Quem tem o hábito de frequentar arquibancadas sabe o valor que uma torcida tem. Na base do grito, ela é capaz de recuperar um jogo perdido, e resgatar a moral de uma equipe antes entregue, desacreditada.
A esquerda brasileira parece ter sentido esse poder das torcidas no último fim de semana. Os atos antifascistas protagonizado por elas em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Curitiba, colocam um elemento novo na conjuntura política nacional. Rompem com a apatia e passividade de muitos, e podem ser a chave para uma “virada histórica”. Para que isso seja de fato realidade, é preciso que saibamos reconhecer algumas especificidades desses grupos, para compreender seus limites e potencialidades.
Quem são os (as) torcedores (as)?
Primeiramente, é necessário compreender quem são os (as) sujeitos (as) à frente dos atos. As “torcidas organizadas”, nos moldes que conhecemos hoje, têm suas origens no fim dos anos 1960 e início dos anos 1970. Esse período histórico é marcado em todo o mundo pela entrada em cena da juventude como sujeito social, capaz de assumir o protagonismo em amplos processos de mobilizações populares. De Paris a Cidade do México, de Córdoba a Praga, de Berlim a San Francisco, jovens se rebelaram e colocaram em xeque as estruturas de tudo aquilo que identificavam como a “velha ordem”. No Brasil não era diferente. A ditadura militar em vigor também encontrou na juventude um oponente incômodo, insistente, que mostrou sua força em momentos como a marcha dos 100 mil, no Rio de Janeiro, em junho de 68.
É nesse contexto, que as primeiras “torcidas organizadas”, ou “torcidas jovens”, surgem nos estádios brasileiros, como um pólo aglutinador de torcedores que contestavam as regras restritas das “torcidas oficiais” existentes até então, e reivindicavam independência frente às diretorias dos clubes e autoridades. Desta forma, podiam torcer de forma mais livre, e expressar abertamente nas arquibancadas suas críticas a jogadores, técnicos, dirigentes e políticos.
Porém, se a princípio as torcidas expressavam o desejo de participação e contestação que marcava aquela geração, e que vinha sendo brutalmente reprimido na sociedade brasileira, com o tempo esse caráter político progressista foi ficando em segundo plano. A participação de algumas torcidas em manifestações populares no período da redemocratização do país, como na campanha pelas ‘Diretas Já!’, e as tentativas de criação de espaços de articulação entre as torcidas (com a criação, por exemplo, da Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro) foram sendo ofuscadas pela crescente rivalidade e violência entre os grupos.
O assassinato de Cléo, líder da Torcida Mancha Verde, do Palmeiras, em 1988, é um marco na escalada da violência entre torcidas. Nos anos 1990, notícias e imagens de confrontos violentos nos arredores ou mesmo dentro dos estádios se multiplicam, e a mídia, que até então mantinha uma relação amistosa com as torcidas organizadas, passa a tratá-las como as grandes vilãs do futebol brasileiro.
Desde então, governos, dirigentes esportivos, poder judiciário e forças policiais tem se dedicado a combater as torcidas organizadas. Ao invés de reconhecê-las como coletivos legítimos, responsáveis por diversas ações sociais e protagonistas das festa nas arquibancadas, com os quais é preciso dialogar, no sentido de potencializar suas ações positivas e coibir os excessos ou desvios, as medidas adotadas, via de regra, vão no sentido de restringir a atuação da organização como um todo, no limite, extinguindo-as e excluindo-as dos estádios.
Torcidas Antifas:
Não podemos confundir, porém, as torcidas organizadas tradicionais, como a Gaviões da Fiel ou a Jovem Fla, com as Torcidas Antifascistas. Bem mais recentes – a primeira torcida brasileira nesse molde é a ‘Ultras Resistência Coral’ (ligada ao Ferroviário, CE), de 2005 -, estas torcidas começaram a se multiplicar principalmente a partir do acirramento da luta de classes no Brasil, notadamente de 2013 pra cá.
