O privado é político: breve nota sobre o suicídio

Joana das Flores Duarte, do Rio de Janeiro, RJ

Desde esta terça-feira, 05, após o anúncio e divulgação da morte por suicídio do ator Flávio Migliaccio, a carta que o mesmo deixou e sua publicização (não publicação) causou polêmica. Migliaccio, em sua carta (para quem leu) deixa explícito o conteúdo político e público de sua morte, não é uma carta privada, é o que Volóchinov denomina como “grau de consciência, de clareza e de constituição da vivência”.

A questão polêmica se dá justamente por ser o suicídio visto sob a tutela do privado, do subjetivo, do mundo interno do indivíduo. Para tentar desmistificar essa visão, retomemos Marx, em seu pequeno e precioso texto sobre o suicídio. Nele, o autor discorre sobre quatro casos ocorridos na França, escritos e arquivados por Jacques Peuchet. Embora Marx e Peuchet fossem como água e óleo, nesses escritos ambos partindo do suicídio realizam sua crítica radical da sociedade burguesa moderna como forma de vida “antinatural”.

Atestam que o suicídio é um sintoma de uma sociedade doente, que necessita de uma transformação radical – por isso ocultar um documento é em última instância negar essa denúncia. Trata-se de uma forma de crítica ética e social da modernidade, ainda que na visão de Peuchet seja inspirada no romantismo. Para Marx, assim como para Walter Benjamin, o romantismo não se reduz à literatura, na medida em que o romance lança luz aos limites da sociedade capitalista moderna. Por isso a tese sobre história de Walter Benjamin é tão atual e radicalmente crítica, pois para o autor o passado idealizado não diz respeito ao presente vivido. Isso explica o porquê de Marx ter acessado os escritos de Peuchet e destacado a importância de Balzac! Juntos nesse pequeno texto assinalam que “a crítica da sociedade burguesa não se pode limitar à questão da exploração econômica – por mais importante que seja. Ela deve assumir um amplo caráter social e ético, incluindo todos os seus profundos e múltiplos aspectos opressivos. A natureza humana da sociedade capitalista fere os indivíduos das mais diversas origens sociais”.

No texto referido Marx trata mais especificamente sobre o suicídio entre mulheres, elemento ainda mais rico para pensar as relações de opressões de classe, raça e gênero. Contudo, “assinala que o suicídio não se explica pelo curso a uma recôndita natureza humana ou por outras “saídas filosóficas” que, para o suicida, não passam de um débil lenitivo para o sofrimento”.

Conforme escreve Rubens Enderle, o suicídio possui, em Marx e Peuchet, o alcance de uma renúncia do indivíduo a uma existência inautêntica, apartada do gênero humano. Suas raízes não se encontram, portanto, em nenhuma individualidade ou sociedade cristalizada, mas sim no âmago daquele vivo e sempre mutável complexo de categorias que chamamos de ser social.

Lembrei-me enquanto escrevia este texto do livro da filósofa Judith Butler, “Quadros de Guerra”, quando a autora diz que sobre a guerra vemos e sabemos pouco, ou melhor, vemos apenas a parte do que julgam louvável mostrar. Não vemos os corpos, não vemos o front, não vemos os amputados, não vemos a face fracassada e radicalizada numa ética reacionária que é a guerra. Pensei na carta de Migliaccio, e em dois trechos que confrontam essa premissa de que a mesma não pode ser exposta: “A impressão que foram 85 anos jogados fora num país como este e com esse tipo de gente […] Cuidem das crianças de hoje.”

Quanto à Organização Mundial de Saúde, ela tem papel institucional, mas não é neutra, vejamos quais são os países membros da ONU e quais detém poder de voto. Lembrando que não concordar com tudo o que é dito e estabelecido por essas organizações, não significa estar em situação similar aos abomináveis Donald Trump e Jair Messias Bolsonaro. Nós falamos em batalhas das ideias e manutenção das instituições, já eles, na destruição completa de tudo.

A carta de Migliaccio é uma denúncia ao atual governo e a tudo o que estamos vivendo nesse país. Para muitos que negam a sua publicização, esse Brasil é tragédia, mas para Flávio, com seus bem vividos 85 anos de vida – e luta – já era farsa.

Flavio, presente!