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BRASIL

Ensaios sobre as balas de prata, parte I: Lições de um passado recente

Jean Montezuma, de Salvador, BA

DILMAAlô.
LULA: Alô.
DILMALULA, deixa eu te falar uma coisa.
LULA: Fala querida. “Ahn”
DILMA: Seguinte, eu tô mandando o “BESSIAS” junto com o PAPEL pra gente ter ele, e só usa em caso
de necessidade, que é o TERMO DE POSSE, tá?!
LULA: “Uhum”. Tá bom, tá bom.
DILMA: Só isso, você espera aí que ele tá indo aí.
LULA: Tá bom, eu tô aqui, eu fico aguardando.
DILMATá?!
LULATá bom.
DILMA: Tchau
LULATchau, querida.
(Áudio da interceptação telefônica realizada pela operação Aletheia, divulgado na edição do dia 16/03/2016 do Jornal Nacional)

Na noite do dia 16 de março de 2016 o Brasil teria acesso, por meio de uma sensacionalista reportagem do Jornal Nacional, ao áudio do diálogo entre a presidente em exercício, Dilma Rousseff, e o ex-presidente Lula. Todos nós conhecemos bem essa história. O vazamento, concedido como furo de reportagem a Rede Globo pelo então juiz Sérgio Moro, foi uma das muitas demonstrações categóricas da judicialização da política contida no DNA da operação Lava-jato. Nunca antes na história desse país a presidência da república, sem que seu titular fosse alvo de investigação, havia sofrido um grampo telefônico. E pior, autorizado e posteriormente divulgado por um juiz federal de primeira instância, uma manobra jurídica totalmente extralegal e inconstitucional.

No dia seguinte dois novos movimentos no tabuleiro de xadrez foram feitos. Por um lado, a possível posse de Lula como Ministro foi barrada por decisão judicial. E por outro lado, uma comissão para avaliar a abertura do processo de impeachment fora criada no Congresso. Na esteira desses acontecimentos o mercado financeiro reagiu com euforia, e o IBOVESPA daquela quinta-feira 17 de março atingiria 6,6%, maior alta diária desde 2009. O governo estava em “Xeque”, e o vazamento do áudio da conversa entre Dilma e Lula teria sido a bala de prata que alvejou mortalmente seu coração. Estava feito, fim da história. Será?

A expressão popular “bala de prata” é adotada como uma metáfora para designar uma resolução simples e definitiva, para um problema complexo. É como a receita de uma iguaria gastronômica, só que feita ao sabor do senso comum, temperada na medida certa para agradar a mais ampla quantidade possível de paladares. No caso do áudio vazado, os “ingredientes da iguaria” (o conteúdo da gravação) são tão simples e triviais, que analisados isoladamente se demonstram insuficientes para explicar o impacto da “receita”. Perceba, caro leitor ou leitora, que no áudio, transcrito na epígrafe desse artigo, não há qualquer evidência de ilicitude. Então por que o seu vazamento entrou para os anais do jornalismo político como a bala de prata que derrubou o governo? O Rubicão, que ao ser atravessado, representou um caminho sem volta até o impeachment de Dilma Rousseff.

Nós marxistas acreditamos que fenômenos complexos exigem explicações complexas, multicausais. Devemos, portanto, descontruir o culto às balas de prata, e buscar cientificamente compreender os processos estruturais que ao mesmo tempo dão conteúdo e balizam os limites dos fenômenos políticos. Fazendo isso, podemos entender e tirar lições dos papéis que cumpriram num determinado processo os sujeitos políticos (partidos, movimentos, instituições), bem como até mesmo do papel dos indivíduos na História.

Ao retomar a História do golpe de 2016 nos parece óbvio que a cobertura jornalística deve ter o seu lugar. Porém, se for a cobertura jornalística a única referência, aí assumimos o risco de formar uma opinião superficial do processo. E, no pior dos casos, podemos incorrer numa inversão da lógica de causa e efeito. O áudio vazado, visto isoladamente como bala de prata, adquiri um valor em si mesmo. Quando na verdade, o que lhe atribuiu todo o seu valor de uso, foi justamente o processo estrutural de inversão da correlação social de forças entre as classes. Um processo que liberou forças colossais, sacudiu as placas tectônicas do regime político brasileiro, e teve início bem antes daquela fatídica edição do Jornal Nacional.