Sob o lema de “Nem guerra entre as torcidas, nem paz entre as classes”, essas torcidas e coletivos de torcedores tem buscado pautar a luta contra toda forma de exclusão e opressão, dentro e fora do ambiente do futebol. Se ainda estão longe de possuir o tamanho e a influência das torcidas organizadas tradicionais, apostam em uma estratégia de atuação e comunicação articulada, construindo frentes como a TAU (Torcidas Antifascistas Unidas) e a Frente Nacional pelo Futebol Popular.
Assim como essas Antifas surgiram também diversos coletivos que pautam o acesso a setores que são marginalizados no futebol. Coletivos de mulheres, LGBTs, coletivos ligados ao movimento negro e de várias pautas foram se formando e hoje ocupam espaço na vida política dos clubes.
Os atos recentes de torcedores e torcedoras sugerem que algumas bandeiras e ideais propagandeadas pelas Torcidas Antifas também ganham força entre torcedores organizados. Seguindo também o exemplo das principais torcidas chilenas, que ocuparam posição de destaque nas lutas recentes por lá, membros das torcidas tradicionais buscam resgatar o histórico de luta de suas instituições, e mobilizá-las (com sua enorme capilaridade e influência entre os jovens nas periferias das grandes capitais) em prol de interesses classistas.
Diferenças e semelhanças com 2013
A presença de jovens periféricos protestando na Avenida Paulista fez vários analistas se lembrarem de junho de 2013. Passamos agora a analisar a pertinência ou não dessa comparação.
A principal semelhança é o espanto de parte da esquerda. Ensimesmada em seus aparelhos e instâncias formais grande parte da esquerda tradicional parece, mais uma vez, ser pega de surpresa. Foi surpreendida pela explosão das lutas contra os aumentos das passagens em 2013, pelas ocupações secundaristas em 2015 e 2016, pelo movimento dos caminhoneiros em 2017… E é mais uma vez surpreendida pela participação política das torcidas de futebol, em 2020.
Surpreendida, parte da esquerda reage torcendo o nariz, “achando feio tudo aquilo que não é espelho”, se apressando em rejeitar qualquer forma de organização popular que não siga o formato tradicional de sindicatos, partidos e movimentos sociais. Outra parte caminha para o outro extremo, e passa a apontar no vigor dessa mobilização todas as virtudes revolucionárias, anunciando a partir dela a redenção popular. Ambos extremos precisam ser evitados em uma análise que se pretende realista.
Sobre as diferenças
A conjuntura é a primeira grande diferença. Em 2013 tínhamos o Partido dos Trabalhadores no governo federal, com um projeto de conciliação de classes que começava a dar sinais de esgotamento. A classe trabalhadora vinha de um período de conquistas (ainda que não no ritmo e profundidade desejadas) e as jornadas de Junho tinham um sentido ofensivo, de exigir mais direitos, melhores serviços públicos, e melhores condições de vida. A conjuntura agora é totalmente diferente. A classe trabalhadora acumula derrotas nos últimos anos, e as mobilizações tem claramente um sentido defensivo: O objetivo dos atos é não permitir à direita mais raivosa e radical criar um clima de falsa legitimidade popular ao governo Bolsonaro, evitando assim que ele siga em sua política genocida, ou consiga impor a solução autoritária que deseja para a atual crise política e institucional.
Outra diferença importante entre 2013 e 2020 é o próprio tempo. Aprendemos com a experiência. Em algum momento (e aqui não dá pra ignorar o papel que a repressão, executada pelos governos estaduais com total apoio do governo federal, cumpriu nesse processo) as mobilizações de 2013 foram se tornando acéfalas, e suas pautas foram se diluindo. Quem se aproveitou disso, todos sabemos, foi a direita, com seus atos dominicais pro-golpe, a partir de 2014, e com o fortalecimento de um discurso anti-politica e anti-partidos.
