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Bolsonaro está vencendo: verdade e mentira no pico da pandemia

Alan Santos/PR 05/06/2020

Jair Bolsonaro acompanhado do Governador de Goiás, Ronaldo Caiado, visita hospital em Águas Lindas.

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

Dostoiévski, em suas “Memórias das casas dos mortos”, disse que o “homem é um ser que a tudo se habitua”. Talvez ele estivesse certo. Talvez ele, há muito morto, esteja verdadeiramente certo agora, quando um país que acumula muitos mortos decide, fiel à mentira, negar uma verdade mórbida. O jovem Marx se referiu certa feita ao “relâmpago do pensamento”, mas talvez nós, no Brasil de hoje, estejamos é diante do apagão da razão. As ideologias têm força material, já disseram lá dois alemães em desuso. Afinal, se a realidade é, sob determinadas circunstâncias, feita pelos sujeitos, e se esses sujeitos, em sua maioria, baseiam suas ações em mentiras, não seriam as mentiras, então, partes constitutivas da própria verdade social, fazendo desta, de certa forma, algo mentiroso, ainda que real?

Nessa dialética do realidade, que conjuga contraditoriamente verdade e mentira, Bolsonaro está vencendo. Bolsonaro nunca escondeu nada, ele sempre falou a verdade, por mais mentirosa que ela fosse. De tanto ser verdadeiramente falso, de tanto jogar limpo o seu jogo sujo, Bolsonaro fez da sua mentira a verdade dos parasitas, e fez da sua sujeira a cara de um país que nunca foi passado a limpo. Quando se aproxima do pico da pandemia, justo quando se aproxima do pico da pandemia, o Brasil, por pressão do governo e do capital, começa a “voltar ao normal”, como se estivesse cansado de uma quarentena que, na verdade, nunca fez de verdade, nunca tomou como um dever coletivo e moral.

O vírus não é e nem nunca foi uma “gripezinha”, mas isso pouco importa se, na prática, no frigir dos ovos do mercado, na hora da onça do capital beber a água e o suor do trabalho, nossa burguesia e nossa democracia, nossos senhores e nossas instituições, respectivamente, mesmo sabendo que o vírus é letal, agem como se ele fosse algo trivial, como se ele fosse mesmo uma gripe normal. Uma nota de repúdio aqui, uma defesa do “Estado Democrático de Direito” acolá, e nada. Mais nada. Afinal, “já deu, né? Já tá bom, né?”. “Também não é assim, né?”.

A “economia não pode parar”, ainda que isso signifique milhares e milhares de corpos a enterrar. Para que essa nova realidade possa prosperar, para que essa nova verdade venha a vingar, as mentiras vêm bem a calhar. Da subnotificação, o governo passou, impudentemente, à adulteração, e o fez dizendo a verdade, isto é, o fez dizendo que, a partir de agora, falaria a mentira. E o que acontece? Nada. “Já deu, né?”, “Já tá bom, né”?, “Também não é assim, né?”.

Os números vão ser maquiados, e tudo bem. Quem não sorri nas redes sociais mesmo estando triste na hora da foto? A mentira vai ser contada diariamente, mas os mentirosos estão tão fortes que podem até assumir que falarão a mentira, pois sabem que, no andar de cima, faltar com a verdade sempre foi a regra, ainda que uma regra antes não revelada. Mas como bons crentes, eles agora são instrumentos da revelação, e cabem a eles, neofascistas, revelar que a mentira burguesa sempre foi, na verdade, uma mentira com aparência verdadeira. Bolsonaro mente, diz que mente, assume que mente, e nada acontece. Nada. Absolutamente nada. Ao mentir sobre a pandemia, Bolsonaro revela, assim, a verdade da nossa burguesia, e nada de verdadeiramente prático é feito pelos insignes baluartes da nossa blindada e combalida democracia. Nada. Eles dizem que Bolsonaro está mentindo, que vai mentir, e que é isso mesmo. É ruim, mas é assim. Bolsonaro é tosco, é vulgar, é mau, mas talvez agora não seja mesmo necessário algo excepcional? – se perguntam alguns na Casa Grade num dia normal.

Do ponto de vista dos de baixo, de onde pode vir, e há de vir, a verdadeira negação ao negacionismo do governo, o que se vê agora, justo agora, no pico da pandemia, é a aceitação pragmática, a afirmação empírica do novo normal, afinal, “se mesmo diante de um vírus letal somos coagidos a trabalhar como se isso fosse usual, por que não tomar tal fato como realmente natural ao invés de assumirmos a verdadeira maldade do mal”? “Já podemos rezar na igreja e ir no bar, né?”, Já deu, né?”, “Já tá bom, né?”, “Também não é assim, né?”. A situação é, assim, tão verdadeiramente desesperadora que até a mais radical resposta às mentiras de Bolsonaro, os legítimos atos de rua, acabam por, na verdade, reafirmar a sua verdade, a mentirosa verdade do governo, na medida em que, objetivamente, implicam a suspensão, ainda que momentânea, do perigo da pandemia. Bolsonaro comprova, assim, ser ainda o senhor da situação, dado que até a sua mais eficaz oposição se vê obrigada, para combatê-lo, a se expor à real contaminação.