Em todo o mundo, existem cerca de 20 milhões de enfermeiras e parteiras. No Brasil, segundo a Fiocruz e o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), são mais de 2 milhões de profissionais da enfermagem, constituindo uma categoria 85% formada por mulheres, que compõe 50% do contingente de profissionais de saúde e tem 60% de sua força de trabalho concentrada na saúde pública, ou seja, construindo o Sistema Único de Saúde.
É durante a Semana Brasileira de Enfermagem, que ocorre de 12 a 20 de maio, que o SUS faz aniversário. No dia 17 de maio, o sistema que resiste à mercantilização e ao prestígio concedido à rede privada por parte dos governantes desde 1988, quando foi criado, completou 32 anos. É importante salientar que em 1963 aconteceu a III Conferência Nacional de Saúde (CNS). Durante o evento, foram construídas estratégias para a criação de um sistema de saúde mais amplo e de caráter descentralizado, que assegurasse a saúde como direito de todos os indivíduos. Porém, os planos foram desmontados e abafados no ano seguinte em virtude do golpe militar no Brasil.
Dessa forma, durante o período de repressão, todas as discussões e debates acerca da temática aconteceram às escondidas, principalmente nas universidades, dando início à mobilização pela Reforma Sanitária. Em 1986, após o fim do período ditatorial brasileiro, aconteceu a VIII Conferência Nacional de Saúde, que estabeleceu as bases para a criação do SUS, que viriam a ser consolidadas em 1988, na Constituição Federal.
O SUS é, portanto, um marco democrático. A partir de sua criação, a saúde passou a ser direito de todo cidadão e dever do Estado. Os princípios do SUS romperam com o modelo até então previdenciário, no qual apenas os trabalhadores formais tinham acesso à assistência em saúde no País – que era consideravelmente precária –, enquanto o restante da população dependia da caridade e da filantropia. Sendo criado a partir da Reforma Sanitária, o SUS tem em seu DNA a força das lutas protagonizadas pela população organizada – abrangendo mulheres, LGBTQIA+ e negros e negras, que através da participação de seus coletivos nos espaços deliberativos do sistema de saúde garantem a equidade -, da comunidade acadêmica e científica e de centenas de enfermeiras que estavam inseridas no território, vivenciando as necessidades de saúde da população.
A atenção da enfermagem à saúde do povo subverte o modelo biomédico construído pela evidência da categoria médica na assistência em saúde. Este modelo se mostra cada vez mais insuficiente, uma vez que não vê o paciente de maneira integral e, assim, perpetua o tecnicismo não humanizado dentro de uma atenção fragmentada. Como resultado de um processo de conscientização política atrelado ao trabalho conduzido no âmbito da saúde, a fuga do modelo biomédico abre espaço para a integralidade, baseada em uma atenção que deixa de lado o aspecto curativista e se volta ao cuidado humanizado, científico e focado na ampliação do acesso aos serviços de saúde – como conduz a enfermagem.
Com a pandemia do novo coronavírus, tanto o SUS quanto a Enfermagem receberam por parte da população atenção diferente daquela prestada ao longo dos 32 anos de existência do sistema e de regulamentação da Enfermagem como profissão. Hoje, a população brasileira dá alguns passos em direção ao reconhecimento do quanto ambos os atores são imprescindíveis à saúde do povo.
A saúde universal mostrou ser o único modelo capaz de lidar com emergências sanitárias e, para além disso, de construir a qualidade de vida da população em situações de normalidade a partir do vínculo das comunidades ao serviço e da atenção integral e equitativa. Ao mesmo tempo, as categorias de saúde enfrentam o novo coronavírus diariamente, submetendo-se à exposição viral e ao sofrimento do isolamento domiciliar imposto pela necessidade de proteger suas famílias.
É nesse contexto que a categoria que tem como objeto de trabalho o cuidado às necessidades humanas aparece no cenário como protagonista: é a equipe de enfermagem, enfermeiras, técnicas e auxiliares, que está ininterruptamente ao lado do paciente em todas as fases da vida, do nascimento à morte e em cada período de convalescência pelo qual passa o ser humano.
A enfermagem, com seus especialistas, mestres, doutores e pós-doutores, está na assistência, gestão, auditoria, vigilância, pesquisa e dezenas de outras frentes que ocupariam muito espaço se fossem citadas. Somos o diferencial na qualidade da assistência direta e, também, o olhar holístico na assistência indireta, atuando na gestão dos programas de saúde e do próprio SUS.
Entretanto, também somos a categoria que sofre, ainda hoje, os reflexos da construção histórica perpassada pelo machismo, pelo racismo e pela negligência institucional. Pelo fato de ser composta, em maioria, por mulheres, a enfermagem está sob a incidência direta do machismo que impõe à mulher um papel social de cuidado e subserviência, o que impacta na desvalorização da categoria de enfermagem – tendo em vista que, sendo esperado das mulheres prestar cuidado, interpreta-se que uma profissão que o faz cientificamente não deve ser dignamente remunerada, ter jornada de trabalho regulamentada ou até mesmo repouso digno entre as jornadas de trabalho previsto em lei.
O assédio e a violência, tal qual ocorrem com as mulheres no meio social, são agressões naturalizadas quando direcionadas à enfermagem, que está na linha de frente do serviço. Ainda que seja formada por negros e negras em 54% de seu contingente, a enfermagem ainda sofre com o racismo e o desrespeito às suas profissionais em uma sociedade que renega a equidade à negritude e não reconhece a ampliação do acesso à educação técnica e superior como uma correção às injustiças sociais impostas pelo racismo estrutural.
