Dos que não se conformam
Publicado em: 5 de julho de 2020
Não dá pra estar satisfeito apenas por ter um trabalho com carteira assinada. Em um país que o desemprego e a precarização de milhões de pessoas fazem parte de um projeto geopolítico maior, e num mundo de centenas de milhões de miseráveis, agradecer por ter um teto e comida na mesa é se conformar em ter pouco, e ainda assim ter mais do que muitos. É inaceitável ser grato por uma situação injusta e exclusivista dessas. Só estaremos plenamente contemplados quando as palavras de Rosa Luxemburgo expressarem a realidade. “Por um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”.
Também não nos acalenta o coração, o fato da ideologia capitalista, impregnada por valores individualistas, egoístas e mesquinhos, continuar dominando o pensamento da maioria da sociedade. Pessoas são incentivadas a lutar para ter uma vida de luxo, mas não são ensinadas a lutar pelos que sentem fome. Sonhos dificilmente são livres, mas enriquecer, mesmo sabendo que dependerá de todos os outros continuarem na dura batalha do dia a dia, é a regra do imaginário popular. Também não é à toa, que em toda lista de livros mais vendidos, metade seja de auto-ajuda. O objetivo é ensinar cada um a superar seus próprios problemas. E para boa parte dos títulos, o “problema” está no fato das pessoas não serem financeiramente bem-sucedidas. Na ilusão que se vende, todo mundo poderia ser dono de um Porsche, uma mansão à beira da praia e ter muitos empregados. Para ser um milionário, bastaria se esforçar o suficiente.
Essa é a famosa e infeliz ideologia da meritocracia, que seria melhor definida se fosse chamada de ideologia do privilégio, ou da desigualdade, pois são exatamente suas consequências. Ela também forma um par (im)perfeito com a teologia da prosperidade, sua versão religiosa. Ambas se utilizam de toda a superestrutura do sistema para garantir, quase sempre de forma consensual, as suas reproduções, mantendo assim, o mundo cheio de mazelas e privilégios.
É como uma doença, sempre coletiva. O remédio dificilmente oferecido, mas facilmente aceito, é sempre individual, e apenas alivia os sintomas. Para os parasitas, que estão dominando o corpo, é um pacto vantajoso, mantem o status de enfermidade geral. E os donos do organismo, continuam escravos do remediar.
E nós? Queremos a cura, e sabemos da necessidade de que ela seja coletiva. Justamente por isso, estamos ao lado dos que lutam contra a maré; dos que transpiram indignação por qualquer injustiça, seja qual for, e onde for; do penoso lado dos inconformados; dos que possuem valores como solidariedade, cooperação, união e camaradagem; dos fracos e oprimidos; dos que sofrem, mas que também desejam um mundo livre, sem exploração alguma; dos desejosos de relações interpessoais e modo de vida não pautados por interesses econômicos; e dos que se guiam pela ideia de que “cada qual, segundo sua capacidade; a cada qual, segundo suas necessidades”, entendendo que com isso, ninguém morrerá de fome, de sede, de frio, de solidão e nem de tanto trabalhar.
A realidade é que este horizonte ainda está distante. Entretanto, abandonar nossos sonhos não é uma opção, e nunca será. Como bem disse Eduardo Galeano, a utopia esta lá para que não deixemos de caminhar. Aguardamos resistindo e, acima de tudo, lutando contra a ordem estabelecida. E quem sabe, pelo menos, poderemos testemunhar que, entre os livros mais vendidos, estarão aqueles que incentivam e contribuam para superação de nossos problemas coletivos. Talvez, nesse momento futuro, os donos do organismo não estarão mais se satisfazendo com remédios que aliviem os sintomas, o desejo se transformará na cura, e a necessidade de eliminar os parasitas será reconhecidamente indispensável. Assim, após tantos e tantos anos trazendo sofrimento ao nosso corpo, espoliando nossa natureza, nossa liberdade e nossa dignidade, estaremos iniciando o tratamento dessa doença tão nociva chamada capitalismo.
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