O assassinato de George Floyd
O policial branco Dereck Chauvin já somava 19 anos de trabalho no departamento de polícia da cidade de Minneapolis, a maior do estado de Minnesota. Sua ficha funcional registra uma longa lista de desvios de conduta e ações violentas contra negros e latinos da cidade. Mas ele nunca foi responsabilizado por essas ações, que só agora vieram a público, juntamente com a informação de sua adesão a ideias de supremacia branca.
Para ele, aquela segunda feira, 25/05, seria apenas mais um dia de trabalho normal. No qual, no máximo adicionaria mais um mal feito à sua ficha funcional suja, que continuaria mantida a salvo do olhar público, para o bem da autopreservação da imagem do sistema policial da América democrática. Por isso, Dereck manteve a pose de tranquilidade, a mão no bolso e o olhar sereno durante os 5 minutos que, ajoelhado sobre o pescoço de George Floyd, comprimia o rosto do homem negro ao chão e negava atenção aos seus apelos: “Meu estômago dói, meu pescoço dói, tudo dói” … “Estou prestes a morrer” … “Não me mate” … “Mamãe!” … “Não consigo respirar” … “Não consigo respirar” … “Não consigo respirar”.
Seguro da impunidade de mais um ato de violência contra mais um daqueles que a polícia, o estado e a boa e branca sociedade americana, por uma questão de raça e classe, quase sem disfarçar, trata como bestas de carga, coisas descartáveis e dejetos sociais, Dereck não esboçou a mínima preocupação com o fato de a cena de violência e tortura por ele praticada está sendo gravada. Sua pose de tranquilidade não se desfez mesmo quando George Floyd já não apresentava sinal de respiração e seu corpo inerte era lançado sobre a maca e enfiado na ambulância.
O levante negro de Minneapolis
Em artigo publicado há duas semanas, argumentei que as mazelas decorrentes da destruição neoliberal das políticas sociais e de promoção da igualdade racial desde a ascensão de Ronald Reagan à presidência, em 1981, e a consequente expansão da pobreza e da população carcerária que se seguiu, somadas à atual crise econômica e à catástrofe gerada pela pandemia do Coronavírus, que estão gerando a mais elevada taxa de desemprego da história do país, estão afetando a população afro-americana de forma desproporcional e levando ao aprofundamento das desigualdades sociorraciais constitutivas da estrutura da sociedade e do racial capitalismo norte-americano. Concluí então que a violência fascista e suprematista branca ganhava força e as tensões sociorraciais, típicas daquela estrutura socioeconômica, adquiria novas dimensão e profundidade.
Segundo a compreensão expressa no artigo, a crise sanitária e o consequente aprofundamento da crise econômica completaram o caldo de elementos necessários à explosão das tensões. Mas elas vinham se acumulando vinham se acumulando pelo menos desde a posse de Trump. Lembremos, por exemplo, das centenas de milhares de mulheres que marcharam em 21 de fevereiro, em seguida à posse do presidente, para dizer que ele não as representava e que não aceitavam retrocessos em seus direitos. Lembremos das massivas manifestações de estudantes secundaristas em defesa do controle da produção e do comércio de armas, em agosto de 2018. Lembremos que no primeiro semestre de 2019 ocorreu uma histórica onda nacional de greves de professores e que esse movimento se construiu em estreita associação com a luta das comunidades negras e latinas contra o fechamento das escolas publicas dos seus bairros. E que, no segundo semestre do mesmo ano, 46 mil operários das 31 fábricas da GM no país entraram em greve e arrancaram importante vitória salarial. Lembremos, por outro lado, da marcha realizada pelos nazistas e suprematistas em Charlottesville (Vírginia), empunhando tochas que simbolizavam os rituais da Ku Klux Klan. Lembremos do assassinato do Jovem negro Ahmaud Arbey por dois suprematistas brancos, na cidade Brunswick (Georgia) em fevereiro deste ano. Lembremos das demonstrações armadas realizadas pelos nazistas e suprematistas nos estados de Winsconsin, Arizona e Michigan. Sendo que neste último realizaram a ocupação armada da assembleia do estado, no que foram respondidos por ativistas negros que se voluntariaram como grupo de escolta armada destinado a garantir a segurança da primeira parlamentar negra eleita para um assento naquela casa legislativa.
