Nos últimos dias ganhou força um discurso coordenado nos principais meios de comunicação que sustenta que há uma estabilização da pandemia no Brasil. Exemplos disso são a matéria de capa da Folha de São Paulo de 13 de julho, com a manchete “Curva de infecção da Covid-19 sugere imunidade mais ampla”, bem como as reiteradas manchetes do portal G1 indicando que número reduzido de estados (5, 6, 7) têm crescimento no número de mortes, sem destacar que só considera os que tem crescimento superior a 15%, e que boa parte dos restantes também tiveram aumento, mas dentro da margem que já consideram, arbitrariamente, como “estabilização”. Tal discurso reforça o consenso imposto de que não há como adotar medidas mais efetivas para contenção e que se trata de saber como conviver com a pandemia (o que para muitos implica inclusive na defesa da reabertura das escolas, ignorando inúmeras experiências internacionais desastrosas neste sentido). Os dados no quadro indicam pela primeira vez um (modestíssimo) decréscimo no número de novos casos dos últimos 14 dias em relação ao anterior. Ao invés de comemorar este resultado, seria mais prudente e mais lógico observar com este índice de redução, levaríamos muitos meses até atingir uma situação razoável (um patamar inferior a 10.000 novos casos em 14 dias, por exemplo, para não falar em erradicação). E, sobretudo, seria imprescindível salientar que, considerando-se a subnotificação, estes números indicam algo próximo a 3 milhões de novos casos em 14 dias, uma soma alarmante que, considerando-se a letalidade média de 1%, tende a produzir algo próximo a 30.000 mortes adicionais.
O quadro reúne os dados dos 15 países com maior número de mortes registradas e registra o número de novos casos dos últimos 14 dias, comparando com os 14 dias anteriores, de forma a identificar se a tendência em cada país é de crescimento ou redução da pandemia. Esta comparação envolvendo o número de novos casos em dois períodos de duas semanas é um indicador mais preciso para avaliar se há avanço ou recuo da pandemia, tendo em vista que diversos países (em especial Brasil e Chile) manipulam os dados de pacientes recuperados, apresentando números subestimados de casos ativos, enquanto outros países só consideram recuperados os pacientes com testagem PCR negativa, conforme orientação da OMS. Por esta razão, os Estados Unidos aparecem nos quadros de acompanhamento como o wordometers com mais de três quatro vezes mais casos ativos que o Brasil, o que não expressa a realidade. Depois de 18 semanas com crescimento contínuo do número de novos casos, pela primeira vez na semana epidemiológica 29, encerrada no último sábado, houve um pequeno recuo, absolutamente insuficiente para indicar tendência a estabilização. Os Estados Unidos tem o maior ritmo de crescimento e incrivelmente respondem por mais da metade da elevação do número de casos no último período em relação ao anterior, um resultado claro da reabertura econômica, em especial em estados que tinham sido menos atingidos até então. Dentre os dez estados com maior número de novos casos nos últimos dias, 8 são do Sul, com destque para Florida e Texas (os outros dois são Califórnia e Arizona), o que reforça uma vez mais que clima de verão e temperatura quente não impedem o avanço da pandemia. A situação segue piorando também na Índia e no México, ambos também fortemente impactados pelo relaxamento das medidas de contenção. Fora da relação dos 15 países com mais mortes, outros países também vêm tendo expressivo aumento do número de casos como África do Sul, Paquistão, Bangladesh, Arábia Saudita, Colômbia e Bolívia.
Nos últimos sete dias, o Brasil teve 7.388 mortes o que representa 20,6% das 35.779 registradas em todo o mundo (o Brasil tem 2.75% da população mundial), mantendo-se na semana uma média de 1.055 mortes diárias, a maior do mundo (os Estados Unidos, em segundo lugar, tiveram, 5.537 mortes na semana). Ontem, segundo o wordometers, o Brasil muito registrou mais mortes (716) que todos os 141 países da Europa, África, Oceania, América Central e Caribe (540). Além disto, já são nove semanas completas em que o país mantém uma média diária entre 900 e 1.100 mortes diária.
