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BRASIL

O pandemônio de mochilas, escapamentos ruidosos, ruas e avenidas não é o limite do empreendendorismo

Cesar Doria*, de Niterói, RJ
Fotos Públicas

Entregador na Av. Paulista

“O que tá contecendo mano, num vai trampar hoje? Pô mano, tô na pior. Minha máquina quebrou e semana passada lambi o asfalto, e os caras disseram que vão me bloquear. Tô sem nada em casa”.

Isto não é uma ficção. É a realidade dos empreendedores de motos e bicicletas, voando nos asfaltos das grandes cidades. Parceiros da nova onda no mundo do trabalho. A famosa economia de bico, de ganhar por conta própria avança sem qualquer limite, ocasionando a precarização do trabalho de forma destruidora.

Desemprego em alta, a informalidade com mais de 40 milhões, a uberização em crescente modo concreto, torna esta forma de exploração da mão de obra, neste mundo infinito virtual, “uma forma de ganho para a sobrevivência”.

O movimento que agora começa a surgir, principalmente em São Paulo, com várias parcelas dos entregadores de aplicativos, sustentando um momento de paralisação em 1º de julho, tem reivindicações importantes de proteção ao emprego, segurança, salários, transparência, embora dissociada de uma luta política mais ampla.

Nestas plataformas de entrega, não há qualquer proteção a insalubridade, periculosidade, com as jornadas extensas que com o cansaço facilitam acidentes graves. Contrariam totalmente os princípios mínimos de preservação da saúde dos entregadores, em especial neste momento de pandemia, onde a utilização deste modo de precarização atinge um enorme número de “ empreendedores”.

Este enorme contingente do exército de reserva de desempregados, que pleiteiam um lugar nestas plataformas, como Rappi, Ifood, Uber Eats e outros menores, disponível neste momento de pandemia e pandemônio político, quebra qualquer unidade de luta.

Neste momento, o apoio a estas manifestações, que tem não somente um caráter reivindicatório trabalhista, inclusive, com grupos que se denominam “entregadores antifacistas”, mas um entendimento maior da precarização do trabalho que avança a passos largos.

O isolamento social de uma enorme gama de trabalhadores em regime de home office, propiciou a estes heróis da resistência, a chance de se incorporarem nestas plataformas, de uma forma ainda mais precarizada. As empresas aproveitam-se do grande número de entregadores que se dispõem a serem aviltados em sua mão de obra, principalmente os que trabalham em bicicletas, para serem não transparentes nos valores, a aumentarem a jornada, propagam o mito da concorrência entre eles, com o jargão conhecido de “quem trabalha mais, ganha mais”.

Está em curso no país, neste governo autocrático e policial, uma sanha destruidora dos direitos trabalhistas, da proteção ao emprego, com a conivência do Congresso Nacional, do TST e do Supremo, sem que haja qualquer escrúpulo nas propostas e MPs.

O mundo do trabalho, sabemos, não será o mesmo. O avanço desmedido do neoliberalismo e do neofascismo, a partir deste momento de pandemia, irão deixar marcas profundas.

O que se apresenta é a volta ao século 19 e ao começo do 20, na tentativa da destruição da solidariedade social, estimulando a barbárie. O processo de coletivização não mais interessa ao Capital, rompendo em um pequeno lapso de tempo com a visão humanista da exploração do trabalho, fruto do pós-guerra. Assim, os princípios do trabalho igual, salário igual e da solidariedade trabalhista foram rompidos.

As recentes Medidas Provisórias, a Lei de Terceirização, a Reforma Trabalhista de 2017, expõem abertamente estas feridas. Sistematicamente, pretende-se criminalizar as lutas por maior dignidade no trabalho, as lutas sociais, o movimento sindical, violando todos os dispositivos constitucionais de preservação dos direitos humanos.

“Não está satisfeito, vá para Cuba.” Alguns líderes do movimento se deparam com estas palavras ditas por outros companheiros.

Jorge Luiz Souto Maior, exemplifica bem, esta questão de imensa relevância, a forma de pensar disseminada pelos algoritmos – “Quando João, que não é raro é também um trabalhador precário, não se vê em José e este não reconhece João, é sinal de que a tecnologia está sendo instrumentalizada para consumir não somente os braços, mas também mentes.”

Não resta dúvida o quanto é importante, neste momento de crise, de exploração, o movimento paredista anunciado pelos trabalhadores em aplicativos em São Paulo e em outras capitais e cidades. Que se alastre para outros setores precarizados. É importante que tomemos como exemplo a luta destes trabalhadores, em grande maioria jovens, que não têm muita esperança de ter direitos e salários condignos.

ass:- Cezar Doria é Advogado e presidente da Associação Fluminense de Advogados Trabalhistas (AFAT)