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BRASIL

Explosão de novos casos desmente discurso de estabilização e recoloca a necessidade urgente de contenção efetiva

Gilberto Calil, professor da Unioeste-PR

No dia 22 de julho, o Brasil teve novo recorde de novos casos, com impressionantes 67.860 registros, a despeito do fato de que a testagem segue baixíssima, mais de 24% do total mundial, apesar do crescimento descontrolado também nos Estados Unidos e na Índia. Os três países juntos tiveram dois terços em total mundial. O número impressiona sobretudo porque se dá em meio à propagação de um discurso que vinha sustentando estar em curso uma estabilização, e para muitos até mesmo a aproximação da chamada imunidade coletiva. Tornaram-se recorrentes referências a cidades que teriam retomado as atividades e ainda assim não teriam tido aumento significativo do número de novos casos, o que é uma clara falácia, a começar pelo exemplo mais citado da cidade de São Paulo.

De um lado, os números não confirmam a tese da estabilização: desde o início da reabertura, em 15 de junho, o número de casos registrados na capital paulista dobrou, passando de 100.627 para 200.370, afora outros 320.118 suspeitos que estão em monitoramento. O número de óbitos passou de 5.417 para 9.099, afora outras 5.569 mortes suspeitas de Covid. De outro lado, se este aumento não chega a conformar uma “explosão” (o ritmo de crescimento é semelhante ao período anterior), isto se explica pelo fato de que já antes de efetivada a reabertura do comércio, os índices de isolamento eram muito baixos (nas quatro semanas anteriores, oscilavam entre 48% e 49% nos dias úteis e entre 51% e 57% nos finais de semana) e mesmo com a reabertura não houve diminuição drástica destes índices (que ficaram entre 52% e 53% nos dias úteis e entre 44% e 47% nos finais de semana). A capital paulista segue com índice de isolamento ligeiramente superior à média do estado. Seja por falta de condições materiais, de convencimento e informação ou de consciência, parte expressiva da população já não mantinha o isolamento antes, e parte igualmente expressiva da população seguiu mantendo o isolamento mesmo depois da reabertura. Portanto é compreensível que não tenha havido uma explosão de casos, mas não é razoável interpretar isto como estabilização, e muito menos a proposição de retomada das aulas, que inevitavelmente implicaria em uma redução muito mais significativa destes índices de isolamento.

Embora na comparação dos últimos 14 dias em relação aos 14 dias anteriores ainda pareça que estejamos em situação estável, a comparação dos dados da última semana em relação à semana anterior indica resultado bastante diferente. Nos últimos 7 dias, o país teve 260.755 novos casos (uma média de 37.252 novos casos por dia), 21% a mais que nos 7 dias anteriores (165.921).

O quadro reúne os dados dos 15 países com maior número de mortes registradas e registra o número de novos casos dos últimos 14 dias, comparando com os 14 dias anteriores, de forma a identificar se a tendência em cada país é de crescimento ou redução da pandemia. Esta comparação envolvendo o número de novos casos em dois períodos de duas semanas visa avaliar se há avanço ou recuo da pandemia, tendo em vista que diversos países. Os Estados Unidos tem o maior ritmo de crescimento, respondendo por 44% do crescimento do número de casos no período, um resultado claro da reabertura econômica, em especial em estados que tinham sido menos atin­gidos até então. Quatro entre os cinco estados com maior número de novos casos nos últimos dia são do Sul (Florida, Texas, Georgia e Louisiana), o que reafirma a insuficiência das temperaturas elevada e do clima de verão como fator protetivo. A situação segue piorando também na Índia e no México, ambos também fortemente impactados pelo relaxamento das medidas de contenção. Fora da relação dos 15 países com mais mortes, destacam-se com elevado número de novos casos nos últimos 14 dias, a África do Sul 170.283) e a Colômbia 89.790), seguidos por Argentina (54.870), Bangladesh (41.120), Arábia Saudita (38.012), Iraque (32.423) e Paquistão (38.423).

