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TEORIA

126 anos de Mariátegui: uma certidão de nascimento para o marxismo latino-americano

Breno Nascimento*, de Niterói, RJ

Há 126 anos, em 14 de junho de 1894, nascia em Moquegua, no Peru, José Carlos Mariátegui, o Amauta, um dos fundadores da tradição marxista latino-americana.

Quando ainda era muito pequeno seu pai abandona a família, que é forçada a se deslocar para Huacho (1899). Aos 8 anos de idade seria internado por longo período  num hospital em Lima após acidente na escola que o fez desenvolver anquilose na perna esquerda. O agravamento da doença levaria à amputação de sua perna direita saudável em 1924, o colocando numa cadeira de rodas, e à sua precoce morte aos 36 anos incompletos em 1930.

Aos 15 anos (1909) seria empregado no jornal La Prensa em funções braçais de impressão e entrega, porém a bagagem de leituras em seu claustro após o acidente o qualificariam para ser um destacado jornalista, tendo se tornado redator de La Prensa (1914-1916) e El Tiempo (1916-1919). Em sua atividade jornalística o interesse pela política e temas sociais foi crescendo progressivamente tendo fundado a revista Nuestra Época (1918), que teve apenas duas edições, e o jornal La Razón (1919). Ambas publicações possuíam um viés crítico à política nacional, sendo o jornal especialmente crítico ao presidente Augusto Leguía, que havia fechado o congresso. Leguía acabaria fechando La Razón e exilando Mariátegui e alguns de seus colaboradores na Itália. Encerra-se o período de sua produção que ele mesmo chamaria de “pré-história do pensamento” por anteceder sua adesão ao marxismo.

Antes de chegar à Itália passa pela Alemanha onde presencia os momentos finais do levante spartaquista. Já em terras itálicas presencia o biênio vermelho (1919-1920), processo radicalizado de ocupação de fábricas no norte da Itália. Ambas experiências inspiradas na revolução bolchevique de 1917 foram fundamentais na adesão de Mariátegui ao socialismo. Mais tarde o revolucionário diria que na Itália desposou uma mulher e algumas ideias. Acompanharia ainda a fundação do Partido Comunista Italiano em 1921.

Retorna à sua terra Natal em 1923 e no ano seguinte adere à recém fundada Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). A organização se inspirava no Kuomintang da revolução chinesa de 1911 e pretendia ser um partido internacional de todos os países da América Latina em luta contra o imperialismo e na construção do socialismo democrático. Com o passar do tempo a APRA foi se tornando cada vez mais uma organização nacional peruana e subordinando a luta socialista à luta anti-imperialista. Mariátegui iria polemizar contra a linha nacionalista revolucionária de Víctor Raúl Haya de la Torre, fundador da APRA, dizendo que a luta socialista da classe trabalhadora não deveria ser secundarizada frente à questão nacional, na verdade se tratava do contrário, ou seja, ser anti-imperialista porque se é socialista.

O afastamento progressivo da APRA seria marcado pela fundação da revista Amauta (palavra da língua inca, o Quéchua, que significa “mestre” ou “sábio” e que acabaria se tornando apelido do próprio Mariátegui) em 1926, culminando na fundação do Partido Socialista Peruano em 1928, que logo se vinculou à III Internacional Comunista. Fundaria ainda a Confederação Geral dos trabalhadores do Peru (CGTP) unificando as lutas sindicais a partir de 1929.

Em sua obra Mariátegui demonstra ter absorvido com perfeição as exortações de Lênin em seu livro O Esquerdismo no sentido de que nem todos os caracteres da Revolução Russa seriam universais e que por isso os passos dos bolcheviques não deveriam ser repetidos mecanicamente em outros países. Neste sentido Mariátegui dirá:

“Não queremos, certamente, que o socialismo seja, na América, decalque nem cópia. Deve ser criação heroica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano. Aqui está uma missão digna de uma nova geração.”

Irá sustentar, então, em sua obra magna Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana uma hipótese original. Ao perceber que o proletariado urbano industrial existia quase que apenas na capital do país, Lima, e que ¾ da população era indígena e campesina irá propor que estes últimos sejam o motor da revolução. Indo ainda mais longe irá propor o aproveitamento das estruturas comunais indígenas como ponto de partida para a construção do socialismo. É interessante notar que Mariátegui chega à uma posição análoga à de Marx sobre a comuna agrária russa sem ter tido acesso ao texto marxiano. 

O revolucionário dará um tratamento original à questão social indígena ao pontuar que o problema do índio é antes de tudo o problema da terra, já que o modo de vida comunal está intrinsecamente ligado ao território e a exclusão social do indígena apenas será resolvida com a mudança do regime de terras e a abolição do latifúndio predador. Dessa maneira divergiu do tratamento moral à questão indígena de caráter religioso e caritativo, também divergiu da explicação étnica do problema que colocava a exclusão em termos de diferença racial e postulava como solução a miscigenação,  e por fim divergiu da visão meramente administrativa da questão que pretendia resolver o problema indígena através de legislação tutelar e protetiva. Mariátegui irá demonstrar a permanência de pressupostos coloniais nessas visões e que as legislações nada podem frente ao poder de fato da aristocracia latifundiária (os gamonales).

Ao longo de sua extensa obra defenderá ainda o protagonismo indígena na cultura sustentando, por exemplo, a necessidade da passagem da literatura sobre os índios à literatura feita pelos próprios índios. Polemizou ainda contra pensadores detratores do marxismo que desqualificavam a doutrina como antiética e postulou que o marxismo colocava de modo subjacente a “criação de uma moral de produtores pelo próprio processo da luta anticapitalista.”

Os postulados do Amauta seriam apresentados pelos delegados peruanos (já que ele mesmo não pode ir pela piora do estado de saúde) à Conferência Comunista Latino-americana da III Internacional realizada na Argentina em junho de 1929. Suas ideias seriam rejeitadas pela Internacional já stalinizada, o que gerou uma indisposição do revolucionário nos seus últimos meses de vida com a organização, sem que tenha rompimento publicamente, entretanto. Tinha planos de tornar a bem-sucedida revista Amauta uma publicação continental transferindo sua sede para Buenos Aires, no entanto morreu em 16 de abril de 1930 pouco antes de realizar uma viagem para tratamento médico que poderia ter salvo sua vida.

As ideias de Mariátegui seguem atuais para países da América Latina como Peru, Bolívia, Equador e Guatemala que possuem expressivas populações indígenas. Porém, seus postulados ajudam a compreender a realidade até de países com populações indígenas numericamente limitadas como o Brasil, onde o presidente investe pesado em favor do agronegócio e da mineração contra as reservas indígenas. Diz Bolsonaro que “o índio também é gente”, que ele (o índio) quer empreender, em outras palavras se tornar proprietário privado (condição de humanidade). O plano de Bolsonaro é acabar com a reservas e transformar os índios em proprietários de pequenas parcelas de terras, que posteriormente em função do empobrecimento inevitável serão forçados a vender aos latifundiários. Após a criminosa reforma da previdência a Amazônia é a última e mais importante fronteira a ser conquistada pelo capitalismo brasileiro. Vemos a atualidade da proposição do problema indígena enquanto problema da terra.

Viva a resistência dos povos originários à espoliação capitalista!

Que nos países onde são maioria os indígenas sejam os condutores do processo revolucionário socialista!

Reforma agrária radical ou ilusão de resolução da questão indígena.

 

 

*Texto publicado originalmente na página de facebook da Casa de Resistência Rosa Luxemburgo.