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BRASIL

EaD: improvisação, exclusão e assédio em “Alice no país das Maravilhas”

Sirlene Maciel* e Luiz Henrique de Oliveira**

“Entenda os seus medos, mas jamais deixe que eles sufoquem os seus sonhos.”
Alice no País das Maravilhas

Desde o dia 22 de abril, estudantes, professoras e professores retornaram às atividades no Centro Paula Souza, autarquia estadual que administra as Escolas Técnicas e Faculdades de Tecnologia do estado de São Paulo. As aulas estavam suspensas para garantir o isolamento social, uma das medidas para evitar o avanço da pandemia do Covid-19. Para inserir a comunidade nas diretrizes do EaD, foi veiculado pelo Youtube o projeto nomeado de Masterclass. Impressionante e reveladora foi a videoaula exibida no dia 27 de abril intitulada: “Atitude empreendedora: aprenda com Alice no país das maravilhas”, em que pudemos perceber os planos educacionais em curso e sua desconformidade com o que Lewis Caroll romancista inglês, criador da obra, propôs aos leitores. Ele certamente se contorceu em seu túmulo, porque após mais de um século da sua criação a personagem é utilizada como um modelo a ser seguido da lógica neoliberal e excludente.

A obra publicada na era vitoriana rompeu os padrões literários e sociais da época. Na medida em que a protagonista Alice pretendia fazer descobertas, buscava caminhos diferentes, como seguir o coelho branco, algo inusitado que desembocou em aventuras que a levou até mesmo a enfrentar uma autoridade déspota: a rainha de copas. A personagem apresentava características que vão além da curiosidade, pois a ousadia com que agia pôde transformar o seu olhar em relação ao mundo. A humanidade foi presenteada por um excelente texto literário, universal e atemporal, que permite reflexões sobre a condição humana e nossas ações concretas de transformação da realidade, e, ressaltamos, que de forma alguma a obra faz referência a manipulação e moralização das relações sociais, muito ao contrário do que vem acontecendo com a implementação do EaD no Centro Paula Souza.

É preciso nos atermos em um exemplo categórico de tal situação exposta no site da autarquia: “Etecs e Fatecs voltam às aulas de forma remota e registram bom índice de adesão dos alunos”, e ainda: “o percentual médio de presença dos alunos em todo estado ultrapassou a marca de 73%. O CPS liderou o ranking do Microsoft Teams em redes de ensino por números de usuários, à frente de instituições como Estácio de Sá, Kroton e a norte-americana Laureate Internacional Universities”. Desse modo podemos perceber duas questões:

1 – a adesão de alunos é comemorada, mesmo que uma parte seja excluída, e mesmo sem saber se a parte que acessou participa ou não efetivamente das atividades e em quais condições estão acessando;

2 – é positivo ser liderança em um ranking dos tubarões do ensino privado no país, como por exemplo a famosa Laureate que contratou robôs para substituir professores nas aulas online e que demitiu 120 professores em meio a pandemia, demonstrando total falta de compromisso educacional. 

Vemos com isso que a educação pública é inserida na lógica dos negócios, do gerencialismo, em que os números e a concorrência externa vale mais do que a garantia da qualidade do ensino que é ofertada pelas Etecs e Fatecs, que vêm sendo sucateadas com a falta de investimentos públicos, falta de  funcionárias, funcionários e docentes, de concurso público, de reajuste salarial para a categoria e de diversos benefícios. Uma triste realidade em que as trabalhadoras e trabalhadores se esforçam cotidianamente para garantir qualidade, mas não recebem a devida valorização. Em tempos de pandemia, essa situação que já não era boa caminha para o desastre da privatização.

Aula remota: as portas abertas para a privatização 

Há aqueles que pensam que a proposta para atender aos alunos com aulas a distância foi a medida justa encontrada por governos para tentar garantir que os estudantes não percam o ano letivo, no entanto, sabemos que infelizmente essa ideia é ingênua, tendo em vista que os governos se aproveitam de tal situação de crise sanitária para aprofundar seus planos de sucateamento da educação.

Não importa se os estudantes possuem computadores, banda larga, se passam por problemas de doença na família, se são afetados pela crise econômica; há uma imposição de aulas, atividades e até mesmo avaliações e atribuição de notas.  A folha de São Paulo revelou no dia 14 de maio que “menos da metade da rede estadual de SP acessa o ensino online na quarentena”, isso porque eles têm acesso gratuito para acessar a plataforma do governo, e têm veiculação de aulas  via a TV cultura, sendo que o governo Doria já gastou R$1,6 milhão  em aplicativo, R$700 mil de redes sociais e ainda assim não conseguiu atingir todos os alunos.

No Centro Paula Souza foi adotada a plataforma de um gigante da informática mundial: Microsoft Teams. Resta saber quanto os cofres públicos estão desembolsando para tal empresa ou qual a contrapartida em adotar uma plataforma privada e sem nenhum auxílio de acesso à banda larga disponibilizado para estudantes, professoras e professores. Todo esse improviso e a imposição de tal medida na autarquia vai mais longe ainda e abre portas para obrigar estudantes e docentes nas Etecs e Fatecs a ficarem logados seguindo o horário de aulas presenciais, muitos ficam até mais de 8 horas por dia (Ensino Técnico Integrado), sem contar que os estudantes muitas vezes têm de dar conta de atividades solicitadas em excesso em cursos que podem ter até 17 disciplinas (Componentes Curriculares). 

