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EDITORIAL

O levante antirracista incendeia a América

Editorial de 01 de junho de 2020

Os Estados Unidos estão em chamas. Os protestos começaram em Minneapolis depois da morte de George Floyd, um homem negro que jogando ao chão e imobilizado por três policiais foi sufocado até a morte por um quarto policial branco supremacista, que esmagou seu pescoço contra o solo durante agonizantes nove minutos.

O assassinato foi filmado por uma jovem que presenciou a cena. Floyd por algumas vezes disse aos policiais que não conseguia respirar e pediu para não o matarem, mas nada disso mudou a postura dos policiais assassinos. Ele morreu pelo simples fato de ser negro.

Read this text in english  The antiracist uprising inflames America

Com a divulgação do vídeo, manifestações e protestos contra o assassinato de George Floyd e contra a violência policial racista tomaram conta da cidade. Organizados inicialmente por grupos como Black Lives Matter, os protestos logo se tornaram multitudinários e se espalharam por todo o país, assumindo características de atos espontâneos. Aos manifestantes negros se somaram outros grupos raciais oprimidos como os latinos, árabes, judeus e asiáticos, além de grande número de jovens brancos formado de filhos da classe trabalhadora.

Importa registrar que ajudou a inflamar a revolta a incompetência criminosa do governo Trump perante a pandemia que já tirou mais de 100 mil vidas nos Estados Unidos, atingindo desproporcionalmente a população negra, a falência da saúde sucateada e privatizada e a crise econômica sem paralelo em muitas décadas, que já colocou cerca de 40 milhões de trabalhadores no desemprego.

Os protestos iniciados pelo povo em Minneapolis se espalharam por todos o país, alcançando Milwaukee, Detroit, Chicago, Nova Iorque, Filadélfia, Washington, Cleveland, Dallas, Atlanta, Louisville, Los Angeles, Seattle, Miami, Indianapolis, Pittsburgh e muitas outras, já totalizando 75 cidades. Em todas elas, o mesmo cenário se repete, com barricadas nas ruas, manifestações gigantescas, confronto entre os manifestantes e as forças policiais, saques de grandes lojas e fogo.

Este não é o primeiro levante negro que acontece na história dos Estados Unidos. O maior deles, mas não o primeiro, teve início como reação ao assassinato do pastor batista e líder do Movimento pelos Direitos Civis, Martin Luther King, em 4 de abril de 1968, durou 7 dias, alcançou 125 cidades e gerou um saldo de pelo menos 46 mortos e 2.600 pessoas feridas, grande parte disso devido à repressão levada a cabo pela 82ª Divisão Aerotransportada do Exército. Depois dele, outros grandes levantes aconteceram. Em maio de 1980, o levante durou três dias e ficou restrito a Miami. Em abril de 1992, ele durou 2 dias e foi iniciado em Los Angeles, tendo se propagado para Las Vegas, Atlanta e Nova York. Aconteceu em abril de 2001, em Cicinnatti, estado de Ohio. E, em agosto de 2014, aconteceu o levante mais conhecido da atual geração que está ocupando as ruas das cidades norte-americanas e recordista em números de dias de ação nas ruas. Por dez dias a comunidade negra de Ferguson, no estado do Missouri, se levantou contra a morte do jovem negro Michael Brown, de 18 anos.

Os três últimos levantes tiveram como estopim atos de violência policial, dois dos quais levaram à morte de jovens negros. Sofrer violências e assassinatos pelo simples fato de ser negro tem sido uma constante da experiência vivida pelo povo afro-americano. Segundo levantamento realizado pelo Equal Justice Initiative, entre os anos de 1877 e 1968, nada menos que 4.084 afro-americanos foram linchados (assassinados) por grupos de supremacistas brancos como a Ku Klux Klan. Malcolm X tinha razão ao dizer que “para o negro o sonho americano mais parece um pesadelo”. Na história norte-americana, os levantes negros têm expressado o grito revolucionário, o desejo do povo afro-americano de se libertar de uma vida de opressão, terror e exploração. Vida que que lhe é imposta pela estrutura racial capitalista do sistema de dominação e exploração controlado pelas elites brancas que falam em nome do grande capital. Razão pela qual Malcolm X também dizia que “não existe capitalismo sem racismo”.

