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BRASIL

PL 3748/2020 e a luta dos entregadores de aplicativos

Victor Marinho, de Salvador, BA
Annelize Tozetto Fotografia

O breque dos apps ocorrido no dia 01 de julho, quando milhares de motoboys e ciclistas ocuparam as ruas em todo o país, evidenciou os altos níveis de superexploração a que estão submetidos os entregadores de aplicativos. A eles são negados direitos trabalhistas e previdenciários e o próprio reconhecimento como trabalhadores. Considerados autônomos pelas empresas, estas impõem a adesão a um contrato civil que transfere os custos de execução da atividade ao trabalhador. Sem direitos como salário mínimo, repouso semanal, férias, seguridade social, estes trabalhadores vivem na mais completa precariedade promovida pela uberização, trabalhando muito e recebendo muito pouco. Como sintetizou o Galo, do Entregadores Antifascistas, “é tortura passar fome carregando comida nas costas”.

Segundo pesquisa da Aliança Brasileira do Setor de Bicicletas[1] realizada em São Paulo (SP), o perfil dos entregadores ciclistas – setor ainda mais vulnerável que os motociclistas – é de entregadores jovens, sendo que 50% deles têm menos de 22 anos, negros (71%), moradores de periferia e com o ensino médio completo. A maioria trabalha nos 7 dias da semana, com jornada média de 9h e 24 min por dia. Os ciclistas ganham, em média, R$ 936 mensais, valor inferior ao salário mínimo nacional. O desemprego é a principal motivação para se cadastrarem nos apps.

Tal situação explica a revolta dos entregadores e a justeza de suas reivindicações por melhores condições de trabalho e proteção social. Ainda, no contexto da pandemia de coronavírus que, no Brasil, já ceifou a vida de mais de 80.000 pessoas, observa-se o completo descaso das empresas com a segurança e saúde destes trabalhadores que, sem direito ao isolamento social e obrigados a saírem às ruas para obter renda e sobreviver, não têm acesso a EPIs, materiais e condições de higiene pessoal, e mesmo garantia de afastamento remunerado em caso de contaminação. Para garantir seus altos lucros com o aumento da demanda, as empresas estão obrigando entregadores a trabalharem mesmo com sintomas de covid-19, arriscando suas vidas e de clientes.

É nesse contexto, marcado pela mobilização dos entregadores, que tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 3748/2020, de autoria da deputada Tabata Amaral (PDT/SP), que visa instituir o “regime de trabalho sob demanda”. A primeira vista, o PL aparenta ser bastante benéfico aos entregadores, alçando-os à formalidade e garantindo um patamar mínimo de direitos como remuneração não inferior ao salário mínimo hora, décimo terceiro e férias acrescidas de ⅓ proporcionais, assistência em caso de acidente de trabalho, seguro desemprego e contribuição previdenciária, além de proteção contra descadastramento imotivado ou por retaliação. Tais medidas são justas e até correspondem, ainda que parcialmente, às demandas do movimento dos entregadores. Entretanto, como veremos, no PL também há armadilhas.

O CÁLCULO DA REMUNERAÇÃO NÃO LEVA EM CONTA O TEMPO DE ESPERA E PODE RESULTAR EM PERDAS SALARIAIS 

Para os empregados celetistas, considera-se a jornada de trabalho como o tempo à disposição do empregador, seja cumprindo ordens ou apenas aguardando-as. O PL em seu art. 5º, § 1º, estipula que no cálculo do salário-hora de trabalho sob demanda será considerado apenas o tempo efetivo de prestação dos serviços, acrescido de 30% a título de tempo de espera. Ou seja, a jornada do trabalhador sob demanda será contada apenas como o período que ele leva para se deslocar entre o início da execução do serviço e a entrega ao cliente. Sobre esse período acrescentaria-se 30% a título de indenização pela espera do recebimento da chamada. Ocorre que esse acréscimo é absolutamente insuficiente para contabilizar o efetivo tempo de espera. A experiência dos entregadores demonstra que o tempo de espera é muitíssimo superior ao das entregas. Recorrendo novamente aos dados da pesquisa referida acima, observamos que os ciclistas realizam, em média, 9 entregas por dia, em jornadas de 9h e 24 min. Ou seja, se realiza uma entrega, em média, a cada hora a disposição do aplicativo. Entretanto, nenhuma entrega leva uma hora para ser realizada. Deve-se levar ainda em conta que, normalmente, os entregadores ficam parados no estabelecimento aguardando as chamadas, não havendo deslocamento para o recebimento do pedido.

