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BRASIL

O ministro-pastor e a laicidade na educação

Regis Argüelles da Costa*, de Niterói, RJ
Reprodução

Sendo a questão educacional uma pauta política de primeira ordem na época, o Governo Provisório estabelecido sob Getúlio Vargas, em 1930, determinou rapidamente a criação Ministério da Educação e Saúde Pública. O novo ministério foi entregue ao jurista mineiro Francisco Campos, que já havia ocupado a Secretaria da Justiça de seu estado. Católico, o ministro era também conhecido por ser um dos fundadores da Legião de Outubro, um partido fascista. Mais adiante, redigiria a Constituição de inspiração fascista de 1937 e o AI-1, já na ditadura empresarial-militar.

A primeira medida de impacto do ministro Francisco Campos foi a Reforma do Ensino Secundário, de 1931. Dentre outras coisas, a reforma instituiu o ensino religioso que, em termos práticos, era o ensino da doutrina católica nas escolas públicas. Rompendo com a tradição laica na educação da República Oligárquica, a questão do ensino religioso provocou, no ano seguinte, uma cisão na Associação Brasileira de Educação. Seja como for, o ensino religioso em escolas públicas permanece até hoje como lei federal, tendo inclusive recebido atenção especial nas discussões recentes sobre a reforma da base nacional curricular.

Os quase 90 anos de ensino religioso provocaram efeitos negativos nada desprezíveis no processo de democratização da escola pública, dentre os quais destacamos a institucionalização da discriminação religiosa, especialmente contra as religiões de matriz africana, e da discriminação de gênero e contra as pessoas LGBTQ+. O uso do espaço escolar para a divulgação de determinada doutrina religiosa é um grave ataque, portanto, ao caráter laico do Estado e à escola democrática. No Brasil, tradicionalmente os católicos romanos têm liderado a defesa do ensino religioso, permanecendo os evangélicos mais divididos em relação à questão.

A intromissão do campo religioso na política educacional não ficou limitada à institucionalização do ensino religioso. É matéria de farta literatura da história da educação brasileira as benesses recebidas pelas instituições de ensino confessionais de caráter filantrópico, tais como a isenção fiscal, as bolsas via salário-educação e o financiamento de projetos de expansão com verbas do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação. Em suma, é histórico o favorecimento de instituições confessionais através de recursos públicos, o que Luiz Antônio Cunha denominou como privatismo econômico.

Nos últimos anos ficou claro o avanço da pauta fundamentalista cristã no debate sobre a educação pública. Por exemplo, o Movimento Escola sem Partido foi contemplado com vários projetos de lei de membros da Frente Parlamentar Evangélica, que publicou um manifesto em 2018 defendendo uma escola “sem ideologia” e “sem partido”. Grupos fundamentalistas religiosos atacaram o projeto “Escola sem homofobia”, que acabou suspenso em 2011. Em mais um ataque à laicidade do Estado, em 2017 o STF deu parecer favorável ao ensino religioso confessional na escola pública.

Por tudo isso, o problema da laicidade na educação é atualíssimo. A aliança entre o governo Bolsonaro e as “grandes corporações” neopentecostais parece-nos bastante sólida, e as consequências para a escola pública podem ser dramáticas. Para além das graves questões discriminatórias ressaltadas acima, há o perigo do avanço de propostas de regulamentação do ensino domiciliar e da gestão privada das escolas públicas, as escolas charter, que podem ampliar a capacidade de institucionalização do ensino confessional. Nos Estados Unidos, a propagação do modelo charter sob o argumento do respeito à escolha das famílias acabou promovendo o aumento do número de escolas estritamente confessionais, que possuem posições fundamentalistas em assuntos como o aborto, a teoria da evolução e o respeito à diversidade de gênero.

O quadro esboçado até aqui só pode ver com profunda preocupação a indicação de Milton Ribeiro para o cargo de Ministro da Educação do governo Bolsonaro. Assim como o seu antecessor, Ribeiro tem uma carreira acadêmica pífia. Todavia, os títulos que importam aqui parecem ter sido outros. O recém-nomeado ministro é pastor presbiteriano e vice-reitor da Universidade Mackenzie. Segundo reportagem, o nome do pastor agradou pelo “apreço à família e aos valores”.

Como não poderia deixar de ser quando se trata de governo Bolsonaro, algumas posições do ministro-pastor em relação à educação, divulgadas em vídeos na internet, causaram polêmica e mal-estar (1). Em um desses vídeos, Milton Ribeiro defende a violência contra a criança como prática pedagógica eficaz. Já em outro, faz críticas à universidade, qualificando-a como um espaço onde se ensina a prática do “sexo sem limites”, a partir de uma abordagem reacionária do existencialismo e da sexualidade. Diante de um ministro deste nível, a luta pela laicidade na educação pode ser o farol contra duas potenciais ameaças: o favorecimento de setores privados afinados com os “valores religiosos” defendidos por Milton Ribeiro no fornecimento de serviços educacionais e a ampliação do proselitismo religioso nas escolas públicas.

*Regis Argüelles da Costa é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF).

NOTAS

1 – Uma coletânea desses vídeos encontra-se em https://www.youtube.com/watch?v=fWipfiWZZLw&feature=youtu.be

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