Nos últimos sete dias, o Brasil teve 7.367 mortes  o que representa 19,4% das 38.008 registradas em todo o mundo (o Brasil tem 2.75% da população mundial), mantendo-se na semana uma média de 1.052 mortes diárias, a maior do mundo (os Estados Unidos, em segundo lugar, tiveram, 6.028 mortes na semana). Ontem, segundo o wordometers, o Brasil registrou ontem mais mortes (1.293) que todos os 141 países da Europa, África, Oceania, América Central e Caribe (1.222). Além disto, já são nove semanas completas em que o país mantém uma média diária entre 900 e 1.100 mortes diária.

Este número oficial expressa apenas uma parcela dos óbitos, deixando de considerar outras duas situações. A primeira é que uma parcela dos contaminados morre em casa e mesmo tendo sintomas indicativos de Covid, não são contabilizados. É muito difícil estimar o número de óbitos decorrentes de Covid nesta situação, restando apenas a comparação do número total de óbitos (desconsiderando aqueles por causas externas, como homicídio e acidentes) em relação ao ano anterior (um dado que só é consolidado bastante tempo depois). A segunda situação envolve as mortes por insuficiência respiratória que ocorrem em ambiente hospitalar, com sintomas compatíveis por Covid, mas que não são testados. Neste caso, o óbito é registrado como Síndrome Respiratória Aguda Grave “não identificada”. Segundo o Boletim Epidemiológico 23, em 20 de julho tínhamos já 34.490 mortes por SRAG, além de outras 3.946 mortes em investigação. Somadas ao número oficial de mortes por Covid, já são mais de 121.000 óbitos. Alguns estados seguem registrando mais mortes como SRAG não identificada do que oficializadas para Covid (dados referentes a 20/7): Rio Grande do Sul (1.558 SRAG / 1.308 Covid), Paraná (1959 SRAG / 1.281 Covid), Minas Gerais (2.730 SRAG / 2.057 Covid) e Mato Grosso do Sul (332 / 224).

Além disto, o Ministério da Saúde segue propagando o número de “recuperados” como se fosse um dado positivo, ignorando as diversas pesquisas que indicam que mesmo entre os sobreviventes há diversas sequelas, parte das quais sequer há como avaliar neste momento. Uma pesquisa recente no Reino Unido revela que 60 dias depois da recuperação, 53% dos contaminados ainda sentia fadiga e 43% sentia falta de ar persistente.

A subnotificação segue como problema grave. A declaração do Ministro da Saúde interino (de um Ministério sob intervenção militar) de que a realização de testes não é necessária para o diagnóstico deveria ter produzido reações muito maiores, pelo absurdo que expressa. O resultado preliminar da terceira etapa da pesquisa nacional Epicovid-19BR, divulgado no dia 26 de junho, indica que tínhamos então 5.1 vezes mais contaminados do que indicam os dados oficiais (o que indicava naquela data 2.9% da população). Mantendo-se esta proporção, estaríamos hoje com 11,1 milhões, ou 5,3% da população do país. Considerando a intenção repetida 32vezes por Bolsonaro de atingir 70% da população para garantir a alegada “imunidade de rebanho” (segundo levantamento da agência Aos Fatos), este número teria que crescer ainda mais 13 vezes, com o que se chegaria mantendo a mesma relação, a mais de um milhão mortes, sem considerar o acréscimo decorrente do colapso do sistema de saúde nem os óbitos não registrados. Mantendo persistentemente uma média superior a 1.000 mortes diárias, seguimos com elevado ritmo de expansão do número absoluto de mortes (22.8% em 14 dias) e de casos (30% em 14 dias). Por muitas semanas, o ritmo de crescimento de casos permaneceu superior ao dos óbitos, o ressalta a possibilidade de elevada subnotificação de óbitos. Em maio, os óbitos cresceram 4.97 vezes e o número de casos cresceu mais de 6 vezes. Em junho, número de óbitos cresceu 104% e o de casos cresceu 174%. Em julho, até aqui, os óbitos cresceram 39% e o número de casos 58%. O Brasil já passa de 13% das mortes mundiais, com 390 mortes por milhão de habitantes, 4.8 vezes superior à média mundial (81).

