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OPRESSÕES

Sempre gritamos “Vidas Negras Importam”: Entrevista com a ativista Buba Aguiar

Mariana dos Reis Santos, do Rio de Janeiro, RJ

Há pelo menos 3 semanas em todo o Brasil, eclodiram manifestações de cunho anti fascista e anti rascista  em ofensiva aos posicionamentos autoritários do governo Bolsonaro  contra a democracia no período da pandemia. Mas sem dúvida alguma, a luta anti racista foi a pauta que despontou o levante da juventude novamente nas ruas como as jornadas de junho de 2013 representada pela frase “ Vidas negras importam”.

O protagonismo deste movimento se constituiu por movimentos negros universitários, autônomos ou partidários, coletivos de favelas e grupos de mães vítimas de violência do Estado. Essas iniciativas que clamavam pelo fim da discriminação racial e políticas de necropolítica do Estado foram inspiradas no episódio do assassinato do cidadão negro George Floyd (46 anos)  por um policial branco em Minneapolis. Transeuntes filmaram e postaram a cena nas redes sociais, gerando imensa revolta na sociedade civil.

Após a morte trágica e cruel do músico Floyd, uma escalada de protestos se alastrou pelos Estados Unidos contra a violência policial e o racismo. Manifestantes chegaram a se aglomerar em frente a Casa Branca no dia 31 de maio e o presidente Donald Trump foi levado a um abrigo subterrâneo da construção, apagando -se as luzes do prédio na tentativa evitar uma invasão.

Dezenas de cidades americanas foram palcos de protestos contra o racismo e violência policial. Os protestos em algumas ocasiões, assumiram táticas militantes mais radicalizadas  como saques, depredações e incêndios que foram acompanhadas de repressão policial.

O policial (Dereck Chauvin) que matou Floyd teve sua prisão decretada no dia 30 de maio, cinco dias depois da morte de Floyd e depois de os promotores estaduais terem relutado em apresentar a denuncia, incandescendo ainda mais o crescimento e intensidade das manifestações. Uma dos símbolos destas manifestações foi a frase: “ Por favor, não consigo respirar”que apareceu em pichações de muros e cartazes.

No Brasil, os números de execução da população negra assumem proporções alarmantes .Segundo dados da Anistia Internacional, a cada 30.000 jovens assassinados entre 15 a 29 anos, 77% são negros. A maioria destes homicídios  são praticados por arma de fogo e menos de 8% destes casos chegam a ser julgados.

Mesmo durante a quarentena, várias incursões da polícia em favelas continuaram a acontecer no estado do Rio de Janeiro. Uma destas operações ( 18 de maio) resultou na morte do jovem João Pedro de 14 anos que jogava sinuca com seu primo dentro de casa em São Gonçalo quando levou um tiro pelas costas.  A reação dos movimentos sociais ao ocorrido foi a organização da primeira manifestação no Rio de Janeiro (dia 31 de maio) em frente ao Palácio Guanabara ( sede do governo do Estado do Rio de Janeiro) chamado “ Vidas negras importam”. Jovens protestavam contra a violência policial nas favelas e posturas anti democráticas dos governos Jair Bolsonaro e Wilson Witzel.

Mesmo a manifestação tendo assumido um caráter pacífico, a polícia militar agiu de maneira truculenta de desproporcional, lançando bombas de gás lacrimogêneo e realizando disparos de bala de borracha que atingiram manifestantes. Um jovem negro teve um fuzil apontado em direção ao seu peito por um policial e foi detido, sendo posteriormente liberado após intervenção de advogados ativistas (Rodrigo Mondengo e Rosi Cruz)

QUAIS OS CAMINHOS DA LUTA ANTIRRACISTA NO PAÍS?

O que chama atenção em tempos atuais frente aos casos de execução de jovens negros é a naturalização das políticas de eliminação a estes indivíduos. Não há uma comoção maior da sociedade civil em meio a execução de uma criança de 14 anos dentro de sua casa durante o período de isolamento social. Durante certo tempo, a centralidade da pauta anti racista  teve como protagonistas: coletivos de favelas movimentos negros e grupos de mães vítimas de violência.

 Alguns setores de esquerda secundarizavam por certo tempo a pauta dos Direitos Humanos, classificando-a como identitária ou considerando a necessidade de focalizar a questão de classe neste debate. Este último elemento de crítica representa verdadeiro contra senso se observarmos o perfil da maioria das vítimas executadas pelo aparato do Estado- jovens negros periféricos. No entanto, percebe-se  na contemporaneidade que  parte dos movimentos sociais compreenderam a necessidade de se analisar os  processos históricos de desigualdade social e herança colonialista  ,  a partir da perspectiva  de classe e raça como elementos estruturantes da sociedade brasileira. 

Frantz Fanon foi um  dos autores  marxistas mais relevantes  para se entender o colonialismo, processo em que países de Primeiro Mundo dominavam militarmente países subdesenvolvidos. O mesmo também explica na sua obra as estratégias que o sistema capitalista utiliza na periferia.  Segundo Fanon, o mundo colonial divide-se em zonas contrárias inconciliáveis. A cidade do colono é residida pelos brancos, com grande abundâncias e cercada de bons serviços. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, esfomeada de pão, povoado com pessoas de más referenciais.

Tal limite geográfico demarcado por Fanon entre cidades dos colonos é o que se assemelha as cidades brasileiras com a dominação  da favela. Logo, esta separação entre colonizado e colonizadores sempre se alicerçou na estrutura econômica. A contenção das tensões cotidianas provocadas   por este sistema de opressão seria contida através do aparato da violência do Estado, chegando muitas vezes ao seu grau extremo. Este conceito foi reconfigurado nos estudos do filósofo camaronês Achille Mbembe, definindo – o como Necropolítica. Se constitui  como uma política de morte adaptada pelo Estado aos territórios de exceção e sua materialização se estabelece com a expressão da morte a população negra sendo legitimada pelo Estado.