Por tudo isso afirmei naquele artigo que “um novo levante do povo negro se faz urgente e necessário e precisará vir com fúria e organização superiores ao que se viu nos levantes de Fergusson, em setembro de 2014, em resposta ao assassinato do jovem preto Michael Brown, de 18 anos, por um policial.”
Segundo a visão que expressei, a dose mais elevada de “fúria e organização” seria requerida em razão de “No atual contexto de acirramento dos conflitos sociorraciais e de ascensão das forças sociais do fascismo e da supremacia branca, além do aparato repressivo do estado mais poderoso do mundo, um novo levante do povo afro-americano confrontar-se-á com as milícias armadas confederadas.”
Dada a magnitude e o poder das forças reacionárias e de conservação da ordem contra as quais um novo levante negro haveria de se defrontar, opinei que a fim de avançar em mudanças efetivas na estrutura das desigualdades sociorraciais “o radicalismo preto afro-americano precisará desenvolver a maturidade e a capacidade de se colocar na vanguarda da construção da mais ampla unidade de todos os grupos sociais de explorados e oprimidos da América, também castigados pelo desemprego, pela pobreza e pelo Coronavírus.”
Pois bem, aqui estamos! O levante negro chegou na velocidade da circulação das imagens do covarde assassinato de George Floyd pela via das redes sociais. O vídeo causou indignação e revolta em toda a comunidade negra do país, das demais minorias raciais e da juventude branca de filhos da classe trabalhadora dos subúrbios.
Na tarde de terça-feira (26) ocorreram os primeiro protestos na cidade de Minneapolis. E, na medida em que os policiais se lançaram contra os manifestantes, com balas de borracha, gás lacrimogêneo e granadas de efeito moral, o protesto tomou a forma dos oito históricos levantes negros ocorrido na história recente do Estados Unidos, dos quais, por motivos de espaço, destacamos apenas três. O primeiro, se deu como reação ao assassinato do pastor e líder do Movimento pelos Direitos Civis, Martin Luther King, em Memphis (Tennessee), em 4 de abril de 1968, durou 7 dias, envolveu 125 cidades americanas e gerou um saldo de pelo menos 46 mortos e 2.600 pessoas feridas, havendo sido contido pela violenta intervenção da 82ª Divisão Aerotransportada do Exército do EUA. O segundo, ocorreu nos dias 30 de abril e 1º de maio de 1992 e teve início como protesto contra a absolvição dos quatro policiais brancos que no dia 3 de março daquele ano, após uma abordagem de trânsito, na base de socos, cassetadas e pontapés, espancaram até a morte o motorista Rodney King. Iniciados na cidade de Los Angeles (Califórnia), onde se deu o assassinato e julgamento dos policiais, os protestos chegaram à capital do estado da Califórnia, São Francisco, e cruzaram as fronteiras do estado, chegando a Las Vegas (Nevada), Atlanta (Geórgia) e Nova York, deixando um lastro de 59 mortos e 2.328 feridos. O terceiro, teve início na cidade de Ferguson (Missouri), em 10 de agosto de 2014, e se expandiu para todas as grandes cidades do país. Iniciado como reação ao assassinato do jovem negro Michael Brown, de 18 anos, por um policial, o levante resultou em dez dias de saques, incêndios danos a propriedades e enfrentamento da comunidade negra e seus aliados contra a forças de segurança, equipadas de fuzis e veículos blindados.
No levante iniciado neste 26 de maio, em Minneapolis, em reação ao assassinato de George Floyd, os protestos rapidamente romperam as fronteiras da cidade e do estado de Minnesotta e, a exemplo do levante de 1968, que expressou a fúria negra contra o assassinato de Martin Luther King, parece destinado a alcançar mais de uma centena de cidades.
Os protestos já se repetiram por 4 noites (26 a 29/05) e neles assistimos a cenas de confronto direto entre os manifestantes e as forças policiais fortemente armadas, construção de barricadas, incêndios e destruição de viaturas da polícia, saques e depredações de lojas e empresas e incêndio de prédios e de delegacia de polícia. Com o passar dos dias, os protestos têm se expandido pelo país. No dia de ontem (29/05) foram realizados protestos combinados em pelo menos 30 cidades e distritos americanos além de Minnesota, a exemplo de Nova York, Brooklin, Washington DC, Atlanta, Milwaukee, Detroit, Boston, Chicago, Fort Wayne, Kansas City, Denver, Las Vegas, San Jose, Oakland, Menphis, Lincoln, Phoenix, Filadélfia. Em Detroit um manifestante foi atingido por um tiro e morreu e o mesmo aconteceu com um policial, em Oakland, na Califórnia. Em Washigton DC, milhares de manifestantes se aglomeram frente ao acesso à Casa Branca, obrigando o serviço secreto a bloquear as entradas e saídas da casa presidencial e sede do governo.