A Tempestade perfeita

Apenas 3 dias antes da divulgação do grampo telefônico entre Dilma e Lula houve um acontecimento muito mais devastador do que qualquer bala de prata. No domingo, 13 de março, atos convocados pela direita ocorreram em 239 cidades, das 5 regiões do país, e levaram segundo dados das polícias militares cerca de 3,6 milhões de pessoas as ruas. As bandeiras desses atos? Nós conhecemos: Contra a corrupção, contra o PT, pelo impeachment da presidente Dilma. Ainda que de forma marginal, bandeiras como fechamento do congresso, criminalização dos sindicatos e partidos de esquerda, além da volta da Ditadura Militar, se expressavam no meio do mar de gente de verde-amarelo sem provocar nenhum constrangimento.

Tomadas em seu conjunto, as manifestações do 13 de março de 2016 foram as maiores em todo período pós redemocratização. Superaram até mesmo o 20 de junho de 2013, data na qual 2 milhões de pessoas foram as ruas no auge das jornadas de junho.  Tamanha demonstração de força não veio como um raio numa tarde de céu azul. Um ano antes, no domingo 15 de março de 2015, menos de 100 dias após a posse de Dilma para o segundo mandato, a direita brasileira arrastou para as ruas  – embaladas pelo espetáculo midiático devastador da Lava-jato –  cerca de 2 milhões de pessoas, em 160 cidades. Na avenida paulista, um ano antes do vazamento do áudio Dilma/Lula, um ato com 1 milhão de pessoas já possuía, dentre suas principais reivindicações, o impeachment de Dilma.

Todo ano de 2015 foi marcado por um tortuoso processo de degradação política do governo. Por meio do Congresso, uma estratégia de sabotagem foi elevando-se ao ponto de paralisar as iniciativas de um isolado e acuado poder executivo. Por meio do judiciário, a judicialização da política através da operação Lava-jato. Do ponto de vista social, os efeitos da retração econômica e do pacote neoliberal de Dilma/Levi só degradavam ainda mais as condições de vida e o ânimo da classe trabalhadora, mas também dos setores médios, base social que protagonizaria os atos verde-amarelos. Para completar, com auxílio da grande mídia empresarial, vimos uma poderosa propaganda ideológica diária atingindo dezenas de milhões de pessoas com um discurso que se apropriava de forma instrumental da bandeira anticorrupção. Uma ideia poderosa resumia os problemas do Brasil em uma só causa, a corrupção. E essa, por sua vez, tinha um nome: Partido dos Trabalhadores.

No livro “O Lulismo em crise” o cientista político André Singer aponta que 3 anos antes, já no final de 2012, fracassou, ao ser abandonado no meio do caminho pela burguesia, aquilo que ele descreveu como projeto de nova matriz econômica arquitetado por Dilma e Mantega. Segundo Singer:

“A presidente apostou em uma coalizão entre industriais e trabalhadores para sustentar uma virada desenvolvimentista. No meio do caminho, a coalizão se desfez, pois os industriais mudaram de posição, deixando afundar a arquitetura que deveria levar o país para fora da arrebentação gerada em 2011 pela crise mundial. No lugar da coligação entre capital e trabalho surgiu uma renovada frente única burguesa em torno da plataforma neoliberal, em particular o corte de gastos públicos e as reformas trabalhistas e previdenciária”

Os dilemas impostos pela resiliência da crise econômica internacional colocaram em questão para a burguesia, em especial a sua fração organicamente vinculada ao capital financeiro, a validade do pacto conciliatório que havia atravessado os governos Lula 1 e 2, e a própria eleição de Dilma em 2010. Se começava a se instalar um mal-estar no andar de cima, o que dizer do andar de baixo? Com o ano de 2013 viriam as poderosas jornadas de junho, e com elas um retumbante recado que se espalhou de norte a sul do país, por meio do qual se começou a perceber que também desde o ponto de vista de uma nova geração da juventude trabalhadora, algo de novo estava em transição.