Este número oficial expressa apenas uma parcela dos óbitos, deixando de considerar outras duas situações. A primeira é que uma parcela dos contaminados morre em casa e mesmo tendo sintomas indicativos de Covid, não são contabilizados. É muito difícil estimar o número de óbitos decorrentes de Covid nesta situação, restando apenas a comparação do número total de óbitos (desconsiderando aqueles por causas externas, como homicídio e acidentes) em relação ao ano anterior (um dado que só é consolidado bastante tempo depois). A segunda situação envolve as mortes por insuficiência respiratória que ocorrem em ambiente hospitalar, com sintomas compatíveis por Covid, mas que não são testados. Neste caso, o óbito é registrado como Síndrome Respiratória Aguda Grave “não identificada”. Em alguns estados, o número de mortes por SRAG não identificada segue muito superior ao de mortes oficializadas para Covid, como é o caso do Paraná, que no último dado disponível (relativo a 15/7), registrava 1.099 óbitos por Covid e outros 1.891 por SRAG “não identificada”.
Além disto, o Ministério da Saúde segue propagando o número de “recuperados” como se fosse um dado positivo, ignorando as diversas pesquisas que indicam que mesmo entre os sobreviventes há diversas sequelas, parte das quais sequer há como avaliar neste momento. Uma pesquisa recente no Reino Unido revela que 60 dias depois da recuperação, 53% dos contaminados ainda sentia fadiga e 43% sentia falta de ar persistente.
A subnotificação segue como problema grave. A declaração do Ministro da Saúde interino (de um Ministério sob intervenção militar) de que a realização de testes não é necessária para o diagnóstico deveria ter produzido reações muito maiores, pelo absurdo que expressa. O resultado preliminar da terceira etapa da pesquisa nacional Epicovid-19BR, divulgado no dia 26 de junho, indica que tínhamos então 5.1 vezes mais contaminados do que indicam os dados oficiais (o que indicava naquela data 2.9% da população). Mantendo-se esta proporção, estaríamos hoje com 10,7 milhões, ou 5% da população do país. Considerando a intenção repetida 32vezes por Bolsonaro de atingir 70% da população para garantir a alegada “imunidade de rebanho” (segundo levantamento da agência Aos Fatos), este número teria que crescer ainda mais 14 vezes, com o que se chegaria mantendo a mesma relação, a mais de 1.100.000 mortes, sem considerar o acréscimo decorrente do colapso do sistema de saúde nem a atual subnoficação de óbitos não testados. Mantendo persistentemente uma média superior a 1.000 mortes diárias, seguimos com elevado ritmo de expansão do número absoluto de mortes (22.5% em 14 dias) e de casos (31% em 14 dias). Por muitas semanas, o ritmo de crescimento de casos permaneceu superior ao dos óbitos, o ressalta a possibilidade de elevada subnotificação de óbitos. Em maio, os óbitos cresceram 4.97 vezes e o número de casos cresceu mais de 6 vezes. Em junho, número de óbitos cresceu 104% e o de casos cresceu 174%. Em julho, até aqui, os óbitos cresceram 33% e o número de casos 49%. O Brasil já passa de 13% das mortes mundiais, com 374 mortes por milhão de habitantes, 4.8 vezes superior à média mundial (78.2).
