“O tema da diferença de qualidade entre as raças é antigo, vai parasitar e atravessar a cultura durante o último quarto do século XIX. Mas nos anos 30 do século XX banaliza-se a ponto de se tronar senso comum”. Achille Mbembe. Crítica da Razão Negra.
O poder conquistado pelo fascismo e pelo nazismo no mundo, especialmente na Europa, nos anos 1930, é, em larga medida, fruto desse senso comum de que fala Mbembe. Mas, ele também resultou das tensões sociais, políticas e geopolíticas geradas pela combinação da crise combinada do sistema capitalista, das democracias liberais e da divisão do mundo colonial entre as potências imperialistas.
A destilação quimicamente pura da cultura imperialista
Durante toda a década de 1930 Leon Trotsky defendeu a ideia de que a marcha ascendente do fascismo só poderia ser freada e derrotada pela força unificada de toda a classe trabalhadora e de suas organizações políticas e sindicais, que estavam divididas entre a influência dos partidos comunistas e dos partidos socialdemocratas.
Na Alemanha, a confusão gerada entre os trabalhadores pela agitação política realizada pelo PC Alemão, qualificando os socialdemocratas de “social-fascistas” e os igualando aos nazistas, impossibilitou a constituição dessa necessária frente única e deixou Hitler seguir sem graves percalços em direção ao poder, conquistado pela via eleitoral, sem resistência direta dos trabalhadores.
Trotsky possuía a lucida consciência de que na luta contra a ascensão do nazismo na Alemanha e de outras variantes do fascismo na velha Europa estava em disputa não apenas o destino da classe trabalhadora, mas de toda a humanidade. Compreendia que a vitória do fascismo no continente significaria a imposição de regimes políticos alicerçados nas mais bárbaras e desumanas formas de dominação e exploração sobre os trabalhadores e os povos colonizados. No “Manifesto Sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial”, escrito em maio de 1940, ele se refere ao discurso nazista de salvação nacional baseado nas ideias de pureza racial, supremacia ariana e antissemitismo como “a destilação quimicamente pura da cultura imperialista”. Marcando, com isso, a relação umbilical entre esse discurso, os interesses de classe da burguesia e as suas pretensões imperialistas.
Mas, essa “destilação quimicamente pura” não se processou de um dia para o outro. Em sua “Época dos Impérios”, Hobsbawm informa que “Entre 1876 e 1915, cerca de um quarto da superfície continental do globo foi distribuído ou redistribuído, como colônia, entre meia dúzia de Estados”. Lembremos que, em 1885, reunidas na Conferência de Berlim, as potências europeias, régua e lápis nas mãos, redefiniram o mapa da África e distribuíram entre si o domínio sobre seu território. O colonialismo assim sacramentado tanto se baseou como alimentou o desenvolvimento e a disseminação do racismo que, sob financiamento dos Estados metropolitanos e engajamento de suas burocracias, universidades e centros de pesquisa, ganharam status de cientificidade.
Colonialismo, racismo e interesses burgueses formaram, portanto, as substâncias de base que, amalgamadas no ambiente de crise do capitalismo e da democracia liberal, resultaram no “senso comum” fascista da década de 1930. Nesse contexto, o ressentimento nacional devido à derrota sofrida na Primeira Guerra Mundial, que resultou na perda de suas colônias em África e de parte do território do seu antigo império, somado à negativa do PC Alemão de se lançar à formação da frente única antifascista, operou para a emersão do Estado Nazista.
Como a Primeira Guerra não logrou resolver as disputas entre os antigos impérios coloniais e havendo a Alemanha se recomposto militarmente da derrota sofrida, sob as condições da Grande Depressão econômica aberta com a o crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, as tensões geopolíticas e militares entre os imperialistas retardatários, Alemanha e Itália, e os imperialistas dominantes, Grã-Bretanha e França, voltaram à tona. Uma nova repartição do mundo era requerida pelos desafiantes. A invasão da Itália fascista sobre a Etiópia, em 1935, único Estado africano independente àquela altura, obrigando o Imperador Halie Selassie I a refugiar-se em Londres, combinada com a movimentação das tropas alemãs nos Balcãs representaram o soar das trombetas do novo conflito mundial que se aproximava.
Trotsky testemunhou o início da Segunda Guerra, em 1939, a partir do seu exílio, no México. Mas, assassinado por um agente stalinista, em agosto de 1940, foi impedido de testemunhar e refletir sobre a tragédia gerada pelo Estado Nazista. Seus artigos consideram o conteúdo racista e antissemita do discurso nazifascista, mas não realizam análise mais acurada dessa dimensão específica do regime nazista. Dimensão que, no período seguinte à derrota de Hitler ganhou lugar de centralidade nos estudos e nas narrativas relativamente ao nazismo, dadas as chocantes revelações sobre os experimentos de eugenia, os campos de concentração, as câmaras de gás e o holocausto.
O lugar do negro em meio ao holocausto do judeu
O projeto de uma civilização ariana, racialmente pura e superior, detentora dos direitos de dominação, exploração e extermínio de outras raças, não se dirigia apenas contra o povo judeu. No entanto, dada a forte presença de judeus na Alemanha e na Europa, eles figuraram aos nazistas como o inimigo destacado desse projeto e o principal foco das ações de espoliação, dominação, subjugação, extermínio e holocausto. Mas não é de menos importância contar a história dos outros povos e sujeitos igualmente submetidos a esses horrores, dentre os quais figuram negros, ciganos, algumas etnias eslavas e pessoas com deficiência. No espaço deste artigo, todavia, interessa destacar a condição dos negros. Para o que será preciso observa-la em linha com a condição do judeu. Pois assim operou o regime nazista.