O caso agora é diferente. Não conheço nenhum torcedor Antifa que não se reivindique de esquerda. Não que exista entre eles uma homogeneidade. Há ali anarquistas, socialistas, comunistas, até gente que se diz esquerda moderada… Mas não há espaço para bordões como “Meu partido é o Brasil”, ou discursos sobre não ser “nem esquerda, nem de direita”… Mesmo entre os torcedores organizados comuns, que também se mobilizaram para as manifestações, o que predomina é sentimento de que a vida do povo vem piorando, e a saída para crise social não passa pelas medidas ultra-liberais propostas por Paulo Guedes e cia.
O perigo de capitulação à direita, no caso, não parece estar entre aqueles que foram às ruas. Mas sim na esquerda institucional, que ouve o canto das sereias de manifestos e movimentos “suprapartidários”, extremamente vagos e imprecisos, que nem de longe tocam nas raízes de nossas mazelas econômicas, sociais e políticas.
Perigos e desafios
Mas, nem tudo são flores, e o perigo segue à espreita. Eduardo Galeano, no livro Dias e noites de amor e de guerra, nos questiona: “Quantas vezes confundimos a bravura com a vontade de morrer?”. Qualquer boa tática precisa levar em consideração a preservação da saúde e da vida de lutadoras e lutadores.
É preciso entender que assim como surgiram diversos coletivos progressistas que disputam a arquibancada existe também uma série de grupos conservadores que atuam nas arquibancadas e estão levando pautas de direita além de ameaçar os militantes nos estádios. Um estádio de futebol tem sua linguagem e regras próprias, sendo a violência utilizada como um padrão, por isso é importante ressaltar que qualquer ação sem o cuidado correto de segurança pode acarretar em agressão dos militantes por parte de setores conservadores ou pessoas que não querem política na arquibancada. É preciso entender a dinâmica dos espaços em que se está atuando.
Também é preciso, porém, não confundir a reação do oprimido com o ataque do opressor. Como já foi dito, os atos Antifas tem o caráter defensivo, são respostas organizadas da classe a atos e políticas criminosas, que buscam salvar o lucro de poucos às custas das vidas de muitos, ou procuram legitimar o fechamento do regime. Infelizmente, a política de isolamento social, internacionalmente reconhecida como a única medida capaz de conter a expansão da atual pandemia, falhou no Brasil. E a responsabilidade disso é toda do Governo Bolsonaro. Os contágios decorrentes de tais mobilizações devem ser creditadas ao governo federal e seus apoiadores, amantes da morte, que não apenas atuam para que grande parte da população não tenha condições de permanecer confinada, como segue convocando atos anti-democráticos e promovendo aglomerações, contra todas as recomendações sanitárias.
Além disso, é preciso ainda lembrar que grande parte dos torcedores organizados já estão de uma forma ou de outra, expostos diariamente ao contágio. São, em geral, jovens de periferia, trabalhadores informais ou com vínculos precários, que frente ao abandono do poder público, precisam seguir trabalhando. A luta que travam agora, contra o governo genocida de Bolsonaro e seus apoiadores, é também a luta pelo direito a vida, e a uma política que priorize a saúde da população.
Por fim, é importante não alimentar ilusões. Não há dúvida que nem tudo o que se refere às torcidas de futebol é virtude. Encontraram-se entre elas elementos firmes e valorosos, predispostos ao (necessário) combate franco e enérgico contra os fascistas (e aqui esperamos que a esquerda institucional tivesse aprendido a lição de 2013, e não volte a fazer eco ao discurso do “bom manifestante” versus o “mau manifestante”), corre-se, porém, o risco de que essa violência se degenere em atos catárticos, sem sentido. Conseguir dialogar com esses coletivos, respeitando sua autonomia e suas particularidades, e compreendendo suas demandas, é o grande desafio que teremos.
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