Em números absolutos, apesar da baixíssima testagem, o Brasil é o segundo país com maior número absoluto de novos casos registrados nos últimos 14 dias, ultrapassado pelos Estados Unidos (que tem um total de testes dez vezes maior). Dos 3.062.148 novos casos registrados no período, 16.1% ocorreram no Brasil (495.334) e 29.5% nos Estados Unidos (904.157). Portanto, dois países que juntos não chegam a 7% da população mundial, tiveram mais de 45% dos novos casos. Seguem Índia, Rússia, México, Chile, Peru e Irã, todos com expressivo número de novos casos. Na comparação com o período anterior, observa-se tendências distintas. Estados Unidos (45%), Índia (55%) e México (13%) continuam apresentando crescimento no número de novos casos por período. O Peru que vinha tendo redução volta a aumentar (+6%) sob impacto de reabertura. O Chile teve uma redução de 36%, e Rússia (-7%), Irã (-6%) e Brasil (-4%) tiveram oscilações pequenas. Entre os sete países que já se encontram com menos de 10.000 novos casos por período, destaca-se o crescimento preocupante do número de casos na Espanha (+108%). Também tiveram crescimento, em menor proporção, Bélgica (32%), Canadá (14%), Itália (4%) e França (3%), enquanto França (-12%) e Alemanha (-17%) tiveram redução.
A China, que há tempos deixou de constar no quadro dos quinze países com mais mortes, foi ultrapassada também por Holanda, Turquia e Suécia (que tem uma população 140 vezes menor), Colômbia, Equador, Paquistão e África do Sul e hoje é 23º país em número absoluto de mortes e o 153º em mortes por milhão de habitantes. O país não registra morte há mais de 50 dias e continua conseguindo reduzir os focos recentemente encontrados na região de Pequim, estando com apenas 249 casos ativos.
A maior parte dos países vem elevando expressivamente a testagem e atingindo ou passando a relação de 20 testes realizados por resultado positivo indicada pela OMS como indicadora de um bom controle. Brasil, México e Índia são os três países com menor número de testes. O número de testes por milhão de habitantes que Brasil (23.026), México (6.315) e Índia (10.175) é várias vezes inferior aos demais países com números análogos de mortes e casos. É um patamar de testagem que inviabiliza qualquer controle sobre a pandemia e mostra o quanto é absurdo falar em reabertura da economia. Na relação entre testes realizados e resultados positivos, indicador mais preciso para dimensionar o efetivo controle da pandemia, o Brasil tem índice ainda pior (2.3) inferior ao do México (2.4) e bem pior que o da Índia (12.6). No caso do Brasil, a situação real é ainda bem pior tendo em vista que grande parte deles são testes rápidos, inteiramente inadequados para diagnóstico e que sequer deveriam ser contabilizados.
O elevado ritmo de crescimento das mortes no Brasil, associado a um ritmo de crescimento do número de casos ainda maior, indica um rápido e intenso agravamento do quadro nacional. Já chegando a 75.000 mortes oficializadas, é inadmissível que o país siga sem uma política nacional de contenção. Ainda que haja uma tendência de estabilização do número de novos casos, isto se dá em patamares altíssimos e sem uma política de contenção é possível permanecer por muito tempo ainda neste patamar. As medidas pontuais e regionalizadas de fechamento temporário quando se aproxima o colapso do sistema de saúde têm se mostrado fragmentadas e insuficientes. Torna-se imprescindível um lockdown nacionalmente unificado, com medidas de garantia de renda emergencial e que dure o tempo necessário para a efetiva contenção. Ainda que pareça custoso, é menos dispendioso do que manter a situação de instabilidade e sucessivas aberturas e fechamentos. Infelizmente, desde o início da pandemia nosso isolamento social vem sendo relaxado e sabotado pelas autoridades federais, com cumplicidade explícita do grande empresariado, produzindo a conjunção trágica entre altas taxas de crescimento das mortes e dos novos casos, em um cenário de baixa testagem e subnotificação generalizada.