Conforme havia alertado no artigo anterior, para além do aparato de segurança do Estado, o levante negro em Minneapolis está a se confrontar com milícias armadas de extrema-direita que patrulham a cidade e defendem as grandes lojas da ação de saqueadores. No enfrentamento à repressão os manifestantes têm contado com o apoio não esperado de gangues locais formadas por jovens negros e latinos cuspidos do mercado e vitimados pelo desemprego. E, também, com o apoio de igrejas e mesquitas que abriram suas portas para abrigar os manifestantes durante os ataques de gás lacrimogênio da polícia.
Por todo o país, o levante tem se ampliado seu público para além da comunidade negra. Nos protestos é possível vermos uma grande massa formada por mulçumanos, judeus, asiáticos, latinos e jovens brancos, lutando ombro a ombro com negros e negras e construindo uma solidariedade multirracial de explorados e oprimidos que promete plantar raízes no que será o futuro dos movimentos e lutas de transformação social que germinarão no solo da América a partir dessa experiência.
No entanto, não é possível prever quais serão os desdobramentos imediatos do levante negro. Especialmente após o reforço que as polícias locais e estaduais receberão do exército americano, com a federalização da repressão aos protestos. Resta evidente, no entanto, que longe de haver sido contido ou derrotado, ele ainda está na sua fase ascendente. Será preciso continuarmos a acompanhar seus desdobramentos e realizar ações de solidariedade e apoio.
O levante negro e as eleições presidenciais americanas
Se, como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” o que acontece então quando centenas de milhares delas se juntam aos seus irmãos de cor e a outras centenas de milhares de sujeitos explorados e oprimidos para, por meio da ação de rua, confrontar uma ordem social racista, elitista e excludente, mesmo que à consciência imediata dos sujeitos que se colocam em movimento não identifique com toda nitidez as estruturas da opressão e exploração racial capitalista como principal entrave a retirar do seu caminho em direção à emancipação, parecendo-lhes bastar o clamor por justiça para o irmão bárbara e covardemente assassinado?
O levante negro de Minneapolis está a responder a essa questão e nos mostrando que quando a massa de explorados e oprimidos se levanta e sai as ruas as estruturas incendeiam. Por essa razão, o levante negro rapidamente se tornou centro da vida política e social dos Estados Unidos, mesmo estando nesse lugar ocupado pela hecatombe de mais de 100 mil pessoas mortas pelo coronavirus. Em torno de tal evento as forças políticas são então chamadas a ordenar suas posições.
Os políticos democratas e a imprensa burguesa, interessados em conter o levante, tanto ressaltam a desumanidade do assassinato e pedem punição severa para o assassino, quanto buscam enquadrar o crime como simples resultado do desvio de conduta de um único policial e da equipe que o acompanhava. Ao mesmo tempo, representam os incêndios, saques e atos de destruição de propriedades, os métodos de luta do levante negro, como violentos e injustificáveis. Transformam, assim, a reação do povo violentado como a violência hedionda a ser problematizada, reprimida e derrotada.
Donald Trump e sua turma de Republicanos, por sua vez, encaram os protestos a partir da percepção do potencial que podem ter para inviabilizar as chances de reeleição do presidente. Em postagem no Twitter na manhã desta sexta-feira, Trump se referiu aos manifestantes como “bandidos”. “Eles estão desonrando a memória de George Floyd, e eu não deixarei isso acontecer”, disse. O presidente colocou o Exército à disposição do governador do estado de Minnessota, Tim Walz e concluiu que “quando o saque começar, o tiroteio começará”. O Twitter sinalizou essa mensagem como violadora das regras da plataforma, por estimular a violência, mas decidiu mantê-la no ar.