Em números absolutos, apesar da baixíssima testagem, o Brasil é o segundo país com maior número absoluto de novos casos registrados nos últimos 14 dias, ultrapassado pelos Estados Unidos (que tem um total de testes dez vezes maior). Dos 3.197.209 novos casos registrados no período, 16.1% ocorreram no Brasil (515.675) e 29.3% nos Estados Unidos (937.557). Portanto, dois países que juntos não chegam a 7% da população mundial, tiveram mais de 45% dos novos casos. Seguem Índia, Rússia, México, Chile, Peru e Irã, todos com expressivo número de novos casos. Na comparação com o período anterior, observa-se tendências distintas. Estados Unidos (35%), Índia (59%) e México (15%) continuam apresentando crescimento no número de novos casos por período. O Peru que vinha tendo redução volta a aumentar (+11%) sob impacto de reabertura. Tiveram redução o Chile (-11%), Rússia (-6%) e o Irã (-9%). O Brasil, como indicado acima, aparece com leve redução -1,5%), mas dentro do período já se observa aumento na última semana em relação à anterior. Igualmente preocupante é o caso da Espanha, que depois de várias semanas com menos de 10 mil casos em 14 dias, teve aumento expressivo (+177%) e passa de 15 mil casos no período.

Entre os seis países que já se mantém com menos de 10.000 novos casos por período, apenas o Reino Unido apresenta redução (-11%). Os demais, sob o impacto das férias e do turismo, voltam a ter crescimento: Bélgica (74%), Canadá (39%), França (9%), Alemanha (4%) e Itália (3%).

A China, que há tempos deixou de constar no quadro dos quinze países com mais mortes, foi ultrapassada também por Holanda, Turquia e Suécia (que tem uma população 140 vezes menor), Colômbia, Equador, Paquistão e África do Sul e hoje é 23º país em número absoluto de mortes e o 155º em mortes por milhão de habitantes. O país não registra morte há mais de 50 dias e continua conseguindo reduzir os focos recentemente encontrados na região de Pequim, estando com apenas 240 casos ativos.

A maior parte dos países vem elevando expressivamente a testagem e atingindo ou passando a relação de 20 testes realizados por resultado positivo indicada pela OMS como indicadora de um bom controle. Brasil, México e Índia são os três países com menor número de testes. O número de testes por milhão de habitantes que Brasil (23.095), México (6.680) e Índia (10.918) é várias vezes inferior aos demais países com números análogos de mortes e casos. É um patamar de testagem que inviabiliza qualquer controle sobre a pandemia e mostra o quanto é absurdo falar em reabertura da economia. Na relação entre testes realizados e resultados positivos, indicador mais preciso para dimensionar o efetivo controle da pandemia, o Brasil tem índice ainda pior (2.2) inferior ao do México (2.4) e bem pior que o da Índia (12.2). No caso do Brasil, a situação real é ainda bem pior tendo em vista que grande parte deles são testes rápidos, inteiramente inadequados para diagnóstico e que sequer deveriam ser contabilizados.

O elevado ritmo de crescimento das mortes no Brasil, associado a um ritmo de crescimento do número de casos ainda maior, indica um rápido e intenso agravamento do quadro nacional. Já chegando a 82.890 mortes oficializadas, é inadmissível que o país siga sem uma política nacional de contenção. Ainda que haja uma tendência de estabilização do número de novos casos, isto se dá em patamares altíssimos e sem uma política de contenção é possível permanecer por muito tempo ainda neste patamar. As medidas pontuais e regionalizadas de fechamento temporário quando se aproxima o colapso do sistema de saúde têm se mostrado fragmentadas e insuficientes. Torna-se imprescindível um lockdown nacionalmente unificado, com medidas de garantia de renda emergencial e que dure o tempo necessário para a efetiva contenção. Ainda que pareça custoso, é menos dispendioso do que manter a situação de instabilidade e sucessivas aberturas e fechamentos. Infelizmente, desde o início da pandemia nosso isolamento social vem sendo relaxado e sabotado pelas autoridades federais, com cumplicidade explícita do grande empresariado, produzindo a conjunção trágica entre altas taxas de crescimento das mortes e dos novos casos, em um cenário de baixa testagem e subnotificação generalizada.