Os liberais e democratas das classes médias e de setores das elites brancas dizem compreender as razões dos protestos, mas condenam os saques, as depredações e a “violência” como atos selvagens, irracionais, animalescos. Os mesmos estereótipos presentes nas lentes por meio das quais os nazistas e supremacistas brancos utilizam para identificar o negro e afiar sua superioridade racial. Quanto a isso, a jovem negra Tamika D. Mallory, que está na frente de combate em Minnesota, retruca:

“Façam valer o que vocês dizem que este país deveria ser. A terra da liberdade para todos. Pois não tem havido liberdade para o povo negro e estamos cansados. Não nos fale sobre saques. Vocês são os saqueadores. Os Estados Unidos saquearam o povo negro. Os Estados Unidos saquearam os nativos americanos quando chegaram aqui. Então, saquear é o que vocês fazem. Nós aprendemos isso com vocês. Nós aprendemos violência com vocês. A violência foi o que aprendemos de vocês. Se vocês querem que façamos melhor, façam vocês melhor, porra!”

Os protestos confrontam a paz dos senhores do capital. Essa paz, que representa guerra contra o povo preto. O levante se coloca em marcha por um mundo de direito à vida, à liberdade, à justiça e ao reconhecimento equitativo da humanidade para todos. Como essa luta se confronta com um sistema político e econômico que, ao longo de sua história, se mostrou incapaz de garantir isso, o protesto se encontra na inescapável posição de levar aos senhores e às classes médias brancas a experiência imposta às comunidades negras de se viver em permanente estado de emergência, violência e guerra.

A justa revolta dos manifestantes se dirige especialmente contra as polícias e forças de segurança do estado, responsáveis por impor a “paz” que os manifestantes cansaram de seguir admitindo. Não é direcionada apenas contra os policiais racistas que assassinaram George Floyd, mas contra a instituição racista que é a polícia norte-americana. Um dos momentos que mostra o tamanho da fúria e da radicalização do levante negro foi o incêndio da delegacia da cidade de Minneapolis pelos manifestantes. Algo deste tipo não acontece no país há, no mínimo, 70 anos.

Com a radicalização dos protestos em Washington, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi levado para um bunker na Casa Branca na última sexta-feira (29), segundo  informações do jornal “The New York Times”.

Donald Trump colocou o Exército à disposição do governador do estado de Minnesota, Tim Walz, e concluiu que “quando o saque começar, o tiroteio começará”, estimulando, com isso, a reação armada de grupos supremacistas aos protestos. O governador do estado de Minnesota declarou estado de emergência e mobilizou toda a Guarda Nacional do estado, espécie de força militar de reserva, para atuar na repressão aos protestos em reforço às forças policiais não militarizadas. O mesmo foi feito por governadores de 11 outros estados e no Distrito de Columbia. Muitas cidades declararam toque de recolher. Em todo o país, 1.669 pessoas, a maioria jovens, foram presas. Pelo menos três pessoas morreram, sendo uma delas um policial.

É importante apontarmos que, além da radicalidade do movimento, que se desenvolve majoritariamente de forma espontânea, começam a se desenvolver pequenas medidas organizacionais. Os saques das grandes lojas passam a serem distribuídos nas comunidades carentes, e templos religiosos servem como abrigo e ponto de apoio aos manifestantes.

A dor pela morte de George Floyd e de outros negros é uma dor que nós conhecemos bem no Brasil. Em nosso país a violência racial é uma presença constante. João Vitor, João Pedro, Cláudia, entre tantos outros, foram assassinados e seus assassinos seguem impunes. No Brasil nós podemos aprender com as lutas de Minneapolis. É preciso organizar nossa dor e transformá-la em chamas. Nossas vidas importam, a de supremacistas brancos não.

É preciso, também, construir uma campanha internacional contra a repressão e o uso das Forças Armadas que Trump quer impor. A revolta antirracista incendeia a América e ilumina os caminhos da luta em todo mundo.