Em outra mensagem, o presidente polemizou com o prefeito democrata de Minneapólis, a quem acusou de radical de esquerda e ameaçou colocar a segurança da cidade sob controle federal: “Ou o prefeito da esquerda radical, Jacob Frey, começa a agir e coloca a cidade sob controle, ou enviarei a Guarda Nacional e concluímos o trabalho corretamente.” No final do dia de ontem (29/05) isso já não era mais uma ameaça. O governador do estado de Minnesota havia declarado estado de emergência e solicitado o apoio militar de Trump. Assim, a repressão ao levante negro já se encontra efetivamente sob comando de tropas federais.
Vê-se, portanto, que Trump aplicará a força de que dispõe para derrotar o levante e se diferenciar de Joey Biden e dos Democratas, apresentando-se aos americanos conservadores e a todos que se colocarem contra os protestos violentos como o homem forte, protetor da lei e da ordem, capaz de derrotar a “horda” de “bandidos” e esquerdistas arruaceiros que tentaram com a violência e o caos desonrar a memória de George Floyd. Ao mesmo tempo, ele sinaliza aos bandos e milícias fascistas e supremacistas que atirem contra tais “bandidos” e esquerdistas.
Enquanto isso, nas cidades e estados onde governa, o Partido Democrata move o aparato de segurança para reprimir os protestos, sempre que eles “fujam do controle”. O candidato a presidência pelo partido, Joey Biden, cuja vitória nas prévias democratas foram garantidas em grande parte pelo apoio da burguesia negra e do seus representantes políticos, evita expressar um categórico posicionamento de apoio aos protestos e limita suas declarações ao lugar comum segundo o qual o racismo está por detrás do assassínio de George Floyd e “Somos um país com uma ferida aberta. Nenhum de nós pode virar a cara”. Busca diferenciar-se de Trump apenas na crítica ao estímulo à violência presente na sua mensagem no Twitter, pretendendo, com isso, se apresentar à opinião pública com o líder apaziguador do qual o país necessita nesse momento. Mas, a paz que ele pretende manter é exatamente a paz que os que estão nas ruas não querem seguir admitindo.
Podemos respirar?
De George Floyd o estado racial capitalista, por meio de sua máquina de moer carne, extrair sangue e aterrorizar a vida dos pretos, retirou o direito, o poder e a capacidade de respirar. No entanto, o algoz suprematista não esperava que seu último sopro de vida pudesse gerar uma tão grandiosa tempestade.
O levante negro de Minneapolis, essa tempestade de fúria e de fogo brotada do último sopro de vida de Geoge Floyd, não tocará apenas de leve as estruturas e o destino da América. Dos seus desdobramentos dependerá a dinâmica do radicalismo negro e de suas organizações de luta, como o Black Lives Matter, a dinâmica da relação entre a massa de negros e negras e as organizações e lideranças políticas da burguesia negra norte-americana, habituada a seguir acriticamente a direção do Partido Democrata, atrelando assim o destino do povo negro do país e do mundo aos desígnios dos magnatas de Wall Street.
Da forma como se posicionarão frente ao levante e em relação a ele atuarão e do destino que ele terá também dependerá a dinâmica das pequenas organizações da esquerda radical marxista e dos Democratas Socialistas da América, de Bernie Sanders e Ocásio Cortez.
E do destino do levante negro dependerá, principalmente, a dinâmica das eleições presidenciais americanas deste ano e o futuro imediato da correlação de forças entre os campos da civilização e da barbárie fascista e suprematista na casa do Tio Sam, com os consequentes desdobramentos disso para o resto do mundo.
Portanto, torçamos para que, apoiada na tradição negra radical construída da experiência e da memória de séculos de lutas e de formulação teórica e programática, a nova vanguarda negra da América se coloque à altura da construção da frente única de raças oprimidas e classe explorada que permita ao sopro de fúria e fogo de George Floyd conduzir à construção dos instrumentos organizativos e do campo de forças sociais necessários para sacudir e lançar por terra os muros da cidadela do grande capital.
Torçamos para que desenvolvam a maturidade de apresentar às massas em movimento um programa de lutas que, para além de expressar revolta contra os assassinos do irmão preto e o clamor por justiça, expresse as necessidades mais sentidas por todos os oprimidos e pelos explorados de todas as raças e avance na superação das estruturas do racial capitalismo norte-americano. É disso que todos e todas necessitamos para continuemos, pois seja em razão da crise sanitária e ambiental, seja em razão do desemprego e da profunda e generalizada superexploração do trabalho ou em razão da necropolítica praticada contra o povo preto, contra os latinos e povos originários já quase não podemos respirar.
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