Se vivo fosse, Florestan Fernandes teria completado 100 anos no último 22 de julho de 2020. Depois de trilhar um dos mais brilhantes percursos acadêmicos, Florestan acumulou as maiores honrarias com que um intelectual poderia sonhar: professor doutor, livre-docente, titular e catedrático. Escreveu obras seminais que ajudam a explicar a complexidade e as contradições de um país como o nosso, colocando as ciências sociais brasileiras no patamar do que melhor se produziu no mundo. Quem, por exemplo, não ler “A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica” (que ele começou a escrever sob os efeitos imediatos do golpe de 1 de abril de 1964 e só conseguiu publicar em 1975, ainda em plena ditadura militar) jamais vai entender plenamente os impasses da nossa “democracia” ou a natureza do que ele denominou de “autocracia burguesa”.
Embora cioso dessas conquistas pessoais e profissionais, não era exatamente disso que Florestan mais se orgulhava. O seu maior orgulho, como ele próprio dizia, foi ter permanecido fiel à sua classe de origem, ou seja, aos explorados e oprimidos, os párias da sociedade capitalista: os índios, os negros, os imigrantes, os sem terra, os trabalhadores urbanos. Certa vez ele lembrou esse fato fundamental de sua vida com estas lancinantes palavras: “Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado e sem a socialização pré e extra-escolar que recebi, através das duras lições da vida (…). Iniciei a minha aprendizagem ‘sociológica’ aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto, e penetrei, pelas vias da experiência concreta, no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade (…). A criança estava perdida nesse mundo hostil e tinha de voltar-se para dentro de si mesma para procurar, nas ‘técnicas do corpo’ e nos ‘ardis dos fracos’, os meios de autodefesa para a sobrevivência. Eu não estava sozinho. Havia minha mãe. Porém a soma de duas fraquezas não compõe uma força. Éramos varridos pela ‘tempestade da vida’ e o que nos salvou foi o nosso orgulho selvagem”. Filho de mãe trabalhadora doméstica, de origem portuguesa, e pai desconhecido, arrimo de família,
Florestan logo cedo sentiu na pele as agruras da espoliação social, processo esse que posteriormente iria estudar em muitos de seus livros. Tendo que trabalhar muito cedo, conviveu com os pobres e miseráveis da São Paulo de meados do século XX. Muitas dessas pessoas que conheceu na infância e juventude ficaram para trás, tragadas que foram pela fúria da cidade grande, em pleno desenvolvimento desigual e combinado. Florestan sobreviveu a tudo isso, porém nunca esqueceu essa experiência que haveria de marcar pra sempre sua trajetória existencial. Combinando trabalho e estudo, com um esforço no mais das vezes hercúleo, conseguiu ingressar no seleto circuito da Universidade de São Paulo, aonde se formou e depois se tornou dos mais respeitados docentes da instituição. A essa altura, poderia ter se acomodado e se deixado levar pelas ilusões do mundo acadêmico e do relativo conforto da vida burguesa, a exemplo de alguns de seus pares, o mais conhecido deles Fernando Henrique Cardoso, ex-aluno e renegado discípulo.
Pagou o preço que suas escolhas implicavam: foi preso logo nos primeiros dias do golpe de 1964; foi, compulsoriamente, aposentado em 1969 pelos militares e seus cúmplices na universidade; amargou a dor do exílio e da distância de sua terra natal; comeu o pão que o “diabo amassou” quando resolveu retornar ao país dos generais a serviço do grande capital em 1972 etc. Nem por isso se deixou intimidar pela perseguição e a prepotência dos poderosos. Ao contrário, foi cada vez mais radicalizando suas posições e colocando a sua sociologia crítica a favor das classes subalternas, conjugada a uma militância politica em torno da defesa da educação pública, no combate à ditadura militar, do mandato parlamentar e popular na constituinte de 1986/1988, pela realização da revolução socialista no Brasil.
Florestan faleceu no ano de 1995, deixando uma lacuna irreparável. Esse belo legado feito de inteligência, dignidade humana e compromisso para com os menos favorecidos precisa ser reconhecido e levado adiante, particularmente pela novas gerações. Numa conjuntura tão difícil para o pensamento crítico e o projeto emancipatório dos de baixo, nunca se tornou tão urgente lembrar e tornar viva a presença entre nós desse gigante do marxismo e da esquerda brasileira. Florestan Fernandes: presente, sempre!
*Luciano Mendonça é professor de História da UFCG.
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