Atualmente os Estados Unidos e a América Latina (em especial Brasil, México, Colombia, Peru, Chile, Bolívia e Equador) são os principais centros mundiais da pandemia, seguidos pelo Sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas), Ásia Central (Quirguistão, Casaquistão) e Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Qatar e Emirados Árabes) e parte da África (especialmente África do Sul, Egito e Nigéria)

De outro lado, há um crescente número de países com a situação estabilizada e que se encontram com menos de mil casos ativos, em todos os continentes, como Ásia (Coréia do Sul, Hong Kong, Maldivas, Sri Lanka, Iêmem, Síria, China, Chipre, Geórgia, Malásia, Tailândia, Jordânia, Mongólia, Myamar, Camboja e Vietnã), África (Sudão do Sul, Benin, Ruanda, Guiné, Angola, Mali, Libéria, Bostswana, Serra Leoa, Tanzânia, Lesotho, Tunísia, Togo, Mayotte, São Tomé e Príncipe, Uganda, Burkina Faso, Eritréia, Gâmbia, Reunião, Seicheles, Burundi, Djibouti, Niger, Comoros), América do Sul (Suriname, Guiana, Uruguai), América Central e Caribe (Martinica, Bahamas, Jamaica, Turks ans Caicos, Cuba, Belize, Antiga e Barbua, Granadinas, Aruba), Europa (Irlanda, Eslováquia, Hungria, Dinamarca, Eslovênia, Lituânia, Noruega, Letônia, Finlândia, Estônia, Andorra) e Oceania (Nova Zelândia e Papua Nova Guiné.). São países de distintas situações econômicas e sociais, mas que vêm tendo êxito na contenção da pandemia. Incluem-se entre eles países de expressiva população: 26 entre os 90 países com mais de dez milhões de habitantes tem menos de 1.000 casos ativos, incluindo-se o país mais populoso do mundo.

Alguns países tem situação ainda melhor, com menos de dez casos ativos: Chad (16,4 milhões de habitantes), Fiji, Butão, Guadalupe, Taiwan (24 milhões de habitantes), Islândia, Mônaco, Ilhas do Canal, Trinidad e Tobago, (1,4 milhão de habitantes), Barbados, Bermuda, Malta, Santa Lúcia, Saint Martin, Lieschtenstein, Curaçao, Ilhas Faroe, Sant Pierre, Caribe Holandês, Polinésia Francesa, St. Kittis e Nevis, Gibraltar, Ilhas Maurício, Saara Ocidental, Nova Caledônia, Ilha Cayman, Sint Maarteen, San Marino, e Monserat.

Em quase todos os continentes (exceto África) existem países ou territórios que já não tem nenhum caso ativo: dentre 213 países e territórios considerados no wordometers, 13 estão nesta situação: Laos (7,3 milhões de habitantes), Timor Leste (1,3 milhão de habitantes), Macao, Brunei, Granada, Ilha de Man, Dominica, Groenlândia, Ilhas Virgens Britânicas, Anguilla, St. Barth, Malvinas e Vaticano. O Vietnã, com 97 milhões de habitantes e uma política de contenção exemplar, não tem nenhum óbito e registra apenas 43 casos ativos.

É imprescindível e urgente reduzir o ritmo de crescimento do número de novos casos, para em consequência reduzir o número de mortes, pois a manutenção dos índices atuais projeta um cenário que é pior a cada dia e só vai piorar se o processo de reabertura tiver continuidade na situação atual. Se por hipótese considerarmos que este ritmo se mantenha o mesmo (crescimento de 22,8% a cada 14 dias), o número de mortes no Brasil atingiria 101.798 em 5/8, 124.987 em 19/8 e 153.496 em 1º/9. Não se trata de uma previsão, mas de projeção do que pode ocorrer caso não sejamos capazes de diminuir o atual ritmo de forma muito mais vigorosa. Para isto, são inadiáveis medidas para ampliação do nível de isolamento individual, associadas à garantia de efetivas condições de sobrevivência ao conjunto dos trabalhadores, em especial aos mais precarizados. Um pequeno aumento ou uma pequena diminuição no percentual produz um grande efeito em cascata nos números em dois ou três ciclos, o que reforça a urgência do reforço das medidas de contenção.