Em 7 de julho de 1933, logo no seu início, o regime nazista instituiu uma lei proibindo aos judeus ocuparem cargos públicos. E na sequência, em 14 de julho, foi decretada uma lei eugenista que determinava a esterilização forçada de pessoas com doenças hereditárias. Mais adiante, em 1935, foram instituídas as três Leis de Nuremberg. Uma delas definiu a suástica como símbolo oficial da Alemanha. As duas outras trataram do tema que aqui interessa. A Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemã proibia o casamento e a prática de relações sexuais entre alemães e judeus e a Lei de Cidadania do Reich, definia como portador da cidadania alemã apenas as pessoas portadoras de sangue alemão ou que possuíssem algum vínculo ancestral com a nacionalidade. As demais pessoas foram destituídas de direitos políticos e sociais e passaram a ser consideradas simples portadoras de obrigações a cumprir para com o Estado, como o dever de pagar impostos. Para sua aplicação, definiu-se que eram judeus todos que apresentassem 3/4 de sangue judeu ou que praticassem o judaísmo. Definiu-se ainda que as pessoas que apresentassem 1/4 ou 1/2 de sangue judeu pertenciam a uma raça mestiça em segundo e de primeiro grau, respectivamente, às quais eram admitidos diferentes níveis de acesso à cidadania alemã.
Quando os nazistas ascenderam ao poder, em 1933, estima-se que cerca de 25 mil pessoas negras viviam na Alemanha. A maior parte delas era originária das ex-colônias alemãs da África, perdidas para os concorrentes imperialistas do país, como resultado de sua derrota na Primeira Guerra Mundial. Muitas haviam constituído famílias e seus filhos formavam a primeira e jovem geração de negros e mestiços nascidos na Alemanha. Na região da Renania viviam entre 600 e 800 jovens mestiços, filhos de mulheres alemãs com soldados oriundos das colônias francesas de África, que participaram da ocupação daquela região pelo exército francês, em 1919, e lá permaneceram até 1930, como resultado do Tratado de Versailles, que selou a derrota do país na Primeira Guerra.
A essas pessoas foi aplicada toda a legislação racial e eugenista anteriormente mencionada. Assim elas foram impedidas de ocupar cargos públicos, de casarem-se e contrariem relações sexuais com arianos, sofreram as mais desumanas humilhações públicas e foram atacadas pela máquina de propaganda nazista como uma “perigosa peste” que ameaça contaminar o puro sangue alemão e degenerar a raça ariana. Pouco registro há sobre o destino delas. No entanto, há indícios de que muitas tenham sido objeto de experimentos eugênicos. Sabe-se que ao menos 20 foram enviadas para campos de concentração. E há registros de que, em 1937, cerca de 385 mestiços da Renânia sofreram esterilização.
O Estado Colonial como protótipo do Estado Nazista
O Estado Nazista não foi o primeiro Estado racista da História e não foi o primeiro a praticar a soberania como direito de exterminar grupos raciais subjugados. O holocausto judeu foi antecedido por holocaustos coloniais até de maiores proporções, a exemplo do extermínio massivo de africanos nas operações de apresamento, embarque e travessia do atlântico em direção à escravidão nas Américas; a gigantesca matança dos nativos das Américas, levando ao desaparecimento de inúmeras etnias; e o holocausto promovido pelos mandatários coloniais do Rei Leopoldo II, da Bélgica, no Estado Livre do Congo, entre 1885 e 1905, onde se estima algo entre 8 e 10 milhões de mortos.
Não é sem fundamento, portanto, que Achille Mbemb considera que a “encarnação da racionalidade ocidental” enquanto “síntese entre a burocracia estatal e a carnificina”, conforme se testemunhou com o regime nazista, não foi mais do que “a extensão dos métodos, previamente reservados apenas aos ‘selvagens’, aos povos ‘civilizados’ da Europa”. Uma vez que “o mundo colonial foi terreno fértil pra novas experiências radicais como a seleção das raças, a proibição dos casamentos mistos, a esterilização forçada e, até, o extermínio de povos conquistados”.
O atual ressurgimento do fascismo no seio das sociedades ocidentais parece indicar, portanto, a formação de um novo senso comum baseado no crescente uso dos métodos da política de morte fundados em critérios de raça até mesmo por parte das democracias liberais. E pelo que indicou o multitudinário levante do povo negros norte-americano, os negros e negras estão destinados a ocupar a vanguarda do enfrentamento a esse novo senso comum fascista.
Destinado, portanto, a honrar, na política, a façanha realizada pelo atleta afro-americano Jessie Owens nas Olimpíadas de Berlim, em 1936. Contrariando as pretensões de Hitler de demonstrar ao mundo a superioridade do atleta ariano, Owens estragou a festa dos nazistas, subindo ao pódio para receber as medalhas de ouro nas provas dos 100 e dos 200 metros do revezamento 4×100 e do salto a distância.
Referências bibliográficas:
HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios: 1875 – 1914. 2ª edição, Paz e Terra, São Paulo, 1988.
MBEMB, Achille. Crítica da Razão Negra. Antígona, 2 edição, Lisboa, 2017.
MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Antígona, 1 edição, Lisboa, 2017.
TROTSKY, Leon. O marxismo e nossa época. Fevereiro de 1939.
TROTSKY, Leon. Manifesto Sobre a Guerra Imperialista e a Revolução Proletária Mundial. Maio de 1940.
TROTSKY, Leon. Revolução e Contrarrevolução na Alemanha. Sundermann, São Paulo 2011.
Sites:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48363834
https://www.geledes.org.br/a-vida-dos-negros-na-alemanha-nazista/
https://www.geledes.org.br/negros-vitimas-esquecidas-do-nazismo/
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