Sergio Ricardo, um pioneiro da música de protesto

Romulo Costa Mattos, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

III Festival de MPB, no teatro Record

I

Nascido em Marília, São Paulo, Sérgio Ricardo foi a mais recente perda no campo musical brasileiro em decorrência da Covid-19. Ele foi um artista multimídia, influenciado pelas ideias de brasilidade e pela ideologia nacional-popular, expressão que designava uma cultura política e uma política cultural das esquerdas, que buscava a expressão simbólica da nacionalidade. Tributário dessa agenda, o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE) tinha a tarefa básica de despertar a consciência do povo brasileiro, entendido como a chave de libertação nacional frente ao imperialismo, no contexto das Reformas de Base de João Goulart (NAPOLITANO, 2001, p. 37-8). Do Manifesto dessa entidade, escrito por Carlos Estevam Martins para tentar disciplinar a produção engajada dos jovens artistas, em 1962, Sérgio Ricardo identificou-se com a proposta de que o jovem artista deveria promover uma atitude revolucionária consequente (CONTIER, 2013, p. 351). Mas jamais deixou de priorizar a qualidade estética de sua obra, tendo recusado a recomendação de reduzir a expressão pessoal à comunicação e a forma ao conteúdo para atingir as massas. Como ele, muitos jovens artistas não aceitaram abandonar o seu mundo “burguês” e se “tornar povo”, por entenderem que esse documento (cuja linha seria retificada) promoveria uma espécie de populismo cultural. Por essa razão, o Manifesto permaneceu mais como uma proposta de discussão, e como defesa de uma nova postura do artista, do que uma plataforma estética de criação artística (NAPOLITANO, 2001, p. 42).

Dentro dessa perspectiva, Sérgio Ricardo musicou as suas mensagens politizadas com os materiais culturais do samba, mas mantendo as conquistas estéticas da bossa nova. Foi assim um dos pioneiros da canção engajada, ao lado de Carlos Lyra, Vinícius de Moraes, Nelson Lins e Barros e Geraldo Vandré. Como eles, Sérgio Ricardo travou contato com o estilo formatado por João Gilberto, que o iniciou no pensamento e nas leituras marxistas, embora o cantor e violonista baiano não praticasse a música participante. Do envolvimento com os precursores da bossa nova surgiu “Pernas”, uma das composições mais conhecidas do início de sua carreira, apesar de se diferenciar da temática “amor, sorriso, flor” por conter questões políticas implícitas (CONTIER, 2013, p. 340). Ela é encontrada no LP A Bossa Romântica de Sérgio Ricardo, lançado pela Odeon em 1960, que em linhas gerais adota a forma moderna de se tocar música brasileira. O texto de apresentação na contracapa confirma essa filiação: “S.R. é a presença da tristeza na bossa nova. Sem desesperos, sem mágoas”. Também participou do show de divulgação da bossa nova no Carnegie Hall, em Nova York, no ano de 1962, marco das discussões sobre esse movimento musical. A partir dele, os partidários de uma bossa nova nacionalista reforçaram a presença dos elementos tradicionais do samba em sua produção, em oposição a uma bossa jazzificada, com demonstrações de competência técnica e mais facilmente assimilada no exterior. Também responderam com a I Noite de Música Popular, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em que promoveram o reencontro com a tradição, tendo colocado um dos pais da bossa nova, Vinícius de Moraes, ao lado de Pixinguinha e da bateria da Escola de Samba Portela (NAPOLITANO, 2010, p. 25).

