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BRASIL

Ninguém precisa “falar para o povo”

Joana das Flores Duarte*, de Porto Alegre, RS

A ideia de que “falar para o povo” exige a retirada quase que absoluta da complexidade dos temas e fenômenos, colocando-os ao nível residual de apreensão teleológica, entre sim ou não, é na nossa história, o maior dos equívocos.

Durante todo o processo de colonização do nosso país, o senhor das terras, tido como homem letrado, dirigia-se aos seus escravos, libertos e trabalhadores livres, com frases curtas e marcadamente objetivas, de modo que aos interlocutores fosse dado o uso restrito da palavra. Portanto, o processo de dominação dos povos, não foi somente na expropriação e exploração da força de trabalho, mas também na produção discursiva. Assim, o popular ou povo, no curso da história construiu um saber próprio, porém não endógeno. Esse saber é também expressão da castração de um passado recente.

Por isso, toda vez que alguém diz que é preciso “saber falar para o povo” ou “na língua do povo”, eu não nego a distinção que há entre o mundo burguês – com sua erudição elitista – e o saber popular, e que de fato há uma mediação a ser feita. No entanto, também não nego que ao dizermos que existe uma forma discursiva particular de interação com o povo, estamos a colocá-lo em situação análoga ao do passado: residual. Como se o povo não fosse capaz de criar mediações, elaborar, pensar, questionar esse saber erudito, e apropria-se do mesmo no que considerar transitável.

parte da esquerda endossou esse discurso do “falar para o povo”, e boa parte lançando crítica aos/as professores/as universitários/as.

De um tempo para cá, sem mediação entre esses mundos, sem conceber o lugar de protagonismo da história – da nossa e a do velho mundo -, uma parte da esquerda endossou esse discurso do “falar para o povo”, e boa parte lançando crítica aos/as professores/as universitários/as. Para muitos deles e delas, a esquerda acadêmica é prolixa, não sabe o que passa na vida cotidiana dos mais pobres, escreve de forma inacessível e se fundamenta no pensamento eurocêntrico. Essa mesma esquerda parece esquecer as inflexões ocorridas nos últimos anos dentro das universidades, entre elas, a entrada de professores/as oriundos da classe trabalhadora.

Se Foucault disse que toda fala tem interpelação, e que o lugar do sujeito/a requer a existência de outros lugares, inclusive para fazer valer o próprio, o filósofo nos diz que o lugar de fala é também transitório, porque se o ato de falar implica em interpelação, necessariamente, o sujeito requer mediação e transcendência com o seu próprio discurso e lugar. Do contrário, esse discurso se faz por ele mesmo figurando um cenário eterno – “o meu lugar de fala”.
Para quem leu Foucault de verdade, sabe que a vulgarização do que denominam de “lugar de fala” é a tentativa de fazer valer um lugar como esfera monolítica, indivisível e ressentida.

Retomemos Foucault para pensarmos que, sem interpelação e mediação entre mundos, saberes, ciência, o “lugar” do povo parece recorrer à figura passiva, de que sua consciência é sempre predeterminada por um lugar, por uma instância determinista, de uma “consciência adquirida”, como bem criticou Lukács. Por isso a teoria marxiana, de raiz eurocêntrica, segue imprescindível, para explicar a totalidade como elemento analítico dos processos sociais que constituímos e reproduzimos, e a nossa tarefa é avançar e atualizar essa teoria.

Se a nossa consciência não é adquirida, e sim produto das nossas histórias e lutas, num contexto social de classes, “falar para o povo” exige, portanto, a consciência de que não se fala para o povo, se fala para a classe trabalhadora. E, se o método marxiano nos ilumina a pensar dialeticamente o movimento contraditório do real, estamos, pois, a reivindicar que esse “lugar do povo” e “falar para o povo”, são também produções históricas e discursivas que demandam revisão e transcendência – essa última vista a partir de Mészáros, e sua contribuição acerca do controle social democrático!

Eu fui a primeira pessoa da família a ter ensino superior completo com título de doutora. Dos 11 filhos da minha avó materna, nenhum completou o ensino fundamental. Nasceram e trabalharam boa parte de suas vidas no campo, mais tarde todos em empregos informais ou formais precários, nos espaços urbanos. A minha geração frequentou escola, mas universidade não foi um direito de acesso à todas/os, e também não era na “consciência adquirida” de muitos um “lugar do povo”.

