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BRASIL

Raízes Pretas: Justiça Branca

Joana das Flores Duarte*
Reprodução / Jean Baptiste Debret

Une Dame d´une Fortune Ordinaire dans son Intérieur au Milieu de ses Habitudes Journalières (1823)

Ao revisitarmos as raízes pretas de nossa história escravocrata, dependente e subordinada ao mercado estrangeiro, apreendemos que para construir essa relação foi preciso, antes de tudo, criar, ainda na condição de país colônia, uma relação jurídica que pudesse expressar os mesmos elementos externos, ou seja, que fossem viabilizados aqui os fundamentos jurídicos análogo ao sistema de dominação imposto. Somente assim os senhores de terras que então subordinados estavam aos interesses externos, poderiam criar internamente suas formas de opressão para dar sustentação a esse rito de dependência. A busca por leis violentas deu-se em virtude do controle e da repressão sobre os povos oprimidos, por isso, as formas de castigo e vigilância foram tão cruéis, pois era preciso instaurar o medo, desencorajar as resistências e criar a ideologia do povo/ raça inferior. 

Em 25 de março de 1824, foi outorgada por D. Pedro I a primeira Constituição brasileira, que conferiu as bases da organização político-institucional do país independente. Todavia a ideia de país independente foi concebida a partir de modelos e matizes estrangeiras, levando em conta a experiência constitucional da Espanha (1812) e da França (1814), bem como o pensamento político de Benjamin Constant. O modelo expresso na Constituição de 1824 resultou da tentativa de conciliar os princípios do liberalismo à manutenção da estrutura socioeconômica e da organização política do Estado monárquico e escravocrata que emergira da Independência. A Constituição outorgada não apenas modelou a formação do Estado, mas atribuiu a ele o papel central na garantia da estabilidade institucional necessária à consolidação do regime monárquico. Segundo informações do Arquivo Nacional (2016), a Carta Magna definiu como forma de governo a monarquia hereditária, constitucional e representativa que, em acordo com os princípios liberais, tinha no imperador e na Assembleia Geral os representantes da “nação brasileira” (BRASIL, Arquivo Nacional, 2016).

Nota-se a partir daí que a Independência, do ponto de vista de mudança, liberdade e soberania do povo, em nada ocorreu. Tanto os/as escravos/as quanto os/as trabalhadores/as livres foram apartados desse movimento. Suas vidas seguiram o mesmo ordenamento de subserviência anterior. O que de fato mudou foi a formação de um Estado brasileiro e a concessão de plenos poderes à elite agrária brasileira, que dentro da estrutura jurídica passou a ter acesso à estrutura organizativa do Estado. Com base nas informações do Arquivo Nacional, essa estrutura jurídica estabeleceu um governo unitário, de modo que os poderes eram centralizados. O território brasileiro foi dividido em províncias, cujos presidentes subordinavam-se ao chefe do Poder Executivo, o imperador. Nas cidades e vilas, o governo econômico e administrativo competia às câmaras, compostas por vereadores eleitos, cujas atribuições deveriam ser definidas por lei complementar (BRASIL. Constituição (1824), art. 167 e 169; BRASIL, Arquivo Nacional, 2016). 

A Constituição de 1824 conseguiu a façanha de proclamar um país livre e ao mesmo tempo escravocrata.

A Constituição de 1824 conseguiu a façanha de proclamar um país livre e ao mesmo tempo escravocrata. No estudo de Campello (2018, p. 53-54), o autor descreve a implícita referência à escravidão na Carta Magna. Isso porque a Independência não mudou em nada as estruturas produtivas e sociais do período anterior, mas “conferiu poderes políticos à aristocracia rural brasileira”. Ainda nas elaborações do autor, na Assembleia Constituinte de 1823, José Bonifácio teve uma apresentação contrária a escravatura, alegando que sem a abolição total do tráfico da escravatura o Brasil nunca afirmaria a sua independência nacional. 

Na Constituição Imperial de 1824, o tema escravidão não aparece explicitamente, pois, como já exposto, carregava matizes da experiência francesa e espanhola, que estavam sob sorte influência liberal e previam a primazia das liberdades individuais. No caso brasileiro, a contradição foi justamente a inspiração liberal e, ao mesmo tempo, a lógica de suspensão das liberdades individuais de alguns. Ainda que a Constituição não tivesse declarado a escravidão em território nacional, em termos jurídicos ela aparece como forma de assegurar aos senhores a sua manutenção. E não somente isso, mas a possibilidade de tornar-se esse sujeito escravo/a em condição permanente e geracional de servidão. Ao/À escravo/a não era concedido o direito à cidadania brasileira, justamente por não integrar a comunidade política. 

