Pular para o conteúdo
MUNDO

Sim, queremos dizer literalmente abolir a polícia

Mariame Kaba*, dos Estados Unidos. Tradução: Carolina Freitas

Delegacia incendiada em Minneapolis, Estados Unidos

Os democratas do Congresso desejam facilitar a identificação e o julgamento de má conduta policial; Joe Biden quer investir US$ 300 milhões nos departamentos de polícia. Mas os esforços para resolver a violência policial por meio de reformas liberais como essas têm falhado por quase um século.

Basta. Não podemos reformar a polícia. A única maneira de diminuir a violência policial é reduzir o contato entre a população e a polícia.

Não existe uma única era na história dos Estados Unidos em que a polícia não tenha sido  uma força violenta contra negros. O policiamento no Sul emergiu das patrulhas de escravos nas décadas de 1700 e 1800, que capturavam e devolviam escravos fugitivos. No Norte, os primeiros departamentos de polícia municipais em meados do século XIX ajudaram a reprimir greves trabalhistas e distúrbios contra os ricos. Em todos os lugares, eles oprimiram as populações marginalizadas para proteger o status quo.

Então, quando você vê um policial pressionando o joelho no pescoço de um negro até morrer, esse é o resultado lógico do policiamento nos Estados Unidos. Quando um policial brutaliza uma pessoa negra, ele está fazendo o que entende como seu trabalho.

Agora, duas semanas de protestos em todo o país levaram alguns a pedir o corte no financiamento da polícia, enquanto outros argumentam que isso nos tornaria menos seguros.

A primeira coisa a destacar é que os policiais não fazem o que você pensa que eles fazem. Eles passam a maior parte do tempo respondendo a reclamações sobre ruídos, emitindo multas de estacionamento e trânsito e lidando com outras questões não criminais. Fomos ensinados a pensar que eles “pegam os bandidos; eles perseguem os ladrões de banco; eles encontram os assassinos em série”, como disse Alex Vitale, coordenador do Projeto Policiamento e Justiça Social do Brooklyn College, em uma entrevista a Jacobin. Mas este é “um grande mito”, afirma ele. “A grande maioria dos policiais faz uma prisão por ano. Se eles fazem duas, são policiais do mês”.

Não podemos simplesmente mudar o rol de suas funções para que eles se foquem no pior dos piores criminosos. Não é isso que eles estão preparados para fazer.

Em segundo, um mundo “seguro” não é aquele em que a polícia mantém negros e outras pessoas marginalizadas sob controle, sob ameaças de prisão, encarceramento, violência e morte.

Venho defendendo a abolição da polícia há anos. Independentemente da sua opinião sobre o poder da polícia – se você quer se livrar da polícia ou simplesmente torná-la menos violenta – aqui está uma demanda imediata que todos podemos apoiar: redução do número de policiais pela metade e do orçamento pela metade. Menos policiais é igual a menos oportunidades para brutalizar e matar pessoas. A ideia está ganhando força em Minneapolis, Dallas, Los Angeles e outras cidades.

A história é instrutiva, não porque nos oferece um plano de como agir no presente, mas porque pode nos ajudar a fazer melhores perguntas para o futuro.

O Comitê Lexow empreendeu a primeira grande investigação sobre má conduta policial na cidade de Nova York em 1894. Na época, a queixa mais comum contra a polícia era sobre “espancamentos” – “a rotina de patrulheiros armados de espancar cidadãos com cassetetes ou bastões”, como a historiadora Marilynn Johnson escreveu.

A Comissão Wickersham, convocada para estudar o sistema de justiça criminal e examinar o problema da aplicação da Lei Seca, ofereceu uma acusação contundente em 1931, incluindo evidências de estratégias brutais de interrogatório. Ela colocou a culpa na falta de profissionalismo da polícia.

Após os levantes urbanos de 1967, a Comissão Kerner descobriu que “as ações policiais eram incidentes que provocaram o início da violência em 12 dos 24 distúrbios pesquisados”. Seu relatório listou um conjunto agora familiar de recomendações, como trabalhar para construir “apoio comunitário à aplicação da lei” e revisar as operações policiais “no gueto, para garantir a conduta adequada dos policiais”.

