O assassinato cruel de João Pedro pela polícia do Rio de Janeiro é mais uma demonstração do valor das vidas negras no Brasil. No país mais desigual do mundo, vivemos um Estado Policial muito distante dos ideais de Estado de Direitos conhecidos nos países do Norte. Uma semana após completar 134 anos de uma Abolição formal da escravidão em nosso país, é simbólico que os tiros e as granadas jogadas contra João Pedro, sua família e seus amigos mais uma vez revelam quais foram os mecanismo que impediram a mobilidade social de nossos antepassados no período inicial de trabalho assalariado.
A violência, o genocídio como forma de extermínio dos corpos indesejados. No campo dos Direitos Humanos, nas cortes internacionais, ainda buscamos a compreensão de que o racismo anti-negro que vivemos em nosso país é a forma mais resiliente de um Estado genocida que se expressa no mundo contemporâneo. Aqui nem todas as vidas valem o mesmo.
Como diria Lélia Gonzalez ao analisar a situação nacional: estamos diante de uma racismo altamente sofisticado. Sim! Altamente, por seus aspectos quantitativos: vejam que trata-se de uma perseguição a mais da metade da população de um país com as dimensões do Brasil; mas também qualitativo pois o mito da democracia racial foi essencial para construir esse amortecimento na consciência que aceita, quase que passivamente, a morte dos seus todos o dias. Ou eles não seriam nós?
Sim, há que expandir nossas análises para além de quantos jovens negros são assassinados todos os dias em nosso país. Enquanto eles seguem sendo “jovens negros”, parentes como os de João Pedro seguirão tendo que diante de nossos caixões apresentar antecedentes de caráter de cada um de nós. Sim! Frases como “ele era um bom estudante”, “sua família frequentava a Igreja”, “ele sonhava em ser advogado”, “sua mãe é professora concursada”…. Infelizmente essas frases não são ditas para dar vida a João, se não para tentar comprovar que sua morte foi um engano, que na verdade ele não merecia morrer.
Pois bem, mas nesse Estado que diz defender a vida onde encontramos suporte legal para dizer que “alguns não merecem a vida”? Em teoria, mesmo diante dos maiores erros cometidos, o direito à vida estaria assegurado. Pois bem, parte da lógica da Abolição formal foi que nosso direito a vida não foi igualado com o restante da humanidade. Como forma de manter o status quo das sociedade, seguiu-se, através de outras instituições vendendo-se nossos corpo a preços mais baratos.
Nossa morte não choca. João causa empatia de uma parcela de atores globais. Isto porque sua família, assim como a de Ágatha Felix, apresentam seus bons antecedentes comprovando a injustiça. Mas para cada João, existem todos os dias mais 20. Que não terão a oportunidade de terem seus nomes, suas certidões de nascimento conhecidas e um sentimento de busca por justiça por suas vidas ceifadas.
Parte da formação social brasileira foi para garantir que existisse um tecido social com capacidade suficiente para absorver tamanha atrocidade em seu cotidiano sem que nos rebelassem, atrapalhando assim o funcionamento do sistema. Pois a ordem social vigente é racista e nisso inclui nossos assassinatos.
Mais uma vez o João. E denunciar o genocídio parece cada vez algo mais próximo como repetir um exercício que não gera comoção. Genocídio, palavra utilizada na história da humanidade para citar crimes terríveis contra seres humanos, parece que cada vez está mais longe de ser compreendido como algo que deveria ser inaceitável.
Mais uma vez o João, nos lembrando que se morremos aos milhões pelo mundo afora vítimas de uma pandemia ou de fome, isso nada mais é do que a manutenção do estado normal da coisas. Será por isso que genocídio fruto do racismo anti-negro, em países como o Brasil não produzem resistência das instituições internacionais e nacionais de defesa do Direitos Humanos? Ou será porque nossa vida ceifada pelas balas de fuzil já está na conta do Estado Democrático em nosso país?
Nós queremos viver. E isso não se configura como uma frase figurativa. Nós queremos viver porque produzimos jardins nos asfaltos desse país. Não detemos o poder de determinar às instituições, mas mesmo sob as adversidades construímos a vida. Construímos a vida nas brechas das Instituições de uma Estado violento desde a sua formação inicial contra os negros em nosso país- primeiro na forma escravista depois no estado de classe racista que nos jogou a margem da sociedade.
E por produzirmos vida nos negamos a ser somente denúncia, mas enquanto houverem João, lutaremos pelo direito aos sobrenome. Resistiremos contra esse Estado que assimila nossas mortes como números de uma realidade que tem seus alicerces fundados em covas de corpos negros.
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