O mesmo escravo que não tinha direito à cidadania era chamando pelo Estado Imperial para pegar em armas e lutar contra os inimigos externos e internos. Assim, mais uma contradição apresentava-se, pois como poderia um escravo lutar em guerras, como foi no caso do Paraguai, e ao mesmo tempo não ser um cidadão brasileiro? Campello (2018, p. 59-60) mostra-nos que, como esse era um tema de interesse do Estado, uma outra interpretação foi dada à lei ao estabelecer que escravos que lutassem pela Nação brasileira, o direito à liberdade e a alforria seriam concedidos. Sem dúvida, essa foi uma estratégia de levar corpos pretos para conflitos armados. Ainda que não fossem soldados preparados, eram usados como espécie de escudo protetor da infantaria. Por isso, a alforria e a liberdade foram concedidas após o combate, e não antes mesmo desses homens ingressarem na guerra. A cidadania só seria “dada” caso esse homem preto e escravo fizesse por merecer. Tal merecimento não bastava com a ida à guerra, que nesse caso também não era sua vontade, mas do seu senhor. Ocorre que o Estado Imperial sabia que o número de homens pretos vivos seria infinitamente menor do que o número enviado para o combate. Para Clovis Moura (1987), essa prática serviu puramente para safar os senhores do combate, e colocar corpos pretos no front. Não é por acaso, que no tempo presente, policiais pretos/as morrem mais que brancos em operações (Anuário de Segurança Pública, 2019). 

Nos últimos dias, as mortes de pessoas pretas em território nacional e internacional colocaram em xeque o discurso histórico e jurídico sobre “classes perigosas”. Trata-se de um momento também de inflexão, de fazer e contar a história no contrapelo, como bem escreveu Walter Benjamin. Em sua tese sobre o conceito de história, o autor explica que a narrativa dos/as vencedores/as se faz pela via da opressão, porque a história dos vencedores/as, é a história da dominação e da exploração de uma classe sobre a outra. 

No dia 19 de maio o corpo de João Pedro, 14 anos foi encontrado no Instituto Médico Legal. O corpo foi deixado pela polícia, essa que também disparou os tiros que ceifou a vida de João Pedro. Uma operação policial em território pobre, que teve autorização do Governo do Estado do Rio de Janeiro para metralhar casas, à luz do dia, sob o pretexto de combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado. Quem diante dessa barbárie ainda crê que esse tipo de operação tem alguma legitimidade, nega diante de seus olhos a face racista do Estado, e com ela a sua demarcação socioespacial. Esse tipo de operação tem lugar para acontecer, tem corpos marcados para morrer e justiça seletiva para legitimar. 

No dia 25 de maio, o mundo assistiu George Floyd, em Nova York (EUA), ser abatido. Uso aqui abatido, porque Floyd teve o mesmo tratamento de seus antepassados/as escravizados/as. Naquelas cenas de horror, não era uma relação de segurança policial, mas sim de capitão do mato dominando o cativo fugitivo. Na história da escravidão, o capitão do mato desempenhou o papel de algoz com submissão, o que Paulo Freire denominou como oprimido sendo opressor, e Simone de Beauvoir complementou, ao dizer que só existe opressão porque há cúmplices entre os próprios oprimidos. Se o Senhor de escravos via corpos pretos como mercadorias, o capitão do mato, sem deter esse poder, o via como bicho. Excluído das relações de poder de compra, restava-lhe o uso do poder da violência e o contrabando. Quando um/a escravo/a infringia a lei do Senhor, cabia ao capitão do mato, dar o corretivo. Em Roots: The Saga of an American Family, Alex Haley mostra a história da escravidão nos Estados Unidos, mas por meio de sua pesquisa (que levou mais de uma década), é possível entender que o processo escravocrata nas Américas foi antes de tudo uma tentativa de destruição da humanidade do povo preto.

