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TEORIA

O que o marxismo tem a dizer sobre o imperialismo de nossos dias (1)

Esse texto faz parte de uma iniciativa de divulgação científica. É uma versão leve e atualizada do artigo “A dialética do imperialismo”, publicado em 2018 no número 46 da Revista Crítica Marxista. Além disso, esse argumento foi publicado pela primeira vez na tese de doutorado do autor, de 2016, intitulada “O capital no mundo e o mundo do capital: uma reinterpretação do imperialismo a partir da teoria do valor de Marx”. O autor ficará satisfeito em receber comentários, dúvidas ou críticas no e-mail ([email protected]) ou no Twitter (@Leite_leonardo_)

Leonardo M. Leite

O que sabemos sobre o imperialismo? Um inventário de 100  anos de história

Com o mundo capitalista desabando, o conceito de imperialismo está sendo reabilitado. A ascensão chinesa, o relativo declínio dos Estados Unidos e a reconfiguração global pós-Corona parecem ser as características determinantes para essa retomada. Para que não andemos em círculos e para que essa retomada sirva como ferramenta na luta anticapitalista, convém entendermos o que já sabemos sobre o imperialismo. Afinal, o marxismo já tem mais de 100 anos de história estudando esse conceito. 

Em primeiro lugar, uma questão de método. Uma categoria teórica expressa um determinado aspecto da realidade. Se a realidade é contraditória, a teoria que tenta entendê-la tem que ser capaz de explicá-la em sua própria contradição real. Em outras palavras, e aqui me remeto ao título dessa exposição, o imperialismo é um aspecto da realidade capitalista e, como tal, comporta um conjunto de determinações aparentemente contraditórias entre si, de modo que exige uma apreensão teórica necessariamente dialética que absorva as contradições ao invés de expulsá-las da explicação. Essa é a dialética do imperialismo.

De fato, o termo “imperialismo” é usado das formas mais diversas possíveis, algumas delas contraditórias entre si. Por exemplo, muita gente que estuda o imperialismo começa, com razão, em Lênin. Mas não dá para transpor mecanicamente uma teoria de 100 anos atrás para os dias de hoje. Quero mostrar que é possível (e necessário) utilizar a teoria de Lênin para entender o imperialismo, inclusive o atual, mas desde que ela seja entendida como um produto de seu tempo. O imperialismo de Lênin está baseado numa série de características que ele extrai da realidade de sua época e ele enfatiza muito fortemente a chamada “exportação de capitais”. O imperialismo, para Lênin, é uma fase do capitalismo. Para descrever essa fase, ele utiliza os famosos 5 traços do imperialismo, que são os seguintes: na era do imperialismo ocorre (1) o predomínio do capital financeiro e (2) dos monopólios, que configuram a era do “capitalismo monopolista”, onde (3) a exportação de capitais é mais importante do que a exportação de mercadorias, o que leva (4) à divisão do mundo entre grandes empresas capitalistas e, por sua vez, (5) ao militarismo e à divisão do mundo entre as grandes potências. Percebem como a “exportação de capitais” tem um papel de mediação lógica fundamental entre as duas primeiras características (capital financeiro e monopólios) e as duas últimas (divisão do mundo entre grandes capitalistas e grandes potências)? Lênin está vendo o mundo desmoronar na Primeira Guerra Mundial e tentando entender as raízes que conduziram o mundo até aquele estado de coisas. Nos rascunhos dos seus estudos sobre o imperialismo, quando redigia a versão preliminar desse trecho do seu livro, Lênin anotou ao lado da exportação de capitais: “questão principal”

Pouquíssimos intérpretes da obra de Lênin explicaram por quê a exportação de capitais era tida como a “questão principal”. Quer dizer, eu não conheço nenhuma obra que explique esse ponto. Nem o recente e magnífico “Lênin: uma biografia intelectual”, publicado pela Boitempo alguns anos atrás, que esmiuça toda sua produção teórica, oferece uma explicação. Minha hipótese é que, como sua teoria do imperialismo está inserida em sua teoria da revolução, e esta, por sua vez, era entendida necessariamente como uma revolução mundial, a “exportação de capitais” era entendida por Lênin como exportação de relações de produção capitalistas. Era a forma típica de sua época através da qual o capitalismo se universalizava, se expandia espacialmente. “Exportação de capitais”, portanto, era exportação da luta de classes, ou melhor, universalização da luta de classes e, em potência, da revolução. Por isso, no meu entendimento, “exportação de capitais” era a “questão principal” em sua teoria do imperialismo.

Naquele período histórico, Lênin foi o último, dentre notáveis marxistas, a publicar seu panfleto sobre o imperialismo, de modo que é correntemente aceito que sua teoria é muito influenciada por outros contemporâneos, especialmente Rudolf Hilferding e Nikolai Bukharin. Sua teoria é entendida muitas vezes como uma síntese das contribuições anteriores. Mesmo em Rosa Luxemburgo, cuja teoria ela desenvolve por outros caminhos, a exportação de capitais tem um papel chave na fundamental compreensão da autora acerca das expropriações e da expansão do capitalismo para fora de seus domínios territoriais.