Além disso, essa forma de calcular o salário hora não representará qualquer ganho material ao entregador, podendo mesmo acarretar em perdas salariais. Hoje em dia, os entregadores recebem um salário por tarefa, calculado a partir de uma variável envolvendo a distância percorrida e o tempo de entrega, sob um valor mínimo. Por isso a reivindicação dos entregadores é justamente o aumento do valor mínimo e do valor por km rodado. O PL estabelece um valor para o salário mínimo hora do trabalhador sob demanda: uma fração de 180 do valor mensal. Isso corresponde a R$5,80/hora. Digamos que da jornada de 9h e 24 min o tempo efetivamente trabalhado seja de 3h. Esse trabalhador receberia após uma jornada estafante o mísero valor de R$17,40, acrescidos de 30% de indenização pela espera, o que daria R$ 22,62. Ao fim do mês, trabalhando 30 dias sem descanso, 9h e 24 min por dia, este trabalhador receberia R$678,60, muito abaixo da média atual! Pode-se responder que este seria o valor mínimo legal para tal jornada e que os pagamentos efetivos podem continuar sendo um pouco maiores, mas sabe-se muito bem que a tendência do capitalista é abaixar os salários ao mínimo possível.

 O PROJETO NÃO SE LIMITA A ENTREGADORES E MOTORISTAS OU A DETERMINADO TIPO DE PLATAFORMA TECNOLÓGICA

O projeto se preocupa, e isso é dito expressamente em sua justificativa, em alargar suficientemente o raio de incidência do novo regime de trabalho sob demanda para abarcar qualquer trabalhador inscrito em uma plataforma tecnológica, legalizando a uberização do trabalho para todas as atividades. Também permite que qualquer pessoa, física ou jurídica, contrate trabalhadores sob demanda, bastando que o faça por meio de plataformas digitais. Em um momento de reestruturação produtiva do capital, resultando em uma nova configuração ou “morfologia do trabalho”, cada vez mais precarizado e alienante, marcado pelo “privilégio da servidão” (Antunes), a criação de uma nova modalidade de trabalho (mais uma!) que não é nem CLT nem autônomo, ficando no limbo entre as duas, que possui todas as características do trabalho intermitente, mas sem os já limitados direitos assegurados a este, é um perigo para toda a classe trabalhadora brasileira. Significa mais uma possibilidade para o capital de conversão de contratos típicos de trabalho (CLT) em contratos precários atípicos, resultando em mais demissões e contratações sob piores condições. É significativo que o PL não preveja repouso semanal remunerado ao trabalhador sob demanda, sob o argumento que ele decide o dia do seu próprio descanso. O “novo normal” será de trabalhadores integrais, que laboram os 7 dias da semana pois, podendo escolher ficar em casa, se obrigam a trabalhar cada vez mais para garantir o mínimo à sobrevivência.

 O PL ESCAMOTEIA O PROBLEMA DA SUBORDINAÇÃO E INVERTE A RELAÇÃO ENTRE EMPRESA E CLIENTE 

Ao mesmo tempo que o PL admite a subordinação do trabalhador à empresa, ele nega a existência do vínculo empregatício, isto é, o regime previsto na CLT. Mas justamente o que caracteriza a relação de emprego é a presença dos “requisitos”: subordinação, pessoalidade, onerosidade e não-eventualidade. Em seu art. 4, o PL diz: “A plataforma pode determinar a forma de prestação dos serviços pelo trabalhador, não descaracterizando o regime de trabalho sob demanda a realização de treinamentos, a imposição de regras de conduta, a exigência de padrões de qualidade e o monitoramento da realização do serviço”. Trata-se, portanto, de uma impostura jurídica. Se o trabalho sob demanda apresenta as mesmas características da relação de emprego tradicional, incluindo a subordinação (que falta ao autônomo, por exemplo), a não concessão dos mesmos direitos revela uma decisão política. No final, o que o PL acaba fazendo é dizer abertamente que os entregadores nada tem de autônomos, nada tem de empreendedores, são trabalhadores ao pé da letra. Mas, por decisão política, confere-se à empresa todas as prerrogativas, e ao trabalho se limita os direitos.