Entrei na Universidade Federal Fluminense via sistema de cotas, por ter sido aluna de escola pública. No meu primeiro semestre, na aula de fundamentos do Serviço Social I, a leitura obrigatória foi a do livro da Marilda Iamamoto “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil”. Na disciplina de Economia Política I, O Capital – Livro I. Comecei minhas aulas lendo em um semestre mais do que tinha lido em uma vida e, por inúmeras vezes, achei que aquele lugar não fosse para mim. Eu ainda estava no passado da minha família e de tantas outras, cristalizada na fantasmagoria de um suposto lugar popular particular, por sorte, a persistência, não me deixou desistir.

Foram mais textos naquele semestre, mas esses exigiram na época dicionário do lado, ler e reler por três, quatro ou mais vezes, um único parágrafo. Exigiu de mim e de toda turma – maioria oriunda de escola pública -, estudo, esforço e necessidade de transcendência de um lugar. Não deixamos para trás nossas origens, mas mediamos nossas histórias com a importância da ciência, do estudo, do conhecimento e do entendimento de que o nosso lugar não era uma invenção nossa, assim como nossos valores e culturas, também não – era produto social.

Desse breve relato, que parece hoje ser necessário para afirmar um lugar de originalidade no que escrevo, deixo a minha crítica à ideia de que para “falar com o povo” ou na “língua do povo”, é preciso desvincular-se da erudição, das palavras que não constituem o vocabulário popular. Isso é o que chamo de revisionismo simplório, algo tão em voga na extrema-direita brasileira. Essa que se beneficiando do precário acesso do povo à educação, à erudição, à informação, diz que a terra é plana, que o coronavírus é uma gripezinha, que FakeNews é verdade e que na escola há mamadeira de piroca. Pasmemos ou não, essas incredulidades tomam a realidade cotidiana do povo, como verdade soberana.

falar a língua do povo é saber das suas necessidades, das suas chagas, das suas demandas materiais e subjetivas

Portanto, quando leio publicações de que a universidade é elitista, e que nós professores/as não falamos a língua do povo, eu penso que falar a língua do povo é saber das suas necessidades, das suas chagas, das suas demandas materiais e subjetivas, e isso a gente só sabe vindo delas, ou fazendo pesquisa sobre, do mais, é achismo ou no máximo positivismo vulgar. É reducionismo e reboquismo da dialética e da história, para não esquecer Lukács.

O pouco que sei e apreendi nesses anos de estudo, tecem a minha história de vida, de mulher oriunda da classe trabalhadora, pobre e em que a pobreza foi sempre expressão de subalternidade, mas eu só pude desmistificar tudo isso e saber quem sou, pela via da educação, da formação, informação e da leitura. Não podemos seguir nessa tática colonizadora, opressora e cristalizadora de que é preciso “saber falar para o povo”, porque é justamente o inverso: é preciso saber escutar o povo.

A prova mais trágica que temos do “falar para o povo”, é Jair Messias Bolsonaro. Sua eleição foi assentada na estupidez, na grosseria, na falta de decoro, na ignorância, na perversidade, na imoralidade (e aqui não tem a ver com moralismo cristão), tudo isso resultante do que há de pior no curso da nossa história: supressão da palavra do povo, em nome do povo! Não por acaso, temos como voz do povo, o curral eleitoral.

É por meio “do falar para o povo”, que muitos falam em nome do povo, mas não pelo povo. Daí todo e qualquer discurso pode ser sempre empregado como alternativa, por isso, nesse caos até o ex-presidente Lula se autoriza a “falar para o povo”. Sem dicotomias, isso mostra a raiz histórica e totalizante do nosso problema: a forma apartada das lutas, dos projetos societários e da formação social e política capaz de forjar verdadeiramente uma consciência de classe.

*Joana das Flores Duarte é professora Doutorada em Serviço Social pela PUC/RS. Membro do Grupo de Trabalho Feminismos, resistencias y emancipación, da CLACSO.

 

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