Nas primeiras duas décadas do século XX, era corrente entre os teóricos do imperialismo associá-lo com uma nova característica do capitalismo daquela época. O capitalismo mudou a partir da longa depressão dos anos 1870 e das respostas de governos em promoverem suas próprias indústrias nacionais, movimento que se inicia com o protecionismo de Bismarck na Alemanha recém unificada e que se espalha por França, Áustria-Hungria, Rússia, Espanha, Estados Unidos e outros países. De qualquer maneira, o imperialismo era descrito como a nova fase do capitalismo na qual observava-se a conjunção de interesses entre Estados-nacionais e burguesias nacionais. Isso é praticamente consensual dentro da historiografia marxista sobre o período. Mas, e esse é o ponto que quero enfatizar neste momento, é que nessa primeira onda de teorizações sobre o imperialismo, existe uma interseção entre todas as teorias, um elemento em comum: a exportação de capitais.

Esta última constatação (que a exportação de capitais tem papel chave na primeira onda de teorizações sobre o imperialismo) é necessária para avançarmos na compreensão do imperialismo. E necessária também para podermos utilizar a teoria de Lênin dentro de uma teoria mais ampla que seja capaz de explicar o imperialismo dos nossos dias. Pois, vejam, sigo uma pista metodológica oferecida pelo filósofo húngaro Gyorgy Lukács em sua obra “Ontologia do ser social”. Segundo ele, a teoria é o “espelhamento de uma realidade material que existe independentemente da consciência”. A constatação de que a exportação de capitais esteve presente em todas as reflexões científicas sobre o imperialismo do começo do século XX me leva a concluir que, de fato, a exportação de capitais era um aspecto objetivo daquela realidade.

(Para ilustrar essa apreensão abstrata de uma realidade concreta, para entender essa questão do espelhamento da concreto na nossa subjetividade, me parece que é possível apontar que, sendo a arte uma outra forma de apreensão da realidade, as formas de arte contemporânea no Brasil refletem um determinado estado de coisas da realidade brasileira. Por exemplo, álbum como o mais recente do Chico César, que começa com “amor é um ato revolucionário” e termina com “fogo nos fascistas”, reflete nossa realidade explicitamente polarizada. Ou, ainda no terreno da arte, a estética carnavalesca deste ano e do ano passado é claramente distinta de períodos anteriores e também é capaz de revelar um determinado estado de coisas no Brasil. Não faria sentido nenhum álbum como o do Chico César ou os desfiles recentes da Mangueira 10 anos atrás. Por isso, hoje, essas formas de arte revelam algo do que está ocorrendo na realidade concreta do Brasil. Mas, atenção, não seria possível afirmar algo sobre o determinado estado de coisas a partir da arte (ou da ciência) se fosse uma manifestação isolada ou expressa de forma esporádica. Contudo, como temos um volume de expressões artísticas que coincidem em refletir um mesmo estado de coisas, é possível, me parece, afirmar algo sobre esse estado de coisas).

Voltando ao terreno das teorias sobre o imperialismo, avancemos no tempo. No pós Segunda Guerra Mundial, especialmente entre os anos 1950 e 1970, observamos uma segunda onda de teorizações sobre o imperialismo, cuja ênfase, contudo, não era mais a exportação de capitais. Ora, se a ênfase se desloca e é compartilhada nesta segunda onda, nos indica que o imperialismo passa a se manifestar com um conjunto de determinações que não coincidem exatamente com o conjunto presente em sua primeira fase. É por esse motivo que é possível dizer que o imperialismo se metamorfoseou entre um período e outro. A realidade mudou e, a partir daí, a teoria também mudou. O que há de novidade nessa segunda onda? Praticamente todos os autores aqui que buscam teorizar sobre o imperialismo, como Ernest Mandel, Arghiri Emmanuel, Ruy Mauro Marini, etc, enfatizam o comércio exterior como expressão do imperialismo daquele período. 

Assistia-se ao que a historiadora Ellen Wood designou como “universalização dos imperativos capitalistas”, que, basicamente, significa dizer a universalização da dependência de todos pelo mercado. Agora, em função dos processos de descolonização e do aparente fim das rivalidades bélicas internacionais entre as potências ocidentais, os teóricos buscavam explicar como as interações via mercado produziam resultados espoliadores. Significava demonstrar que o comércio internacional era, na verdade, uma troca desigual. Através do comércio a riqueza era drenada de uns lugares e apropriada em outros lugares. Tal formulação foi amplamente disseminada na época.