Muitos estudantes e docentes estão conectados via celular, e os últimos estão trabalhando muito mais fora do período das tais aulas remotas para preparar atividades, slides, gravar vídeos, fazer as correções, lançamentos de notas, chamadas, reuniões e conselho de escola. É preciso lembrar que a saúde física e mental da categoria e dos estudantes estão ameaçadas, pois além da falta de equipamentos adequados, o sofrimento psíquico é muito grande.  Tal medida em cursos modulares, que são os cursos técnicos, são ainda piores, pois além de não ter acesso aos laboratórios, tais cursos estão sendo penalizados com a evasão dos alunos, que diante da crise sanitária perderam seus empregos, estão com familiares doentes, entre outros problemas frequentes na atual situação.

Como se não bastasse isso, alguns gestores estão apurando os horários dos docentes pela plataforma, nas salas virtuais, por whatsapp, etc. Essa pressão sem limites de horários, e sem respeitar inclusive  finais de semana, tem nome: assédio. Em todas as salas de aulas virtuais nas Etecs estão presentes Coordenadores Pedagógicos, Coordenador de Área, Diretor e Orientador Educacional, que se quiserem podem vigiar o professor. Isso abre portas para o assédio institucional e a perda da autonomia docente.  Além disso todas as videoaulas gravadas no Microsoft Teams estará automaticamente cedida em seus direitos para plataforma, sem que se leve em conta o direito ao uso de imagem e direitos autorais dos docentes. 

Devemos lembrar ainda que CPS foi o pioneiro na Reforma do Ensino Médio, principalmente através da elaboração dos Itinerários Formativos. No caso do ensino técnico, por exemplo, essa medida impôs aos alunos o acesso fragmentado ao conhecimento e o impedimento na interação entre a formação técnica e a formação comum de base propedêutica. Isso contribui para o aprofundamento das desigualdades sociais e traduz uma política pública excludente expressa na ideologia mercadológica. 

E submetendo agora a comunidade escolar a um experimento desordenado mais uma vez passa como laboratório para a implementação de uma política nefasta de entrega da instituição pública para a iniciativa privada, promovendo exclusão social. A implementação das atividades online pode significar o início do processo de privatização do Centro Paula Souza, que se mostra para o mercado como uma rede rentável.

No dia 17 de abril o CPS publicou um Chamamento Público para selecionar pessoas jurídicas para contribuir com a “disponibilização de um ambiente virtual de aprendizagem de forma mediada e/ou autoinstrucional ou plataforma digital; oferecimento de capacitação aos docentes e discentes”, fomentando assim uma solução para complementar a formação acadêmica dos cursos oferecidos na Fatecs e Etecs. Como podemos perceber não tem dinheiro para manutenção dos contratos terceirizados, falam em cortes inclusive de docentes, mas estão ofertando verba pública para a iniciativa privada para a criação de ambiente virtual.

O Centro Paula Souza agrava o nervosismo e desespero das trabalhadoras, trabalhadores e estudantes, que em meio ao estado de calamidade pública são submetidos a uma política de terror. Através de informações por vezes desencontradas, mudanças de regras repentinas e insinuações vagas o CPS trabalha hoje promovendo o medo sobre a comunidade escolar

O discurso de que estão ameaçados os empregos e os salários não tem a ver com a efetividade das aulas online, mas sim com o agravamento da crise econômica e a política do governo Bolsonaro e dos governos estaduais que pretendem que a classe trabalhadora pague a conta dessa crise. Inclusive as trabalhadoras e os trabalhadores do Centro Paula Souza já estão sendo prejudicados pelo decreto governamental que suspendeu o bônus e a evolução funcional do Plano de Carreira e ainda tem em curso o projeto Federal para o congelamento do reajuste. 

Suspensão do calendário letivo: para garantir qualidade da educação pública e empregos!

Precisamos resistir às arbitrariedades e reforçar o movimento pela suspensão do calendário letivo. O atendimento aos alunos, nesse momento, não deve priorizar cobranças de notas, planejamentos e diários, mas sim proporcionar atividades que possam apoiar e ouvir os estudantes, como clubes de leituras, indicação de filmes e discussões, mecanismos complementares que não exijam de docentes e estudantes uma carga desgastante de horas de internet, até que possamos voltar à normalidade e estabelecer em discussão com a comunidade escolar a adequação do calendário letivo. 

E para quem acha que isso é impossível, retomemos Alice no país das Maravilhas: “A única forma de chegar ao impossível é acreditar que é possível”. Esse é o pressuposto para formarmos novas Alices, para que as futuras gerações possam descobrir novos caminhos, perceber o diferente, desenvolver o olhar crítico e enfrentar os absolutismos que insistem em nos calar, e não utilizar da Alice no país das Maravilhas para criar um mundo onde a utopia e a esperança em dias melhores seja destruída com o discurso neoliberal e privatizante. A vida humana vale mais do que os lucros, e a educação pública, gratuita e de qualidade é o caminho para a formação de cidadãos conscientes.

 

*Sirlene Maciel é professora do Centro Paula Souza, integrante do Coletivo Sindical e Popular Travessia, da Executiva Nacional da Csp Conlutas e da Oposição Muda Sinteps

** Luiz Henrique de Oliveira é professor do Centro Paula Souza e da Oposição Muda Sinteps.