Embora não seja o objeto particular deste ensaio, junho de 2013, pela sua expressividade, merece algumas linhas a mais. A começar para se fazer justiça e rejeitar narrativas construídas para identificar ali o “ovo da serpente”. Essa, na minha opinião, é uma meia verdade. E, como toda meia verdade, também é metade mentira. Junho de 2013 não pode, de maneira alguma, ser igualado aos atos de 2015/2016. Tal enquadramento não conseguiria explicar o perfil social daqueles sujeitos que foram as ruas e nos primeiros dias daquele mês e conquistaram a redução ou congelamento do aumento das tarifas de ônibus e metrôs em mais de 100 cidades brasileiras. Tão pouco os cartazes que exigiam educação, saúde e moradia “padrão FIFA”. Aliás, é válido dizer ainda que de passagem, que o respeitado jornalista Juca Kfouri revelou em sua biografia (“Confesso que perdi”) que a FIFA, assustada com a dimensão do processo, chegou realmente a considerar o cancelamento da Copa das Confederações.

Mas e onde está a tal da “meia verdade”? Bom, no já citado livro “O Lulismo em Crise”, André Singer oferece uma reflexão, a meu ver, corretamente dialética sobre o complexo fenômeno de junho de 2013. Singer defende, com base nas pesquisas disponíveis, a “plausibilidade de ter havido dois junhos de classe nas mesmas ruas”. Dois junhos, com bandeiras, motivações e, principalmente, origens de classe e raça diferentes. Quem esteve lá, nas ruas, e se recorda que em determinado momento começaram a surgir elementos estranhos, em geral de verde e amarelo, agredindo e expulsando gente de vermelho (com certa condescendência de parte dos manifestantes) deve dar um mínimo de crédito a análise de Singer. Com o tempo foram surgindo, nas palavras do referido cientista político:

“No lugar do autonomista MPL, surgiu o liberal MBL. No lugar dos estudantes universitários e secundaristas, os profissionais do Vem Pra Rua. No lugar de Black Blocs anarquistas, vestidos de preto, os Anonymous com máscaras de Guy Fawkes e uma multidão trajando verde e amarelo”

Se faço todo esse longo recuo histórico, é para demonstrar que os acontecimentos que culminaram no golpe de 2016 constituem uma rede muito mais complexa do que uma simples bala de prata, assumida de forma alienada do seu contexto. As nuvens que começaram a se acumular no céu ainda em 2012, foram ficando cada vez mais carregadas e nem mesmo a reeleição em 2014 aliviou o mau tempo. O ano de 2015 marcaria qualitativamente a mudança de estação na relação particular entre a burguesia e o PT, mas também na relação geral entre as classes. A primavera do pacto conciliatório logo daria lugar ao inverno, alimentado por uma crise política, econômica e social.

A direita ganhou as ruas em 2015 e por meio delas consolidou politicamente a conformação de uma maioria social de oposição ao governo Dilma. As condições sociais e políticas para ruptura da burguesia com o PT, expressa de forma categórica na interrupção do mandato de Dilma, foram sendo maturadas ao longo de todo ano anterior ao fatídico vazamento do “aúdio do Bessias”. Portanto, esse furo jornalístico, exibido a todo país pelo Jornal Nacional, foi nada mais, nada menos, que um elo na maratona de acontecimentos arrolados ao longo de todo um processo de desidratação de base social, isolamento político, e desmoralização de um partido, suas lideranças e, finalmente, da principal instituição do governo, a própria presidência da República.

Para retomar o recurso da metáfora, ao invés de uma bala de prata, seria mais correta a imagem de um intenso ataque de artilharia inutilizando pouco a pouco as defesas do governo. A munição dessa artilharia pesada foi sendo abastecida pelas mudanças ao nível da correlação social de forças que forneceram, por um lado, cada vez mais ímpeto ao ataque da artilharia burguesa; e por outro lado, cada vez menos condição de defesa ao governo petista. Foi o estabelecimento de um quadro reacionário que gerou as condições políticas para derrubada do governo. Somente dentro dessas condições que manobras como o vazamento do fatídico áudio adquirem valor de uso como balas de prata.

Cenas do próximo capítulo

Se uma hipotética conversa entre os anos de 2016 e 2020 pudesse ocorrer, sentado à mesa o ano de 2020 escutaria do seu antecessor algumas histórias, que se compreendidas, poderiam ser lições muito úteis para os impasses políticos de agora. Será justamente esse o objetivo da parte 2 deste ensaio. O objeto será a conjuntura atual, sua correlação política e social de forças, o governo Bolsonaro, suas crises, e o fascínio que seguimos alimentando pela esperada bala de prata que, atingindo o coração do fascismo, resolverá num ato simples e definitivo, os impasses do tempo presente.