Não é novidade que Sérgio Ricardo tenha se alinhado aos nacionalistas. Significativamente, apresentou naquele espetáculo nos EUA a composição “Zelão”, de 1960, que já apontava para outra direção, ao incluir a crítica social explícita. A letra conta a história de um morador do morro que perde o seu “barraco” em uma chuva e que só pode contar com a ajuda dos vizinhos. O compositor se inspirou no depoimento de uma moradora de favela do bairro do Humaitá, no Rio, que ficara desabrigada em virtude um temporal, mas mantinha o otimismo porque, segundo ela: “um pobre ajuda o outro até melhorar” (CONTIER, 2013, p. 354-5). Essa frase foi aproveitada em “Zelão”, que romantiza a solidariedade popular e reproduz outras imagens poéticas que seriam recorrentes na música participante, como: o poder da canção e do ato de cantar para mudar o mundo, a denúncia e lamento de um presente opressivo, e a crença na esperança do futuro libertador. O cenário é, claro, a favela, representação por excelência da pobreza, ao lado do sertão. (NAPOLITANO, 2001, p. 42-3). Resumindo o seu aspecto temático: “Essa canção de protesto canta, de forma lírica, o mundo material e o universo mental e cultural dos pobres, num dia de tragédia de carnaval (CONTIER, 2013, p. 356). Quanto aos procedimentos estéticos, ela contém materiais musicais oriundos das classes populares (como o canto das pastorinhas, o pandeiro e o apito) em sintonia com a concepção bossa-novista das harmonias dissonantes e da interpretação vocal mais próxima do natural, além dos arranjos de sopros que apontam para a influência da música de câmara. O objetivo de recuperar a “memória nacional” em consonância com temas de colorações políticas e engajadas foi acentuado no disco Um Sr. Talento, lançado pela gravadora Elenco, em 1963. Trata-se de um dos melhores exemplos da bossa nova nacionalista, que precedeu a MPB, assim como Depois do carnaval, de Carlos Lyra, editado pela Philips no mesmo ano.

A música de Sérgio Ricardo foi aproveitada no teatro, e contribuiu para o histórico show Opinião, de 1964, escrito por Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Os protagonistas eram Nara Leão, Zé Keti e João do Vale, que representavam a jovem de classe média alta, o morador das favelas e o camponês nordestino, respectivamente. A realização do espetáculo com três personalidades pertencentes a estratos socioculturais distintos simbolizava a união dos artistas e intelectuais com o povo, e visava fazer oposição e crítica à ditadura em circuitos onde tais manifestações ainda eram toleradas (Cf. GARCIA, 2007). Sérgio Ricardo (1991, p. 187) falou sobre a importância da experiência de ter assistido a essa peça para a sua carreira profissional: “Vi que meu destino retomara seu curso. Atirei-me no trabalho com toda vontade”, com a produção de novas composições. O artista cedeu aos teatrólogos responsáveis por Opinião as suas criações musicais “Zelão”, “Esse mundo é meu” (1963) e “Perseguição” (1964). Essas duas últimas canções demonstram o seu envolvimento com o Cinema Novo: no primeiro caso, como diretor do filme homônimo, e no segundo, como compositor da trilha sonora de Deus e o diabo na terra do sol, no qual as suas músicas fazem parte da própria ação dramática. Na contracapa do disco com as canções dessa obra cinematográfica, o seu diretor Glauber Rocha registrou as impressões sobre Sérgio Ricardo, que teve de se adaptar às exigências próprias da prática composicional voltada às imagens:

“embora seja sambista com mistura de morro e asfalto, tem paixão pelo Nordeste, tem a vantagem de ser cineasta e sabe que música de filme é coisa diferente: tem de ser parte da imagem, ter o ritmo da imagem, servir (servindo-se) à imagem. Começamos o trabalho. Dei as letras – nas quais usei muitos versos autênticos do povo – e Sérgio começou a compor. Tinha seus vícios de ‘arranjos’; discutimos que o negócio tinha de ser ‘puro’. (…) E ensaiamos pra valer na hora da gravação. Transformei Sérgio em ator – gritei, ele ficou nervoso, deixou os preconceitos e soltou a voz e os dedos do violão.”

Sérgio Ricardo compôs para outros filmes e exerceu mais vezes o ofício de cineasta, entre os anos 1960 e 1970, assim como várias peças teatrais foram alimentadas pelo seu cancioneiro. A diversidade de sua obra explica o porquê de o roqueiro Roberto Frejat tê-lo chamado de “multiartista”, na homenagem póstuma que fez ao amigo em sua rede social, com quem compartilhava a luta pelos diretos autorais dos músicos.

