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BRASIL

A expansão do centro de lançamento de Alcântara (CLA) como expressão do genocídio étnico das comunidades quilombolas

Artêmio Macedo Costa
Valter Campanato/Agência Brasil

Instalações do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão.

O momento atual é de profunda demonstração que vivemos essencialmente em uma luta de classes sem precedentes. No entanto, em nossa contemporaneidade, o conceito de luta de classes não pode está relacionada dentro de um modelo ortodoxo vinculado somente às categorias de trabalhadores ao meio das relações de produção capitalista, devemos ampliar este paradigma para o campo das relações identitárias.

Partindo desta análise preliminar, destacamos a atual situação em que as comunidades remanescentes quilombolas de Alcântara-MA vêm sofrendo em seus territórios étnicos com a retomada da política de expansão do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) através do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB) para a consolidação do Centro Espacial de Alcântara (CEA) como um polo mundial de aluguel para lançamentos de veículos espaciais.

O Programa Espacial Brasileiro (PEB) dentro do histórico de implantação do CLA em 1980, a partir do decreto estadual 7.820 assinado pelo então governador biônico João Castelo que autorizou a desapropriação uma área de 52.000 hectares, está alinhada dentro da lógica do fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1985) com a justificativa de “interesse público” e que as intervenções fundiárias/territoriais iniciaram efetivamente em 1986 com deslocamentos compulsórios de centenas de famílias quilombolas de Alcântara para áreas controladas pelos militares chamadas unidades rurais de assentamento denominadas de “agrovilas”. Em 1991, através do governo federal de Fernando Collor de Mello, definiu outro decreto presidencial, sem número, ampliando a área do CLA para 62.000 hectares.

É preciso destacar que a partir de 1988, com a redemocratização estabelecida e formalização da Constituição Cidadã, houve uma ressemantização nas formas em que deram às comunidades remanescentes quilombolas de Alcântara da perspectiva organizacional de suas lutas, doravante à constituição se denominarem quilombolas e assim assegurar dentro da identidade étnica a luta por reconhecimento de seus territórios. Essa ressemantização ocorreu na mudança de representação política de luta pelos territórios, até então definida pela estrutura fundiária como camponeses, para a luta territorial de “uso comum”, uma dialética estrutural das relações de propriedade que no sistema capitalista busca desestruturar a propriedade coletiva de “uso comum” para denominar a alienação da propriedade privada individual e assim proporcionar melhor forma de dominação territorial. Um dos instrumentos essenciais para esta definição foi do Brasil ter se tornado signatário em 2002 da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que garante o reconhecimento étnico de seus territórios.

O processo de transformação da política do PEB de “interesse público” para mero enclave comercial se deu no início dos anos 2000 retomando o interesse de expansão do CLA através da primeira tentativa do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) entre o Brasil e os EUA na gestão presidencial de Fernando Henrique Cardoso, porém, o momento político brasileiro em ascensão do progressismo conseguiu derrubar tal acordo que tinha um propósito imperialista dos EUA dentro da perspectiva da Soberania Nacional.

Mas não podemos deixar de levar em consideração que o PEB é uma política de Estado e mesmo se apresentando dentro de um governo recém progressista que se apresentava como alternativa pelas primeiras gestões do governo Lula do Partido dos Trabalhadores (2003-2010), a política de expansão do CLA se manteve através da tentativa da empresa binacional “Alcântara Cyclone Space” (ACS) entre Brasil e Ucrânia, iniciou-se obras irregulares em 2008 em território quilombola das comunidades Baracatatiua e Mamuna. As comunidades quilombolas reagiram dentro da premissa jurídica institucional denunciando tanto no plano nacional quanto internacionalmente acionando a Organização Internacional dos Estados Americanos (OEA). A justiça brasileira concedeu parecer positivo e embargou as obras da ACS. Contudo, a ação de maior impacto positivo para as comunidades quilombolas de Alcântara, foi o processo de resistência formulada pela ação direta através de barricadas e sabotagens no processo que a ACS tentava consolidar a expansão irregular do CLA.

Esta vitória das comunidades quilombolas que articularam uma dialética entre a ação direta e o embate jurídico que defino como a “dialética entre o velho e o novo” trás justamente o confronto das lutas de classes e identidades no sentido clássico de resistência com a articulação deste sentido que se articulou através do novo ordenamento jurídico brasileiro tirando as comunidades remanescentes quilombolas de Alcântara de uma “invisibilidade expropriadora” e se estabelece na composição de instrumentos jurídicos como a luta pelo Protocolo Comunitário sobre Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado (CCPLI) para definição de seus territórios étnicos.