Para chegar nessa conclusão de que o comércio internacional equivale a uma troca desigual, os autores da época recorreram à teoria dos preços de Marx no Livro III de O capital, que é o momento onde Marx explica a distribuição do mais-valor total entre as empresas produtivas. Essa teoria explica como os atos de compra e venda no mercado contém processos de transferência de valor entre os participantes do mercado. São basicamente dois os motivos que geram essa troca desigual: diferencial de produtividade e controle monopólico da produção. Em relação ao primeiro, ocorre que empresas que produzem mercadorias com produtividade menor que as concorrentes tendem a produzir com um custo maior e, portanto, lucro menor. Ora, se empresas diferentes produzindo a mesma coisa obtém lucros diferentes vendendo pelo mesmo preço, é porque parte do valor produzido pelas menos produtivas foi transferido para as empresas mais produtivas. Ou, se produzem coisas diferentes e tendem a ganhar a mesma taxa média de lucro, os setores menos produtivos transferem parte do mais-valor produzido para os setores mais produtivos. Essa transferência de valor representa, digamos, a meritocracia da concorrência capitalista: quem produz com menos trabalho, ganha um prêmio a mais, um lucro extra. (Tem uma tecnicalidade envolvida aqui, que é o processo de determinação dos preços de produção e equalização das taxas de lucro que não cabe nesta exposição). Em relação ao segundo ponto, relativo ao controle monopólico da produção, o ponto é: empresas com controle monopólico da produção conseguem vender suas mercadorias por preços forçadamente e indefinidamente  acima do valor (enquanto durar o controle monopólico), de modo que elas se apropriam de um valor extra acima do que foi produzido por elas próprias. Em ambos os casos, há um desequilíbrio entre produção e apropriação de valores. Como a produção é necessariamente espacializada, o valor se movimenta no espaço com uma direção, com um sentido, que não é aleatório. O que os teóricos na segunda onda mostraram é que o movimento do valor no mercado mundial tem um sentido sul-norte: das empresas menos produtivas e com menor controle monopólico, geralmente situadas no Sul global, para as empresas do Norte.

Em síntese, a ênfase na troca desigual como uma expressão do imperialismo, compartilhada por inúmeros teóricos do que estou chamando de segunda onda de teorizações sobre o imperialismo, me parece acrescentar uma nova camada de explicações sobre o objeto, o que revela que o imperialismo parece ter se complexificado entre os dois períodos analisados aqui. Embora meu critério de demarcação entre os períodos seja aspectos econômicos, não estou menosprezado, ou negligenciando, o papel do Estado, ou do sistema inter-estatal. Estou abstraindo-o. Em outras palavras: eu finjo que não vejo. Evidentemente que os dois aspectos – exportação de capitais (investimentos no exterior) e comércio internacional – só podem funcionar sob um aparato Estatal previamente estabelecido, que estabelece políticas econômicas, taxas de câmbio, diplomacia, forças armadas etc, e um sistema inter-estatal que operacionaliza regras para o trânsito do capital e do valor entre as fronteiras nacionais. (Note, em parênteses, que o mesmo direito internacional que favorece o trânsito do capital, proíbe o trânsito de seres humanos).

Além dessa função subjacente ao Estado, ao poder extra-econômico, na garantia do imperialismo pela via do comércio e do investimento, os Estados atuam concreta e diretamente na promoção do imperialismo: guerras ditas humanitárias, golpes de Estado, ataques ao fundo público, privatizações de patrimônio público, etc. Creio que não preciso me alongar nesse ponto, que é o aspecto mais visível do imperialismo. Quero destacar, contudo, que a ênfase de David Harvey na acumulação por despossessão em seu livro “O novo-imperialismo” de 2003 enfatiza a contemporaneidade destas formas de acumulação primitiva. É bom lembrar que não é uma novidade nas teorizações sobre o imperialismo. Rosa Luxemburgo já tinha enfatizado as expropriações em seu livro “A acumulação de capital”. Contudo, o resgate de Harvey desse tema (e, no Brasil, pela historiadora Virgínia Fontes em sua teoria do capital-imperialismo gestada concomitantemente) repercutiu tanto, instigou inúmeros trabalhos de alta qualidade, que é impossível falar do imperialismo do século XXI sem se referir ao tema da acumulação por despossessão ou expropriações. De fato, na virada dos séculos XX e XXI, a ocupação militar para controle das fontes de matéria-prima, de energia, etc., bem como as privatizações e espoliações do fundo público através da “universalização do ajuste fundomonetarista”, ou seja, universalização da chamada austeridade nos gastos públicos, enfim, todas essas formas de expropriação, constituem aspectos organicamente vinculados à reprodução do capital em escala mundial.

A centralidade desse tema nos debates contemporâneos me leva a crer que é impossível falar sobre a terceira onda de teorizações sobre o imperialismo sem levar esse aspecto em consideração. Pôr em primeiro plano esse aspecto diretamente coercitivo adiciona, mais uma vez, outra camada de explicações sobre o que é o imperialismo.

Enfim, depois de constatar esses aspectos centrais e amplamente difundidos em cada uma das ondas de teorizações, podemos voltar à pergunta inicial, que será respondida na segunda parte deste texto: o que é o imperialismo?

Marcado como:
imperialismo / Lenin