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OPRESSÕES

O antifascismo e antirracismo, entre uniões e rupturas

Gabriel Santos, de Maceió, AL
Pedro Muniz / EOL

Nas últimas semanas um debate sobre a relação entre a pauta antifascista e a luta antirracista surgiu nas redes sociais e foi levantado por diversas pessoas. Este debate não é apenas algo restrito à internet, ou ao submundo do twitter. Ele existe de fato e tem muito peso no mundo real. No último domingo e no próximo, os atos que acontecerão e aconteceram foram divididos em algumas cidades, com convocações distintas para as ações antirracistas e para ações antifascistas. Em outras, movimentos negros organizados não compareceram a atos antifascistas que incluíram a pauta racial, por não se sentirem representados.

Eu sou daqueles que acham que elas não são opostas. Ao longo da história estiveram juntas, como foi escrito recentemente em texto no Esquerda Online.

Porém, acredito que é preciso ampliar esse debate. Uma coisa é a pauta em sua luta histórica, e a dimensão estratégica que damos para elas, outra coisa é a expressão dessas pautas em movimentos reais no tempo presente. Falamos aqui de tempos distintos, portanto. Desta forma, me parece que na concretude, no campo da política cotidiana, por hoje infelizmente existe uma ruptura entre as lutas antifascistas e antirracistas. O fato delas não serem opostas não significa que estão juntas em movimentos (aqui usamos “movimentos” no duplo significado tanto de organizações políticas, quanto no sentido da movimentação dessas pautas ao longo dos anos).

A pauta racial foi colocada no escanteio por grande parte da esquerda brasileira ao longo das décadas. No momento que a pauta racial passou a ser tratada, ela passou a ser vista como um apêndice. É o tradicional “recorte de raça” que precisa ser feito. Podemos dizer, parafraseando Grada Kilomba, que a pauta racial seria como a “Outra”, sempre algo diferente, externo, um corpo estranho que precisava ser encaixado.

Desta forma, não basta ser antifascista para que automaticamente a luta antirracista esteja inserida no programa, métodos, ações práticas e leituras da realidade. Digo isso para recordar que a luta antirracista é mais do que dizer “sou contra o racismo”, ela pode se iniciar disto, mas não termina neste ponto. A já conhecida fala de Angela Davis é autoexplicativa “não basta não ser racista”.

O mito da democracia racial tem seus reflexos na militância anticapitalista, e contribui para a noção que o antifascismo no Brasil (aqui também falando do antifascismo como um movimento) automaticamente inclua a pauta racial. O que seria contraditório com as rupturas e separações que existem entre movimento negro e a esquerda brasileira.

A convocação de um ato antifascista que coloca também o chamado para a pauta racial é algo positivo, mas esse mero acréscimo de pauta não rompe a visão da pauta racial como “Outra”, nem resolve o afastamento entre antifascismo e antirracismo. Um exemplo prático é quando estes atos são convocados em uma região da cidade majoritariamente de classe média (ou seja uma área branca) e no qual existe um difícil acesso para moradora/es negras/os da periferia, seja pela falta de transporte público, ou outras questões. Ou seja, o ato que incorpora pauta antirracista acontece sem a presença dos atores que deveriam ser centrais nesta luta, pois não foi  pensado para a presença de negras e negros. E isto mostra outra questão, o ato que passa a ter a questão racial, acaba que foi pensado sem a participação de movimentos negros e periféricos. Não foi um ato construído com a pauta antirracista, pois não se teve a elaboração deste por movimentos e coletivos que atuam nesta pauta. 

Aqui podemos entrar em outro problema. Acho que todo militante já ouviu em algum espaço a frase “precisamos ir para a periferia”. Isto é quase um mantra para a esquerda brasileira. Ela parte de uma tarefa política concreta que precisa ser feita: a aproximação e enraizamento da esquerda (seja a anticapitalista ou do campo democrático popular) em camadas populares. Porém, na maioria dos casos esta tarefa política crucial é reduzida a uma frase de efeito “precisamos ir para a periferia”. Em qualquer questão e qualquer debate a solução é largada: “precisamos ir para a periferia”, sem que se pense as raiz concretudes desta tarefa e seus desdobramentos.

A periferia aparece em algumas falas como uma Nova Jerusalém, uma Terra Prometida, que “chegando lá” todos problemas seriam resolvidos. Passa a ser vista como “um não lugar”, no sentido que assume o espaço da utopia a ser alcançada. Num misto de romantismo com fetichização, a periferia se torna no discurso um lugar neutro, uma massa moldável, um campo aberto, esperando que seja modelado por aqueles que “vêm de fora”. A periferia perde seu aspecto político, como lugar que pensa, que pulsa, e que produz seus pensadores, que atuam no território. O problema do discurso que problematizamos aqui, é que ao depender da forma que é feito ele torna a periferia um objeto, e não sujeito. Ela se torna o “Outro”.

O antifascismo não passará a agregar a luta antirracista por meio de decretos, ou por proclamação. A relação de aproximação entre ambos os movimentos é uma construção, não ocorre da noite para o dia. Como falamos, existe uma separação política entre os movimentos tratados neste texto, e a solução para essa questão só vai acontecer justamente no campo da política. Tudo é disputa política. Algumas organizações e coletivos têm tentado e conseguido avançar para que exista uma reaproximação, mas não é algo fácil. 

Lugar de escuta, e lugar de fala é uma relação dialética que precisa ser exercido nesta aproximação. Se a tarefa política de se enraizar nas camadas populares, precisa ser feita, como fazê-la? (Essa é a pergunta do primeiro milhão) Obviamente não temos todas as respostas para essa questão, e não poderíamos ter. 

Um passo inicial para isso é pensar e refletir: existe alguma forma que aquele território debate seus problemas? Esta forma assume algum modelo organizativo? Quais grupos fazem algum tipo de trabalho social, político e cultural que podem ser parceiros? Qual a realidade dos que vivem neste território e quais são seus problemas?

É preciso enxergar a periferia não com o olhar vindo de fora. A periferia tem voz, fala, debate, se organiza, tem lideranças, tem pautas. Não é preciso que se fale por ela, mas que se escute o que se tem a dizer.

Para construir ações que tratem efetivamente da luta antirracista e antifascista, é preciso que se busque a aproximação, ações conjuntas e que se pense conjuntamente, entre os movimentos diferentes que irão realizar tais ações. O ônus da culpa dessa separação não pode cair no movimento negro organizado, ou sobre ativistas de luta raciais. Aqueles grupos que compõe a dita esquerda precisam tratar o antirracismo com centralidade. Este último inclui repensar forma e conteúdo. Ou seja, pensar e repensar modelos organizativos, temas que são tratados, por quem são tratados, como são tratados e etc.

O antifascismo no Brasil precisa ter como centro a luta racial, nada menos que isso. As/os sujeitos centrais precisam ser negras e negros. A pauta racial norteia tanto a luta por liberdades democráticas, quanto aquela por direitos sociais. É preciso amplo debate para mostrar que historicamente e estrategicamente as duas pautas que tratamos andam juntas. Mas é preciso muita ação e tato político para aproxima-las. Dizer que a história solucionou esta questão não a resolve. Romper a separação existente é uma tarefa de nosso tempo presente. O passado como uma lanterna ilumina o caminho, precisamos atravessa o denso pântano que estamos. Por fim, é preciso dizer que o antifascismo só merece esse nome no Brasil se ele for essencialmente antirracista.

Vidas negras importam a de fascistas não.