Atualmente os Estados Unidos e a América Latina (em especial Brasil, México, Peru, Chile e Equador) são os principais centros mundiais da pandemia, seguidos pelo Sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh, Filipinas), Ásia Central (Quirguistão, Casaquistão) e Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Qatar e Emirados Árabes) e parte da África (especialmente África do Sul, Egito e Nigéria)
De outro lado, há um crescente número de países com a situação estabilizada e que se encontram com menos de mil casos ativos, em todos os continentes, como Ásia (Coréia do Sul, Sri Lanka, Maldivas, Hong Kong, Iêmem, Síria, China, Jordânia, Chipre, Geórgia, Malásia, Tailândia, Mongólia, Miamar, Camboja e Vietnã), África (Guiné, Sudão do Sul, Eswatini, Benin, Ruanda, Mali, Libéria, Bostswana, Angola, Serra Leoa, Tanzânia, Lesotho, São Tomé e Príncipe, Tunísia, Togo, Mayotte, Reunião, Djibouti, Burundi, Burkina Faso, Eritréia, Seicheles, Uganda, Gâmbia, Niger, Comoros, Chad), América do Sul (Suriname, Guiana, Uruguai), América Central e Caribe (Martinica, Jamaica, Bahamas, Turks ans Caicos, Cuba, Antiga e Barbua, Belize, Granadinas), Europa (Irlanda, Noruega, Hungria, Eslováquia, Dinamarca, Eslovênia, Lituânia, Letônia, Finlândia, Estônia, Andorra, Islândia) e Oceania (Nova Zelândia.). São países de distintas situações econômicas e sociais, mas que vêm tendo êxito na contenção da pandemia. Incluem-se entre eles países de expressiva população: 26 entre os 90 países com mais de dez milhões de habitantes tem menos de 1.000 casos ativos, incluindo-se o país mais populoso do mundo.
Alguns países tem situação ainda melhor, com menos de dez casos ativos: Aruba, Guadalupe, Taiwan (24 milhões de habitantes), Papua Nova Guiné (9 milhões de habitantes), Fiji, Butão, Barbados, Ilhas do Canal, Bermuda, Mônaco, Malta, Trinidad e Tobago, Santa Lúcia, Saint Martin, Lieschtenstein, Curaçao, Ilhas Faroe, Sant Pierre, Ilhas Maurício, St. Kittis e Nevis, Saara Ocidental, Nova Caledônia, Ilha Cayman, Sint Maarteen, San Marino, e Monserat.
Em quase todos os continentes (exceto África) existem países que já não tem nenhum caso ativo: dentre 213 países e territórios considerados no wordometers, 14 estão nesta situação: Laos (7,3 milhões de habitantes), Timor Leste (1,3 milhão de habitantes), Macao, Brunei, Granada, Ilha de Man, Dominica, Groenlândia, Gibraltar, Ilhas Virgens Britânicas, Anguilla, St. Barth, Malvinas e Vaticano. O Vietnã, com 97 milhões de habitantes e uma política de contenção exemplar, não tem nenhum óbito e registra apenas 25 casos ativos.
É imprescindível e urgente reduzir o ritmo de crescimento do número de novos casos, para em consequência reduzir o número de mortes, pois a manutenção dos índices atuais projeta um cenário que é pior a cada dia e só vai piorar se o processo de reabertura tiver continuidade na situação atual. Se por hipótese considerarmos que este ritmo se mantenha o mesmo (crescimento de 22,5% a cada 14 dias), o número de mortes no Brasil atingiria 97.427 em 2/8, 119.349 em 16/8 e 146.202 em 29/8. Não se trata de uma previsão, mas de projeção do que pode ocorrer caso não sejamos capazes de diminuir o atual ritmo de forma muito mais vigorosa. Para isto, são inadiáveis medidas para ampliação do nível de isolamento individual, associadas à garantia de efetivas condições de sobrevivência ao conjunto dos trabalhadores, em especial aos mais precarizados. Um pequeno aumento ou uma pequena diminuição no percentual produz um grande efeito em cascata nos números em dois ou três ciclos, o que reforça a urgência do reforço das medidas de contenção.
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