Ainda sob a égide do Partido dos Trabalhadores já no primeiro governo Dilma Rousseff (2011-2014), há uma retomada de formulação de um novo AST com os EUA, através de um Acordo-Quadro assinado em 19 de março de 2011, um acordo de caráter geral, mas que serve como um “quarda-chuva” para estruturação de entendimentos mais específicos, no caso, servindo como ajuste complementar para o programa de cooperação entre a Agência Espacial Brasileira e a Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos (NASA), na missão de mediação e precipitação global, sendo o Acordo-Quadro promulgado pelo então presidente Michel Temer, pós golpe de 2016 por um processo de impeachment de Dilma Rousseff, através do Decreto n. 9.418, de 22 de julho de 2018. O decreto assinala os compromissos diplomáticos ratificando mutualidade para uso pacífico das relações comerciais espaciais denominado “Operações Espaciais Protegidas”. Precisamos destacar que é mera abstração este sentido de cooperação espacial, haja vista, os EUA boicotaram qualquer forma de transferência de tecnologia entre o Brasil e Ucrânia com a empresa binacional ACS com a definição explícita de “embargo tecnológico”, inclusive este boicote denunciado pela Wikileaks em 2009, gerou com o decorrer do tempo sua falência sendo extinta em 2019 pelo CDPEB.

Mas tais projeções que desencadearam através do Acordo-Quadro, foi a recondução do AST na atual conjuntura política neofascista do governo Bolsonaro assinado em 18 de março de 2019 e homologado em novembro do mesmo ano pelo Parlamento brasileiro, desrespeitando premissas de debates em 3 comissões, sendo realizado somente na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional presidida pelo filho de Bolsonaro, deputado federal Eduardo Bolsonaro e sendo exigido após este primeiro momento vista de não ter debates nas demais comissões de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática assim como a comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania solicitada pelo deputado federal do Maranhão Pedro Lucas Fernandes e também uma condução relâmpago de estrangular as três comissões no mesmo dia que chegou ao senado pelo senador Roberto Rocha.

O AST é parte integrante do CDPEB através da composição de Grupos Técnicos (GTs) que estão articulados através de uma coordenação interministerial, não podendo ser abstraída de maneira isolada como foi apresentado de maneira dissimulada pelo Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o Coaching Marcos Pontes, através do Seminário “Base de Alcântara: próximos passos” organizado pelo governo do Maranhão no dia 15 de abril de 2019.

A aceleração da homologação do AST sem um debate transparente e democrático assim como a dissimulação por parte do MCTIC apresenta o carater colonialista em que o governo Bolsonaro se submete aos interesses imperialistas dos EUA.

Em que pesa esta definição do AST frente à expansão do CLA para consolidação do CEA?

Exatamente o avanço da segunda etapa do CDPEB para articular a desestruturação de cententas de novas famílias das comunidades quilombolas de Alcântara que vivem no litoral cuja expansão do CLA alcançará cerca de 12.645 hectares.

Para tal definição, o governo Bolsonaro publicou no Diário Oficial da União (D.O.U.) em 27 de março do ano em curso, a Resolução n.º 11 que reforça um governo de caráter neofascista ao retomar a política de expansão do CLA acarretando novos deslocamentos compulsórios que caracteriza um genocídio étnico em plena Pandemia Global que a sociedade brasileira passa.

A previsão é que o governo Bolsonaro recue em não tratar da pauta quilombola até o fim da quarentena da pandemia com base do parecer do Ministério Público Federal (MPF), mas, podendo agir como da mesma forma que o Parlamento brasileiro fez após negar o parecer do MPF à época de consolidar AST, a toque de caixa, sem discutir a CCPLI. E mesmo assim, a coordenação interministerial do CDPEB internamente conduzirá seus trabalhos sem proporcionar a inclusão democrática das entidades representantes das comunidades quilombolas de Alcântara (MABE, ATEQUILA, MOMTRA, SINTRAF) para que possam assim definir quais as melhores diretrizes que conduziriam o processo de formalização que balisa a elaboração do “Plando de Consulta” conforme o artigo 4º da Resolução n.º 11, entrando em contradição com o artigo 6.º que destina a consolidação do CEA tendo como termos de “execução das mudanças das famílias realocadas, a partir do local onde residem até o local de suas novas habitações, incluindo o transporte de pessoas e semoventes”, coordenado pelo Ministério da Defesa (MD). Mesmo recuando, as comunidades estando em isolamento social, não conseguem se articular em sua defesa frente a esta ousadia manifesta pelo desgoverno Bolsonaro com a Resolução n.º 11.

