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Bolsonaro ainda é o dono da situação. Quem poderá detê-lo?

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Como não entendeis que não vos falava a respeito de pães? E, sim: tende, pois, cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus. Compreenderam, então, que não lhes dissera que se guardassem do fermento dos pães, mas que se acautelassem da doutrina dos fariseus e saduceus” (Mateus 16:11,12)

Espero muito estar errado, mas reitero o que escrevi após a divulgação do vídeo da tétrica reunião ministerial: Bolsonaro segue forte e, assim, avança em sua escalada golpista, cujo propósito é a subversão do regime democrático-blindado e a consequente instalação de uma semiditadura bonapartista reacionária e ultraneoliberal. Suas falas demonstram isso, seus atos também, e as cartas de seu vice não o fazem senão confirmar, com alguma dose de erudição, os propósitos do lumpem-capitão.

Sim, Bolsonaro se desgastou e, possivelmente, segue se desgastando junto a alguns setores sociais, sobretudo entre os estratos médios. Sim, Bolsonaro não parece ter, ainda, o apoio do grosso da “massa da burguesia” (Marx) para suas investidas autocráticas. Sim, uma parte do grande capital, por meio de seus representantes tradicionais e instituições políticas, tenta, mesmo que de forma tímida e tépida, obstar os “excessos” autoritários de Bolsonaro. Sim, há perda de popularidade do governo Bolsonaro, e as pesquisas de opinião demonstram isso.

Ocorre, contudo, que, se, por um lado, tais pesquisas – verdadeiras “fotografias” da opinião pública em determinado momento – costumam se mostrar fundamentais para prever resultados eleitorais, por outro, elas não têm a mesma valia para um cenário no qual é a própria existência de eleições que está em risco. Convém lembrar, assim, que os sujeitos sociais não dispõem todos dos mesmos recursos políticos, incluindo os recursos de ação e, sobretudo, de força. Uma rejeição crescente a Bolsonaro constituída por indivíduos atomizados e em isolamento social poderia ser decisiva nas urnas, mas não é disso que se trata agora. O outro lado sabe disso, e, talvez por isso, justamente por isso, tem pressa. O avanço da pandemia e a proliferação ainda mais intensa das mortes com a “volta à normalidade” pode fazer acelerar o desgaste do governo junto às camadas populares, e, por isso, também por isso, justamente por isso, Bolsonaro tem pressa.
Enquanto as massas não tiverem condições de “votar com os pés”, como diria Lênin, isto é, de sairem às ruas aos milhares, de forma organizada e com uma direção claramente antifascista e de esquerda, não haverá uma inversão na correlação de forças na política nacional. O governo Bolsonaro é, por excelência, um governo de crise, mas não há, ainda, uma crise de governo, ou pelo menos não no grau que supõem alguns analistas de esquerda, os quais cogitam que sua queda pode vir a se dar de pronto, por caminhos institucionais, e de forma quase indolor.

Por isso, justamente por isso, hoje nada parece divino, quase nada há de maravilhoso, salvo os germes da resistência antifascista, e tudo ou quase tudo parece perigoso. Muito perigoso. A esquerda precisa contar com suas próprias forças, construir uma frente com um programa claramente em defesa da proteção das vidas, da manutenção do isolamento social, dos direitos sociais e das parcas liberdades democráticas que ainda existem. Sim, elas ainda existem e são fundamentais. Sim, elas não se aplicam igualmente a todos os setores sociais, e o extermínio da juventude negra, precarizada e periférica é a prova cabal (e letal) disso, mas é fato que, se retiradas essas liberdades dos que ainda delas podem gozar significativamente, a situação ficará pior para todos os explorados, e principalmente para os mais oprimidos, os quais praticamente já vivem sob um regime de exceção. Com o fim das liberdades democráticas, ainda que liberdades meramente formais, a juventude negra, precarizada e periférica terá não só mais dificuldades de se organizar para resistir e sobreviver, como não poderá contar sequer com a ação dos seus aliados de classe, em especial com a vanguarda socialista, lideranças sindicais, parlamentares progressistas, advogados populares e defensores dos direitos humanos. Sim, as coisas podem piorar, e muito.

Por isso, justamente por isso, é que esta frente única dos trabalhadores e oprimidos deve fazer ações unitárias antifascistas com quem quer que esteja, de fato, contra o neofascismo, a despeito de suas credenciais e atos pretéritos. Para que tais ações sejam efetivas, elas têm que ser contra o governo Bolsonaro. A cada dia com Bolsonaro no poder, o neofascismo cresce e a liberdade adoece. A derrubada de Bolsonaro é o único meio de obstar um golpe e salvar o que resta de liberdade. Bolsonaro pode ter a inteligência e a obstinação de um jumento, mas não é um cavalo xucro capaz de ser domado. Não há meio de domesticá-lo, não há forma de dissuadi-lo, como parecem querer alguns doutos burgueses signatários de manifestos que sequer mencionam o nome da besta, talvez pretendendo não atiçá-la ainda mais.

Na distante Paris do início da década de 1850, quanto mais avançava a escalada golpista de Luís Bonaparte, assinalou Marx, mais os políticos da burguesia abdicavam de quaisquer medidas concretas para obstá-la, limitando-se a tentar inutilmente demover o presidente de seu propósito subversivo. Ocorre que, “quando se tenta persuadir alguém”, sentenciou Marx, “é porque se reconhece ser ele o dono da situação”. Bolsonaro hoje ainda é o dono da situação, e por isso a situação exige que ele seja o quanto antes derrubado.

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Fora Bolsonaro