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O avanço da COVID-19 na África Negra

Gilberto Calil

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor do curso de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), integrando o Grupo de Pesquisa História e Poder. Editor da Revista História & Luta de Classes. Presidente da ADUNIOESTE e integrante da direção do ANDES-SN. Tem pesquisas sobre fascismo, hegemonia, Estado e Poder, Gramsci e Mariátegui.

A expansão do Covid-19 vem se dando em temporalidades distintas ao redor do mundo. No caso do continente africano, os primeiros casos foram registrados entre os últimos dias do mês de fevereiro e os primeiros de março, mas se concentraram nos países da África do Norte. Na África Negra – que basicamente compreende as outras quatro regiões do continente – Central, Ocidental, Oriental e do Sul -, os primeiros registros tardaram bem mais, com exceção da África do Sul, devido ao fluxo turístico neste país. A África do Norte, majoritariamente de população árabe, em 4 de abril concentrava 74% das mortes do continente (458 dentre 620). (1) Este percentual foi diminuindo progressivamente, para 69% em 24/4 (921 dentre 1.326), para 63% em 12/5 (1.167 dentre 1842) e agora está em 54% (1.573 dentre 2.866). Portanto, o percentual de mortes nas demais regiões aumentou no período, de 26% para 46%, o que expressa um ritmo de crescimento mais alto em todas as regiões da África Negra.

Em números absolutos, a situação ainda parece menos grave que em outros países e continentes. Oficialmente, a África tinha no fechamento dos dados de ontem, 2.924 mortes (ou 2.896 descontando a colônia inglesa de Mayotte e a colônia francesa de Maurício), o que representa 0,9% das mortes mundiais (percentual que era 0,6% em 9/4 e 0,7% em 4/5). No entanto, a precariedade dos dados oficiais, o baixíssimo nível de exames realizados e a enorme insuficiência dos recursos de atendimento e saúde da grande maioria dos países tornam a situação bastante preocupante. E mesmo considerando os dados oficiais, certamente muito subnotificados, o crescimento do número de mortes nos últimos dias foi elevadíssimo (58%), exatamente o dobro da média mundial (29%), chegando a 125% na África do Sul e 118% na África Central, índices próximos aos do país em pior situação no mundo, o Brasil, que cresceu 127% no período (de 7.331 para 17.983 mortes).

Além de ter um ritmo de crescimento do número de mortes que no conjunto é o dobro da média mundial, observa-se que este crescimento se distribui de forma muito desigual. O quadro abaixo destaca os 21 países que registram maior número de mortes no continente, e permite observar que seis deles, ainda que partindo de patamares muito distintos, tiveram um crescimento do número de mortes superior a 100%: Chad (460%), Serra Leoa (267%), Senegal (200%), África do Sul (126%), Quênia (108%) e Nigéria (106%).

Situação do COVID-19 na África, 19.5.2020

Fonte. https://www.worldometers.info/coronavirus/#countries, 5.5.2020. 

(*) Outros países com mortos: Guiné (18), Brazzaville (15), Togo (12), Gabão (12), São Tomé e Príncipe (8), Djibouti (7), Zâmbia (7), Guiné Equatorial (7), Guiné Bissau (6), Etiópia (5), Zimbawe (4), Mauritânia (4), Sudão do Sul (4), Malawi (3), Líbia (3), Angola (3), Cabo Verde (3), Benin (2), Eswatini (2), Madagascar (2), Botswana (1), Burundi (1), Gambia (1) e Comoros (1). Excluímos da conta Ilhas Maurício (10 mortes) e Mayotte (18 mortes), por serem, respectivamente, colônias inglesa e francesa.