Essas comissões não pararam a violência; apenas serviam como uma espécie de função reativa cada vez que a violência policial levava aos protestos. Reformas semelhantes foram reivindicadas em resposta ao brutal espancamento policial de Rodney King em 1991 e à rebelião que se seguiu, e novamente após os assassinatos de Michael Brown e Eric Garner. O relatório final da Força-Tarefa do Presidente Obama sobre o policiamento do século XXI resultou em ajustes procedimentais, como treinamento de preconceito implícito, sessões de escuta da comunidade policial, pequenas alterações nas políticas e sistemas de uso da força para identificar oficiais potencialmente problemáticos desde o início.

Mas mesmo um membro da força-tarefa, Tracey Meares, observou em 2017, “o policiamento como o conhecemos deve ser abolido antes que possa ser transformado”.

A filosofia subjacente a essas reformas é que mais regras significarão menos violência. Mas policiais quebram regras o tempo todo. Veja o que aconteceu nas últimas semanas – policiais cortando pneus, empurrando idosos na frente de câmeras e prendendo e ferindo jornalistas e manifestantes. Esses policiais não estão mais preocupados com as repercussões do que Daniel Pantaleo, o ex-policial de Nova York que estrangulou até a morte Eric Garner; ele acenou para uma câmera filmando o incidente. Ele sabia que o sindicato da polícia o apoiaria e ele estava certo. Ele ficou empregado por mais cinco anos.

Minneapolis instituiu muitas dessas “melhores práticas”, mas não conseguiu remover Derek Chauvin da força, apesar de 17 queixas de má conduta ao longo de quase duas décadas, culminando no mundo todo vendo como ele se ajoelhava no pescoço de George Floyd por quase nove minutos.

Por que diabos nós pensamos que as mesmas reformas funcionariam agora? Precisamos mudar nossas demandas. A maneira mais segura de reduzir a violência policial é reduzir o poder da polícia, cortando orçamentos e o número de policiais.

Mas não me interpretem mal. Não estamos abandonando nossas comunidades à violência. Não queremos apenas fechar os departamentos de polícia. Queremos torná-los obsoletos.

Deveríamos redirecionar os bilhões que hoje vão para os departamentos de polícia para fornecer assistência médica, moradia, educação e bons empregos. Se o fizéssemos, haveria menos necessidade da polícia em primeiro lugar.

Podemos construir outras maneiras de responder aos danos em nossa sociedade. “Profissionais de assistência comunitária” treinados podem fazer verificações de saúde mental se alguém precisar de ajuda. As cidades poderiam usar modelos de justiça restaurativa em vez de jogar pessoas na prisão.

E o estupro? A abordagem atual não o resolveu. De fato, a maioria dos estupradores nunca vê o interior de um tribunal. Dois terços das pessoas que sofrem violência sexual nunca a denunciam a ninguém. Aquelas que reportam à polícia estão freqüentemente insatisfeitas com a resposta. Além disso, os próprios policiais cometem violência sexual de forma alarmante com frequência. Um estudo realizado em 2010 constatou que a má conduta sexual era a segunda forma mais frequentemente relatada de má conduta policial. Em 2015, o Buffalo News descobriu que um policial era pego por má conduta sexual a cada cinco dias.

Quando as pessoas, especialmente as brancas, consideram um mundo sem a polícia, imaginam uma sociedade tão violenta quanto a atual, apenas sem aplicação da lei – e estremecem. Como sociedade, fomos tão doutrinados com a ideia de resolver os problemas policiando e encarcerando pessoas que muitos não conseguem imaginar outra coisa senão prisões e a polícia como soluções para a violência e os danos.

Pessoas como eu, que querem abolir prisões e a polícia, no entanto, têm uma visão de uma sociedade diferente, construída sob cooperação em vez de individualismo, ajuda mútua em vez de autopreservação. Como seria o país se houvesse bilhões de dólares extras para gastar em moradia, alimentação e educação para todos? Essa mudança na sociedade não aconteceria imediatamente, mas os protestos mostram que muitas pessoas estão prontas para adotar uma visão diferente de segurança e justiça.

Quando as ruas se acalmam e as pessoas sugerem mais uma vez que contratemos mais policiais negros ou criemos mais conselhos civis de fiscalização, espero que lembremos de todas as vezes que esses esforços falharam.

*Texto originalmente publicado em 14 de junho de 2020, no New York Times. *Mariame Kaba (@prisonculture) é diretora da Projeto NIA, um grupo de base que trabalha para acabar com o encarceramento de jovens e o movimento anti-criminalização.