Envolver este processo de expansão do CLA com a prerrogativa de que o CDPEB beneficiaria socialmente Alcântara dentro de uma política de um pretenso desenvolvimento sustentável, em plena Pandemia Global demonstra mais uma vez que o Estado brasileiro tem uma postura de genocídio étnico.

Recentemente, a Prefeitura de Alcântara, a qual sempre se empenhou contrária às comunidades quilombolas, demonstrando sempre a defesa da expansão do CLA, pediu auxílio ao CLA para combater o avanço da Pandemia através de Ofício n.º 26/2020-GABPREF em 24 de março. Em resposta, através de Ofício n.º10/SIJ/13801 em 26 de março, o CLA alega não poder ajudar “haja vista que o Mistério de Desenvolvimento havia enviado dia 20 de março o Centro de Operações Conjuntas para atuar na coordenação e planejamento do emprego das Forças Armadas no combate à Covid-19, mas até esta data nunca chegou nada em Alcântara-MA.”, conforme publicação no site do G7MA com o título da matéria “CLA diz não à Prefeitura de Alcântara no combate a Covid-19” de 06 de maio do ano em curso. E para agravar esta situação que se alastra no município de Alcântara, uma matéria publicada pelo blogueiro Joerdson Rodrigues na data de 08 do mês em curso, com o título “BOMBA: Esposas de militares denunciam Centro de Lançamento de Alcântara que tornou-se a Base de Contaminação da COVID-19”. A publicação trás denúncias em áudios de possíveis esposas de militares com indícios de que o epicentro de contaminação em Alcântara partiu do CLA, sendo que estas denúncias precisam ser investigadas com urgência.

Com toda esta realidade, as comunidades quilombolas tomaram a iniciativa de fecharem seus territórios para qualquer eventual visita de estranhos, deixando somente atividades essenciais para as comunidades o acesso de seus territórios.

O processo de expansão do CLA dentro dessas premissas de genocídio étnico tem como superestrutura a definição dentro do que Aníbal Quijano denomina de “Colonialidade do Poder” com o processo de desestruturação étnica das comunidades remanescentes quilombolas de Alcântara de sua matriz organizacional territorial de “uso comum” definida como direito constitucional.

No plano nacional, o ataque à Soberania Nacional é bem clara à medida que o produto original do PEB na instação do CLA na década de 1980 com diretriz de “interesse público” se converteu em um mero enclave de interesse comercial dentro de uma premissa de “commodities tecnológico” na busca da consolidação do CEA para implementar um mero polo mundial de aluguel de veículos espaciais, em que o interesse dos EUA é de retomar o monopólio espacial não só do mercado como também de setor estratégico militar.

Submeter-se a esta política de genocídio étnico e de submissão colonialista é estabelecer dentro do que o geógrafo estadunidense David Harvey denominou de “Novo Imperialismo” a forma como os EUA colocam através desta pretensa política de cooperação espacial através do AST o controle do CEA dentro da premissa de uma “acumulação por desapossamento” dos territórios quilombolas de Alcântara.

Torna-se imprescindível que o governo brasileiro revogue a Resolução n.º 11 e abra imediatamente um canal horizontal de discussão sobre a questão territorial quilombola já reconhecida através do edital em 04 de novembro de 2008, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) tornou público o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), reconhecendo como pertencente à população tradicional o território quilombola de Alcântara, de 78.000 hectares. Esta definição não questiona o atual CLA em que as comunidades quilombolas de Alcântara vêem que deva existir um diálogo entre o progresso científico autóctone e o respeito às tradições étnicas centenárias como prevê a Constituição dialógica e cidadã de 1988.

Entendemos que o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (PEB) não pode está vinculada à alienação territorial das comunidades remanescentes quilombolas de Alcântara que secularmente estiveram invisibilizadas simbólica e estruturalmente. Negar este princípio territorial é negar a constituição dos quilombolas enquanto cidadãos brasileiros.

A história tende a se repetir com o drama dos deslocamentos compulsórios que ocorreram durante o período da implantação do CLA. Parafraseando Marx no celebre “18 Brumário de Luís Bonaparte”, se nos anos 1980, a história ocorreu como tragédia no atual momento da história se repete como farsa.

 

Artêmio Macedo Costa é Historiador, mestre do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Socioespacial e Regional (PPDSR/UEMA) e pesquisador do Grupo de Estudo de Desenvolvimento, Política e Trabalho (GEDEPET/PPDSR/UEMA)