Ainda, o PL inverte a relação entre empresa e cliente: “O regime de trabalho sob demanda não impede a caracterização de vínculo de emprego entre o trabalhador e um determinado cliente, se presentes os requisitos legais…”. Mas como? Por acaso é o cliente que controla a plataforma, determina os preços, paga e pune o entregador, por acaso é o cliente que detém o controle do algoritmo? Mais um subterfúgio para não reconhecer a relação de dependência econômica entre o entregador e a empresa, o que justificaria a proteção do direito do trabalho. Em um momento em que diversos tribunais vêm afirmando a condição de trabalhador dos entregadores e equiparando-os em direitos aos celetistas, tal tentativa de escamotear o problema da subordinação não deixa de ser conservadora.

É VERDADE QUE A LEGISLAÇÃO ATUAL É INSUFICIENTE PARA GARANTIR UM GRAU MÍNIMO DE PROTEÇÃO SOCIAL AOS ENTREGADORES?

Na justificativa do projeto, alega-se que a atual legislação não dá conta de garantir um padrão mínimo de proteção aos entregadores. Não é verdade. Toda vez que os capitalistas buscam retirar direitos dos trabalhadores, eles afirmam que a CLT é velha, ultrapassada, que não responde ao trabalho sob as novas tecnologias, etc. Mas se a CLT é ultrapassada e insuficiente, por que ela é sempre tomada como referência para a criação de novas leis, novos regimes de trabalho? Porque a intenção é precisamente rebaixar os níveis de proteção ao trabalhador em relação ao padrão mínimo que de fato é a CLT. Eles sempre buscam criar um novo regime pior que o atual, para aumentar seus lucros. Por isso, o que os entregadores precisam não é de um novo regime, mas de gozarem dos direitos previstos na CLT, de serem reconhecidos como trabalhadores. Evidentemente, disposições especiais são necessárias dado a especificidade do trabalho nas plataformas, assim como professores, bancários, químicos, mineiros, possuem regras específicas. Mas todos estão sob o guarda-chuva da CLT, com direitos mínimos igualmente garantidos, e a exclusão dos entregadores deve ser denunciada como uma política discriminatória.

UM CHAMADO À DEPUTADA FERNANDA MELCHIONNA 

Causou surpresa que a deputada Fernanda Melchionna (PSOL/RS) tenha solicitado a inclusão do seu nome como coautora do PL 3748/2020, juntamente com Tábata Amaral. Tendo em vista os argumentos aqui apresentados, acredito que se trata de um equívoco da deputada socialista. Apesar de contemplar reivindicações legítimas, tal projeto contém diversas armadilhas que abrem brecha para a ampliação da uberização e precarização das relações de trabalho no Brasil. Especificamente do ponto de vista salarial, pode inclusive representar retrocessos. Por fim, tal projeto recebeu duras críticas dos próprios entregadores, especialmente quanto ao método de construção. O projeto foi protocolado na Câmara sem os entregadores serem consultados. Por isso, chamo a deputada a rever sua posição e auxiliar na construção, em diálogo com os sindicatos de motoboys e movimentos como o Entregadores Antifascistas, de um novo projeto de lei que atenda as reivindicações, mas sem ceder às armadilhas neoliberais que aspiram uma vida mais precária e com menos direitos. O PSOL pode cumprir um papel fundamental nessa tarefa.

TODO APOIO À LUTA DOS ENTREGADORES!

QUE O BREQUE DO DIA 25 DE JULHO SEJA AINDA MAIS FORTE!

 

 

*O texto reflete a opinião do autor e, não necessariamente, a linha editorial do Esquerda Online.

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