 

Embora não seja o país com maior percentual, o caso da África do Sul é preocupante, pois indica um aumento expressivo já a partir de uma base inicial maior. Trata-se de um país com uma condição peculiar, pois tanto em relação ao número de casos quanto de mortes, teve um crescimento acelerado no final de março, conseguiu diminuir bastante o ritmo no mês de abril e voltou a sofrer crescimento mais acelerado a partir do início de maio. A África do Sul é, junto com Nigéria, Quênia e Marrocos, um dos quatro países africanos considerados pelo Alto Comissariado de Direitos Unidos da ONU dentre os 15 países com mais graves violações associadas à imposição militarizada do isolamento. Como em diversos outros países africanos, a imposição do isolamento foi feita de forma altamente militarizada e não foi acompanhada por medidas de renda emergencial que garantissem a sobrevivência dos trabalhadores, jogados em condição de miséria e desespero e assim forçados a romper a quarentena enfrentando o duplo risco da contaminação e da repressão policial.

De outra parte, apenas três países tiveram crescimento do número de mortes inferior à média mundial no período: (2) Tunísia (7%), Marrocos (8%), Burkina Faso (11%), Argélia (21%), sendo três deles países árabes da África do Norte e que estão entre os primeiros atingidos e Burkina Faso, um país da África Ocidental, foi um dos primeiros países da África Negra a registrar caso (9.3) e conseguiu conter a expansão, através da repressão militarizada e sem garantir condições de sobrevivência da população.

Em relação ao número de casos, o ritmo de crescimento diminuiu mas segue bastante alto: nos dez dias anteriores tinha sido 141%, (de 19.920 para 48.075), e agora passou a 91% em quinze dias (de 48.075 para 91.907) mais do que o dobro do crescimento mundial no mesmo período (37%).

A debilidade dos sistemas de saúde compromete a confiabilidade dos dados, o que se explicita na baixíssima testagem da maioria dos países. Apenas um país (Djibouti) tem mais de 10.000 testes por milhão, quatro tem entre 5.000 e 10.000 (África do Sul, Gana, Botswana e Ruanda) e outros seis tem entre 2.000 e 5.000 testes por milhão (Gabão, Eswatini, Tunísia, Marrocos e Benin. Todos os demais tem um número inexpressivo de testes: 8 tem entre 1.000 e 2000, 21 tem menos 2.000 testes por milhão, e outros 15 sequer apresentam dados públicos.

Em termos regionais, verifica-se o crescimento acima da média em todas as regiões da África Negra, mas especialmente na África do Sul e na África Central, contrastando com uma situação mais estabilizada na África do Norte:

Dentre os seis países com o maior ritmo de crescimento no período, três deles (Nigéria, Senegal e Serra Leoa), encontram-se na África Ocidental, um na África do Sul (África do Sul), um na África Oriental (Quênia) e um na África Central (Chad), o que mostra que o agravamento da situação não restringe-se a uma única região.

Em países que em sua maioria são extremamente pobres, muitos dos quais sob regimes políticos autoritários e que se utilizam da situação para aprofundar mecanismos de controle e coerção, o estabelecimento e a manutenção dos mecanismos necessários à contenção da pandemia são bastante dificultados e produz diversos impactos contraditórios. A aceleração da expansão da pandemia e as enormes dificuldades para manutenção por maior período das medidas de isolamento social e/ou lockdown, associados à enorme desigualdade e precariedade dos sistemas de saúde e à quase total ausência de solidariedade e ajuda internacionais, indicam um cenário muito preocupante e que tende a continuar se agravando.

*Este texto atualiza e amplia a discussão realizada há duas semanas no texto “Considerações sobre o avanço do Covid-19 na África”, disponível em https://www.observatoriodacrise.org/post/considera%C3%A7%C3%B5es-sobre-o-avan%C3%A7o-do-covid-19-na-%C3%A1frica

 

NOTAS

1 – Utilizamos os dados publicados no wordometers.com, um site de acompanhamento internacional. Para estudos mais aprofundados, referências mais específicas podem ser buscadas nos endereços https://www.afro.who.int/health-topics/coronavirus-covid-19, https://www.hopkinsmedicine.org/coronavirus/ e https://africacdc.org/covid-19/.

2 – É importante registrar que a maior parte dos países do mundo tiveram crescimento abaixo da média mundial, bastante impactada pelos números dos Estados Unidos, pelo crescimento descontrolado no Brasil e pelo aumento também no México.