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OPRESSÕES

Um pequeno fragmento da história do movimento LGBTI+I+ e a ditadura militar

Douglas Santos Alves*

O movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBTI+) brasileiro teve  diferentes nomenclaturas e atravessou fases distintas em sua construção. Emergiu da condição de massa inorgânica e desagregada para a de sujeito político reconhecido e com intervenção na realidade. O momento dessa passagem expressa o salto da especificidade para a generalidade e do privado para o político, e o seu contexto foi a ditadura militar e a Guerra Fria.

O “perigo” da homossexualidade foi fortemente associado à ameaça comunista nos EUA (RUBIN, 1984). Cowan (2014) afirma que mesmo antes da segunda guerra mundial, no Brasil, ideólogos e dirigentes do movimento integralista já sustentavam posições que vinculavam a homossexualidade masculina e a liberação sexual com a revolução comunista e a dissolução social, e reivindicavam a virilidade masculina (p. 30-31). 

A partir do regime autoritário iniciado em 1964 este processo é aprofundado e a homossexualidade é diretamente vinculada à subversão política e aos inimigos nacionais:

Enquanto o regime militar se endurecia nos anos 1960, as polícias estatais continuavam a aderir a um esquema no qual sexo entre homens pertencia a um submundo obviamente estigmatizado e degenerado, povoado por “pederastas”, alcoólatras, prostitutas, deficientes mentais e vários desviantes e inconformados. No contexto da Guerra Fria e do anticomunismo esmagador, pertencer a esta comunidade de delinquentes parecia uma ameaça à segurança nacional. (COWAN, 2014, p. 32).

A preocupação com a subversão homossexual chegou à Escola Superior de Guerra – ESG – através de palestras e conferências com “especialistas” no assunto. Um dos focos de preocupação era o risco de degeneração de jovens e crianças representado pelo “homossexualismo” (sic.), que era entendido como parte da estratégia do Movimento Comunista Internacional – MCI. (COWAN, 2014, p.35).

Diversos diplomatas foram afastados do Itamaraty sob a acusação de “homossexualismo”, bem como tantos outros funcionários públicos de seus postos. Também o Serviço Nacional de Informação – SNI – passou a fazer forte vigilância sobre a conduta sexual de pessoas, dentro e fora do Estado. Na mídia, a censura agiu sobre a imprensa e o entretenimento de modo a coibir “inconformidades de gênero” e o incentivo à aceitação da homossexualidade.

Após a derrota das esquerdas, movimentos sociais e da luta armada, restou uma pequena brecha para a resistência cultural. A influência do tropicalismo e dos ventos de 1968 foram muito importantes. Grupos como Secos & Molhados e os Dzi Croquettes, muito antes de personagens “não-binárias”, encarnaram as expressões contestatórias no terreno da estética, marcadamente andróginas, desafiando os papéis tradicionais de gênero. A geração que se formava sob estas influências criticava a direita autoritária e conservadora e desconfiava da esquerda tradicional (estalinista). 

Esse foi o contexto de surgimento do movimento LGBTI+ brasileiro. O jornal Lampião da Esquina e o grupo SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual – representam o momento de fundação dos LGBTI+s como grupo social destacado, auto-organizado e politizado. Saindo da esfera privada e rompendo com os estigmas, os subalternos iniciaram sua construção como sujeito político “para si”, marcada pelo enfrentamento à ditadura. O objetivo era mostrar-se para a sociedade, ou ainda, “sair do armário” e lutar por direitos. 

O Lampião apoiou ativamente outras “minorias”, como o movimento negro, feminista, indígena e ecológico. Segundo Cowan (2014), a ditadura temia “que estas minorias fossem componentes de um todo, culturalmente subversivo, que tendia a promover os interesses dos comunistas” (p. 42). Note-se que nos documentos do SNI citados por Cowan (2014), uma grande preocupação do regime nesse momento era a afirmação e politização da identidade homossexual.

O SOMOS apoiou diversas bandeiras e, sob uma crise interna entre o específico e a luta mais geral, sofreu uma divisão que resultou na ida com faixas e frases em apoio aos metalúrgicos do ABC, reunidos no estádio Vila Euclides para o primeiro de maio. Mesmo dividido, lutou contra as prisões arbitrárias de travestis no centro de São Paulo promovidas pelo delegado Richetti.

O grupo também lutou contra a censura imposta sobre o Lampião. O regime não tolerou a visibilidade do movimento, e com isso, a necessidade de colocar suas bandeiras específicas na rua determinou a necessidade de lutar por liberdade, pela unidade com outros grupos oprimidos e, assim, pelo fim da ditadura. 

A simples politização dos problemas privados de LGBTI+s esbarrava num regime político autoritário, nos valores altamente conservadores e na pesada hegemonia de uma concepção de sexualidade e de gênero discriminatória. Não havia espaço para concessões. De outro lado, o impulso promovido pelas lutas dos metalúrgicos, dos movimentos sociais que emergiam e da contracultura que finalmente chegava ao país fomentava ações de protesto e a possibilidade de unidade.

Deboches e gírias típicas dos guetos, manifestações artísticas, androginia, resistências e transgressões dos padrões aos poucos se combinaram com protestos, cartas de repúdio, ações junto a sindicatos e outros movimentos sociais, atos de trabalhadores, faixas por direitos e passeata de rua. Em tais circunstâncias não era possível que o específico ficasse reduzido a sua especificidade. A luta pela liberdade de publicar um jornal gay, de organizar um grupo de homossexuais, de participar do ato do 1º de maio, de protestar contra a repressão policial e de assumir-se, transformou-se na luta contra o regime político ditatorial. 

*Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul e Militante LGBTI+I+

Referências

RUBIN, Gayle. Pensando o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade. 1984 (original em inglês). Versão traduzida. Disponível aqui . Acessado em 25/2/2014.

COWAN, Benjamin. Homossexualidade, ideologia e Subversão no Regime Militar. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan. (orgs.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EdUFSCAR, p. 27-52, 2014.