, vivemos isso. Quantas histórias não temos para contar que expressam isso. Isso é praticamente a história das nossas vidas. Somos sempre desqualificadas.

Esse fato provável deve exigir de todos os interlocutores nossos que meçam as palavras, que calculem os valores históricos de sua forma de pensar, agir e debater. Mas, não deixem de debater conosco. Debatam, não nos tratem de forma diferente por medo de serem racistas e machistas. Isso é expressão de respeito e reconhecimento de nossa força. E é por expressão de respeito e reconhecimento da força de Djamila que desenvolvo esse debate crítico.

“Clarinha de turbante” é muito errado

O racismo no Brasil faz com que muitas pessoas com o tom de pele de Letícia se esforcem para não se identificarem com a raça negra. A quantidade de pessoas pardas nas estatísticas não reflete apenas a “mistura de raças”, reflete também a fuga da identidade negra, por toda a carga de dificuldades que essa identidade carrega num sistema racista. Portanto, é extremamente positivo que uma mulher com o tom de pele de Letícia se reconheça como negra.

Seria errado e superficial dizer que se referir à Letícia como “clarinha de turbante” é a mesma coisa que os racistas fazem conosco. Djamila não é uma “racista ao contrário”. Isso não existe, isso é uma invenção dos racistas, para não aceitarem a nossa luta e a nossa denúncia do racismo histórico e estrutural. Nosso debate é muito mais qualificado do que isso. Não falo isso por mim, falo também pela interlocutora com quem debato. Respeito a Djamila. Seria pobre política e intelectualmente dizer que Djamila foi “racista ao contrário”.

Mas, foi bastante infeliz. E o que me reforçou essa opinião foi o vídeo de uma jovem negra que Djamila compartilhou em seu Instagram, como parte de um projeto de divulgação de iniciativas antirracistas. A jovem relata sua história de auto reconhecimento negro, por ser fruto de uma união inter racial. Bonito o relato. E, como já dito, isso é um tema que boa parte do povo negro brasileiro vive.

Essa é uma expressão da vivência do racismo. Existem outras e várias, muitas inclusive combinadas com a condição de classe. Seguramente, há vivências de racismo que um homem negro rico não viveu. E isso não significa que ele não possa denunciar o racismo. Nenhuma dessas experiências dá mais ou menos autoridade para falar de racismo. Esse tipo de disputa não pode existir. O que vale sim é o debate estrutural e estratégico sobre as melhores saídas para a destruição do racismo. Mas, vamos a argumentos. Somos todas mulheres negras, este fato não nos obriga a pensar igual, mas nos obriga a respeitar as vivências diversas que são fruto de um mesmo problema: o racismo estrutural.