II

Sérgio Ricardo lançou as bases para a canção de protesto, mas nem sempre obteve a aprovação da audiência dos festivais da canção, que divulgaram nacionalmente produtos culturais dessa linha. A sua experiência mais conhecida nesse âmbito se deu no III Festival da Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, do qual participou com “Beto bom de bola”. Analisando as imagens do documentário Uma noite em 67, de Renato Terra e Ricardo Calil (2010), o candidato Sérgio Ricardo já vinha sendo vaiado antes de entrar no palco do teatro daquela emissora, na capital paulista. Mais precisamente, isso ocorreu quando o apresentador Blota Jr. anunciou a mudança no arranjo da composição inscrita na disputa, e comunicou o pedido do artista para que o público ouvisse essa nova versão no sentido poder julgá-la melhor. O cantor tentou estabelecer um diálogo com a plateia: “calma”, “um minutinho”, “assim não é possível”. Também apelou para a ironia: “Eu queria apenas dizer aos presentes que depois desse festival o nome da música (…) vai se chamar ‘Beto bom de vaia’, de forma que vocês podem vaiar à vontade”. Conseguiu adesões, mas os apupos cresceram. “Aqui na plateia só tem pessoas inteligentes como eu estou vendo (…). Vocês estão vaiando a vocês, mesmos”, tentou convencer os expectadores, novamente sem sucesso. Respondendo àqueles que queriam ouvir o seu canto, demarcou posição: “Eu não canto debaixo de vaias”. Agradeceu o aumento provisório do volume do coro que lhe era favorável (“canta!”), e completou: “Eu quero pedir aos que aplaudem e aos que vaiam um pouco de lucidez nesse momento para poder entender o que vou cantar”. Entre aplausos e apupos (esses mais fortes), iniciou um tanto desconfiado a sua apresentação.

As pausas do arranjo da canção eram prolongadas por Sérgio Ricardo, que, contrariado, ouvia parte dos expectadores gritar compassadamente: “fora!”. Atravessando o ritmo da música, reclamou: “Não consigo nem ouvir o tom”. Até que se levantou e exclamou aos expectadores: “Vocês ganharam! Vocês ganharam!”. As frases restantes de seu discurso foram cortadas do videotape disponibilizado pela TV Record ao público, e sequer aparecem no filme anteriormente citado. Mas é possível ler em livros de memorialistas da música popular brasileira que o artista completou a sua fala de forma ainda mais agressiva: “Mas isso é o Brasil não desenvolvido. Vocês são uns animais! Vocês são uns animais!”. Ele se encaminhou para a lateral do palco, teve o microfone retirado de suas mãos pelo apresentador, ergueu o violão sobre um pedestal e o quebrou, para a surpresa de todos. Em seu ato final, jogou o instrumento à plateia (MELLO, 2003, p. 210). O diretor da TV Record, Paulinho Machado de Carvalho, logo anunciou à grande imprensa a desclassificação do compositor, assim justificada: “Nos aguentamos de cabeça baixa (…), com humildade as vaias do público. Esse mesmo público não poderia ser desrespeitado, de forma nenhuma, por um dos participantes do festival” (TERRA, CALIL, 2010). Essa declaração confirmou a condição dos festivais como: “um simulacro de participação popular e liberdade de expressão num momento em que o país mergulhava cada vez mais no autoritarismo político” (NAPOLITANO, 2007, p. 93).

A plateia comemorou a decisão, diferentemente dos jurados, que entendiam ser soberanos, dos jornalistas, que também defendiam essa linha, e dos artistas, que prestaram solidariedade a Sérgio Ricardo no camarim, como Elis Regina e Vandré. O musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello resumiu a declaração do primeiro, quando ainda estava abalado pelo episódio que protagonizara: “aquele público, representante da pequena burguesia brasileira decadente, com uma superfície aparente de civilização, não afetaria os que seguiam a sua carreira” (MELLO, 2003, p. 212). Em depoimento aos cineastas Terra e Calil (2010), o cantor afirmou que no festival houvera a transformação do público em personagem e da vaia em instituição. Lembrou que esse tipo de resposta da plateia era cabível em tal contexto, pois havia a contrariedade de aguentar uma ditadura, uma realidade muito difícil que levava ao extravasamento. Embora não tenha se arrependido de sua atitude, ele a classificou como: “puramente extemporânea e (…) descontrolada”. E concordou com as análises de época elaboradas por psicanalistas, de que ele teria agido como um animal acuado, com o instinto de atacar.