Essa “liberdade” no exercício da crueldade, da tortura, da humilhação, da submissão teve início no ordenamento jurídico senhorial, a “justiça” com as próprias mãos, primada no linchamento e dominação do/a escravo/a-, de acoite e de imposição de uma suposta soberania racial. Esses elementos foram estruturantes para que a escravidão pudesse existir, fazendo do seu fim uma farsa, porque esses componentes antes privados estruturam o ordenamento público e jurídico do Estado de Direito. Ora, nada mais atual que o texto sobre Violência de Walter Benjamin, quando o autor nos diz que a lei antes de existir se faz pela incorporação da culpa e do exercício da coerção. Assim, nos países escravocratas a transição para o Estado de Direito incorporou em seus fundamentos filosóficos a estrutura senhorial, atribuindo um caráter seletivo de raça, classe e gênero no acesso aos direitos sociais, políticos, culturais, econômicos entre outros. Por isso, temos o genocídio do povo preto, as prisões com mais corpos pretos, a informalidade massivamente preta e a violência obstétrica em mulheres pretas – são elas também as que mais perdem seus filhos em virtude do racismo e da violência estrutural.  Falar em questão racial é fazer desses indicadores elementos concretos de denúncia do privilégio branco. Privilégio esse escancarado e sentido na pele preta em mais de 500 anos de história do Brasil, e para muitos brancos/as só faz existir diante das atrocidades midiatizadas. Regalia branca que não passa despercebida, ela forja revoltas, levantes e resistências do povo preto, no passado com os Malês, Zumbi dos Palmares, Dandara dos Palmares, Anastácia, Luiza Mahín, Tereza de Benguela, Maria Aranha, Tia Simoa, Eva Maria de Bonsucesso, Esperança Garcia, Mariana Crioula, Rainha Tereza do Quariterê, Adelina Charuteira, Acotirene, no presente com Vidas Negras Importam, Conceição Evaristo, Olívia Santana, Maria Rosalina dos Santos e Célia Pinto, Maria Trindade da Silva Costa, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, Marielle Franco e Monica Cunha, são alguns dos exemplos. 

O caso do menino Miguel, de apenas cinco anos, é o ápice trágico do privilégio branco: ele autoriza matar.

O caso do menino Miguel, de apenas cinco anos, é o ápice trágico do privilégio branco: ele autoriza matar. A vantagem racial se dá pela “incorporação de uma consciência branca”, em que essa se considera “isenta” de responsabilização e humanidade diante do Outro, mas não de qualquer Outro, é preciso que seja preto/a. Assim, cria-se a ideia de “classe perigosa”, de “classe inferior” e de “classe passível de escravização”. Essa última em nada foi superada, apenas reatualizada nos moldes jurídicos do que julgamos moderno, não fosse isso, uma criança, um adolescente e um adulto, em situações e espacialidades distintas, não seriam abatidos de modo tão particular.

Mas, se mortos sabemos quem são eles, e o corte racial que demarca essa violência, os algozes, não são os mesmos. Sari Corte Real, não é a polícia, não é a força institucional do Estado atuando, é ela própria, o fazer jurídico penal, porque se faz em âmbito privado, nos moldes da Casa Grande e Senzala, essa que definiu o modelo de justiça brasileiro. Sistema esse que é seletivo, racista, classista e colonizador, ao forjar na história do Brasil-Colônia, um manual jurídico da escravidão que “imortalizou” a escravatura no país, como bem escreveu André Campello. 

Não há luto que possa reparar essa diáspora negra, pois vidas pretas todos os dias são ceifadas, e a grande maioria delas sem resposta – se o conceito de impunidade serve para alguma coisa, ele só pode ser usado aqui. Essa reparação só será possível com uma revisão radical do sistema de justiça, de sua forma e conteúdo, e para isso, é preciso tencionar autocrítica e uma postura antirracista dos/as operadores/as do sistema de justiça, bem como do já ínfimo setor progressista que está na magistratura. Sem essa revisão, sem a exigibilidade e garantia de acesso do povo preto à cidadania, ao direito de viver sem medo, ao sistema de justiça como garantidor de direitos e não apenas como suspensão dos mesmos, a diáspora negra seguirá não como memória de um passado nefasto, mas como expressão de um presente cruento.

* Professora da Universidade Federal de São Paulo. Doutora em Serviço Social pela PUC/RS. Integrante do Gt Feminismos, Resistências, e Emancipação do CLACSO.