Silvio Almeida, um dos maiores intelectuais do Brasil que tem debruçado em seus estudos sobre a questão racial, postou em sua conta do Twitter o seguinte pensamento: “ Para quem presta atenção nos últimos acontecimentos acredito que ficou claro que não faz o menor sentido separar o debate racial do debate econômico. Acho que a infrutífera pergunta: raça ou classe foi “ cancelada” pela força da história”. 

Em uma entrevista para o Nexo Jornal divulgada no dia 2 de junho de 2020, o mesmo intelectual aprofunda este pensamento: “A questão racial sempre esteve no centro. Mas o próprio racismo, que é também um processo de constituição da consciência das pessoas, da maneira como elas veem o mundo e são afetadas por ele, [fez com que] a pauta racial fosse desprezada. A maioria das pessoas que tomam decisões desprezaram a pauta racial. O jornalismo desprezou a pauta racial. Os juristas desprezaram a pauta racial. Os economistas desprezaram a pauta racial. Grande parte dos políticos desprezou a pauta racial. Os educadores desprezaram a pauta racial, em sua grande maioria.”

Balizando com o contexto atual  frente ao governo Bolsonaro vigente, analiso que  clamar por democracia , é antes de tudo reivindicar pela igualdade racial.  Caso a luta racista não seja prioridade num movimento político que se constitui como democrático, consequentemente naturalizaremos neste projeto de sociedade: o crescimento da população negra no cárcere, de jovens negros executados pela polícia e de espaços de poder e instituições dominados pela branquitude. Por isso a luta anti fascista deve ser antes de tudo anti racista também, uma vez que uma das faces do projeto político do fascismo foi o racismo.

Neste momento de pandemia em que o Brasil torna-se o epicentro do mundo em número de contágios pela COVID 19, a  população negra vem a ser a mais atingida em meio às suas condições de moradia, saneamento básico e dependência do SUS ( Sistema Único de Saúde), que encontra-se sucateado ou sem condições de atendimento a todos os pacientes. Surge neste cenário pantanoso, a ascenção de coletivos de favelas, rearticulando suas forças através de redes de apoio social a moradores que  distribuem  cestas básicas e organizam a luta anti racista através da unificação de suas reivindicações.

 Militantes pertencentes a estes coletivos através de seus ativismos no mundo real e nas redes tornaram-se referências  para decisões importantes em determinadas instituições de poder. Em decisão do Supremo Tribunal Federal de se conceder a liminar de suspensão das operações policiais nas favelas no Estado do Rio de Janeiro, o ministro Edson Fachin fez referência a três militantes de importante visibilidade na causa: Raul Santiago, Renê Silva e Buba Aguiar. Esta informação foi twittada na conta da jornalista da Globo News e ativista de Direitos Humanos Flavia Oliveira no dia 6 de junho.

Ccnversamos com a militante Buba Aguiar sobre o movimento “ Vidas negras importam”.

 

1-Qual a importância da luta anti racista para os movimentos de favelas?
É questão de vida, ancestralidade, ainda mais visto que a esmagadora maioria dos moradores das favelas são negros.

2-Como você analisa o fato do movimento “ Vidas negras importam” ter eclodido somente agora na sociedade?
Agora a sociedade quis enxergar essa pauta, pois há muito anos estamos nas ruas dizendo que nossas vidas (e mortes) importam.

3-Quais as semelhanças e diferenças que você percebe entre o movimento dos EUA e o Brasil?
A comparação é complicada, mas inevitável. O racismo é global. Mas o Brasil foi fundado, economica e socialmente, em cima da escravidão e isso é refletido ainda hoje. A atuação das polícias nas manifestações lá e cá são diferentes. No Brasil é utópico pensar em ver policiais ajoelharem diante de manifestantes antirracistas, por exemplo.

4-Como é para você protestar num momento de isolamento social, visto que somente determinada classe tem esse direito?
É isso, não temos direito às medidas de prevenção completa. Nenhuma medida foi pensada para contemplar o povo pobre, já começando pelo acesso à água e terminando no direito à saúde de qualidade. Diante do aumento expressivo das mortes em operações policiais ficou incabível continuarmos fazendo ações sociais somente nos nossos territórios, tivemos de tomar as ruas. Pra mim foi uma mistura de sentimentos, a maior parte ruins. Inaceitável que em meio à uma pandemia mundial a gente tenha que ir as ruas protestar por mortes em decorrência de ações policiais. Na primeira manifestação inclusive chorei… isso é incabível. Beira ao surreal.

5-A que se deve essa ascenção da juventude negra e coletivos de favela como protagonistas destas lutas neste momento?
Acho que não é o protagonismo em si, mas a capacidade de acompanhar os levantes populares que ocorrem e estar nessa movimentação. Juventude é vida e nós estamos lutando pelas nossas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/06/01/A-escalada-de-protestos-nos-EUA.-E-a-rea%C3%A7%C3%A3o-de-Trump

https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2020/06/01/%E2%80%98N%C3%A3o-d%C3%A1-para-falar-de-democracia-sem-falar-da-quest%C3%A3o-racial%E2%80%99

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-brasil-nao-parou-por-joao-pedro-mattos/

Almeida, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural ? / Silvio Luiz de Almeida . -. Belo Horizonte/MG): Letramento, 2018.

FANON. Os condenados da terra. Juiz de Fora: UFJF, 2010. 

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.