Na apresentação do samba-choro “Beto Bom de Bola” no Teatro Record, o seu autor, que cantava e tocava violão, retirou a orquestra e o coral dos operários da Willys, e apresentou um novo arranjo com Jorginho e seus ritmistas, que faziam os vocais de apoio e repercutiam um pandeiro, uma cuíca, um tamborim e um agogô. Os músicos do Quarteto Novo acrescentavam instrumentos indicativos da modernidade musical, como a bateria acústica, o piano e o contrabaixo acústico. A letra aborda a história de um ex-jogador de futebol contundido, enganado pelo empresário e esquecido pelos brasileiros, apesar das glórias do passado, que incluía o protagonismo em um título de Copa do Mundo. Em certos momentos, o narrador cita o nome de Mané Garrincha, que inspirou o tema da canção. Em termos musicais, ela é uma amostra da crença de Sérgio Ricardo em um samba tocado e composto de forma mais complexa, de acordo com os seus estudos de música erudita, com soluções melódico-harmônicas não convencionais. É possível que isso tenha dificultado o entendimento da canção pelo público. Mello (2003, p. 209) acrescenta que a meninada do iê-iê-iê queria “Capoeirada”, de Erasmo Carlos, em seu lugar, ao passo que outros proferiam a “Canção do cangaceiro” (Carlos Castilho e Chico de Assis), defendida por Maria Odete. As duas haviam sido desclassificadas. Também avalia a composição de Sérgio Ricardo como: “uma das mais fracas (…) de sua bela obra”.

III

A formação intelectual de Sérgio Ricardo foi influenciada por nomes como João Gilberto, Sidney Miller, Glauber Rocha, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Anísio e Tom Jobim, num contexto em que o Brasil estava “irreconhecivelmente inteligente”, segundo a expressão consagrada por Roberto Schwarcz. Como se sabe, o país voltou ao normal e hoje Sérgio Ricardo parece ser mais conhecido por ter quebrado o seu violão num festival da canção do que pela sua rica e diversificada obra. O seu mais recente filme, “Bandeira de retalhos”, de 2018, foi escrito no fim dos anos 1970, quando a sua casa no Morro do Vidigal foi marcada à tinta por agentes do governo do Estado do Rio, indicando que ela seria demolida, assim como a de outras 300 famílias, devido ao alegado risco ambiental, embora o setor hoteleiro estivesse diretamente interessado nessa ação. A luta ao lado dos vizinhos pelo direto à cidade inspirou o roteiro, que, portanto, não o desviou da militância política de esquerda, colada a sua arte desde os anos 1960. E tendo ainda interiorizado o conjunto de valores ligados ao contexto de revolução e transformação social e política vividos pelo país em tal década, afirmou em uma entrevista de divulgação de sua última obra cinematográfica: o “Brasil está sendo vendido ao exterior” (BRASIL, 2020).

 

Bibliografia

BRASIL está sendo vendido ao exterior. Folha de SP, São Paulo, 23 de jul. de 2020.

CONTIER, Arnaldo Daraya. “Sérgio Ricardo: modernidade e engajamento político na canção”. In: MARCOS NAPOLITANO, RODRIGO CZAJKA, RODRIGO PATTO SÁ MOTTA, Org(s). Comunistas Brasileiros: cultura política e produção cultural. Belo Horizonte: UFMG, 2013.

GARCIA, Miliandre. Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958-1964). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2007.

MELLO, Homem Zuza de. A era dos festivais – uma parábola. São Paulo: Editora 34, 2003.

NAPOLITANO, Marcos. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Editora Contexto, 2001.

NAPOLITANO, Marcos. A síncope das ideias: a questão da tradição na música popular brasileira.  São Paulo: Editora Fundação, Perseu Abramo, 2007.

NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção. Engajamento político e indústria cultural na MPB (1959-1969). Versão digital revista pelo autor. 2010.

RICARDO, Sérgio. Quem quebrou meu violão. Rio de Janeiro: Record, 2001.

TERRA, Renato, CALIL, Ricardo. Uma noite em 67. Rio de Janeiro: VideoFilmes, 2010.

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