Além disso, a cultura que subjuga as mulheres ao domínio masculino compreende a enfermagem como categoria subordinada à medicina e incapaz de estabelecer uma união de classe em prol da luta histórica por reconhecimento e valorização. Sendo a união feminina desacreditada e desestimulada pelo patriarcado, o reflexo disso na enfermagem repercute nas dificuldades de organização da categoria durante um longo período. Contudo, este panorama está em processo de mudança.
O desenvolvimento da consciência política e organizativa da categoria de enfermagem, no aspecto profissional, abarca o objetivo de empoderar colegas de profissão, estreitando laços e reafirmando a autonomia do ofício para aglutinar força contra a situação de subordinação imposta. Por outro lado, o aspecto social da conscientização se baseia no processo de ressignificação do olhar da população em geral para com a categoria, para que tenhamos apoio em momentos de reivindicação por condições de trabalho dignas, em vez da ineficiência de um reconhecimento baseado em aplausos e na alcunha de heróis.
O desenvolvimento dessa consciência e o aprimoramento da capacidade de organização da categoria se materializam na luta da juventude aguerrida organizada no movimento estudantil de enfermagem, através de seus centros e diretórios acadêmicos aglutinados na Executiva Nacional dos Estudantes de Enfermagem (ENEEnf), construindo a formação política da enfermagem do futuro e se aliando às profissionais na luta trabalhista.
Ademais, se concretiza nos atos da enfermagem no 1º de maio, Dia do Trabalhador e da Trabalhadora, e no 12 de maio, Dia Internacional da Enfermagem, quando a categoria ecoou a voz de toda a classe trabalhadora brasileira exigindo a atenção e o compromisso do governo com a condução da crise sanitária, homenageando os colegas perdidos na frente de batalha contra a COVID-19 e sinalizando que defender a vida, o SUS e a democracia é a maior bandeira de luta das enfermeiras, técnicas e auxiliares de enfermagem.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou 2020 como ano da Enfermagem, para sensibilizar, por meio de suas ações, as pessoas dos quatro cantos do globo sobre a relevância e o impacto destas profissionais na assistência universal e integral à saúde.
No Brasil, o Ministério da Saúde destacou a categoria como decisiva no combate ao coronavírus e, desde então, diversas homenagens foram prestadas. Enquanto os apoiadores do genocídio e da negligência com a vida e com a saúde pública agrediram enfermeiras na Praça dos Três Poderes, em Brasília, no 1º de maio, a maior parte da população investiu tempo em atitudes de reconhecimento que foram desde aplausos a textos em redes sociais, mostrando a gratidão de milhares de pessoas às enfermeiras na linha de frente contra a pandemia. Porém, para finalizar a Semana Brasileira de Enfermagem, precisamos reiterar que isso não é o suficiente.
Gestos simbólicos e palavras de gratidão de uma sociedade tomada pela pandemia não suprem as carências históricas da maior categoria de trabalhadores do Brasil! É preciso dar às profissionais enfermeiras, técnicas e auxiliares condições objetivas para realizar suas atividades sem a degradação de sua saúde e bem estar físico, psíquico e espiritual. Falta de equipamentos de proteção individual (EPIs), más condições de trabalho, cargas horárias exaustivas e baixa remuneração são fatores que agravam ainda mais a situação dessas trabalhadoras que, mesmo ovacionadas, sofrem com o descaso e a indiferença no seu cotidiano.
Elas são a espinha dorsal do sistema de saúde.
É em 2020, Ano Internacional da Enfermagem, que ganha evidência a luta das profissionais brasileiras por um piso salarial justo e válido nacionalmente, além da garantia da carga horária de 30 horas semanais, há muito tempo conquistada por diversas outras categorias de saúde no país. Embora enfermeiras brasileiras sofram retaliações por parte do Estado e da população sempre que erguem a voz, tais profissionais não deixam de exercer o seu papel que é tão fundamental para efetivação e manutenção da excelência em todos os níveis de atenção em saúde. Elas são, como colocado pela diretora da OMS, Margareth Chan: a espinha dorsal do sistema de saúde.
Por isso, estudantes, enfermeiras, técnicas e auxiliares reivindicam a valorização da sua força de trabalho e convocam os demais setores da sociedade a somar na luta da categoria por uma enfermagem reconhecida não apenas com agradecimentos, mas com reconhecimento, respeito, salários justos, condições dignas de trabalho e cargas horárias condizentes com a complexidade do papel prestado.
Chegamos ao dia 20 de maio saudando a enfermagem brasileira, que com muita força tem perseverado mediante todos os obstáculos de um cenário histórico de descaso exacerbado pela crise sanitária causada pela COVID-19. O bicentenário da enfermagem moderna e os 32 anos do SUS não podem ser celebrados em meio a um cenário de dor pela perda de tantas vidas, recrudescida pelo avanço neoliberal que desmonta a saúde pública e os direitos trabalhistas – objeto de incansável dedicação por parte daqueles que expressam o neofascismo e a necropolítica no Brasil.
Transformamos o luto pelas vidas perdidas em combustível para uma batalha por melhorias, pela manutenção e permanência do SUS, para que continuemos a salvar vidas de todos os brasileiros e brasileiras em carência do nosso cuidado. Seguimos calejadas, porém firmes, e cada vez mais convictas de que a resposta para todas as guerras é: Lutar como uma enfermeira!
* Ana Beatriz (acadêmica de Enfermagem UFPE), Áquila Alcântara (acadêmico de Enfermagem UFPE), Lígia Maria (acadêmica de Enfermagem ESCS-DF) e Pedro Henrique (acadêmico de Enfermagem ESCS-DF)
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