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OPRESSÕES

Um maio há 30 anos e o fim do “homossexualismo”

Lucas Brito, de Brasília, DF
Reprodução / manual de comunicação LGBTI / Aliança Nacional LGBTI

Um maio há 30 anos

Em 1990, no dia 17 de maio, a homossexualidade foi retirada do cadastro mundial de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). Até aquele período, chamada de “homossexualismo”, era definida oficialmente pelo saber médico como um desvio patológico mental, legitimando situações de violações, como terapias de reversão, a conhecida “cura gay”.

De lá pra cá, muita coisa mudou. Se considerarmos um período um pouco maior, as mudanças são ainda mais monumentais. Em 1969, ano da revolta de Stonewall, 74% da população mundial vivia sob leis estatais de criminalização contra homossexuais. Em 2018, esse dado foi derrubado para a marca – ainda vergonhosa – de cerca de 27%, segundo relatório de 2019 da International Lesbian, Gay, Bixesual, Trans and Intersex Association (ILGA World). Em 2018, a mesma OMS deixou de considerar a transexualidade como “transtorno de identidade de gênero”, para passar a defini-la,  agora em novo capítulo, no CID-11, intitulado “condições relacionadas à saúde sexual”, como “incongruência de gênero”. Até 2019, a homossexualidade era considerada crime em 70 países.

Apesar dessas máculas na diversidade humana, é inegável o conjunto de conquistas alcançadas pelas lutas de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexuais e demais pessoas de orientação sexual e gêneros diversos. Nos marcos da contradição, entre avanços e retrocessos, a diversidade é imbatível. Neste 17 de maio, rememorar nossas lutas é a melhor forma de olhar para o presente e de construir um novo futuro.

Em vários países, inclusive no Brasil – recentemente – conquistamos o reconhecimento legal das nossas famílias, direitos diversos, visibilidade, criminalização da violência homolesbotransfóbica, políticas públicas de saúde e educação etc. De forma desigual e combinada, avançou-se em passos largos. Mas será o fim do paradigma do “homossexualismo”? Será esse o caminho da plena emancipação da sexualidade e dos gênero humanos?

Lutas LGBTI+, uma marcha interrompida? 

Mais recentemente, concomitante com o avanço da crise mundial – em seus diversos aspectos econômicos, sociais, culturais e políticos -, os avanços das lutas e conquistas LGBTI+, na arena dos direitos e na disputa dos padrões socio-econômico-culturais sexuais e de gênero, têm convivido, cada vez mais, com o conservadorismo e seus pânicos morais/sexuais.

O recrudescimento, inclusive, do paradigma do homossexualismo, expresso no retorno de tentativas, algumas vitoriosas, de práticas “terapêuticas”para a dita cura gay, a difusão da expressão “ideologia de gênero”, projetos como a Escola sem Partido, aqui no Brasil, e as proibições de manifestação de orgulho LGBTI+ na Rússia, são todos exemplos do problema sexual/moral e de gênero da sociedade moderna globalizada atual – em crise.

No Brasil, as lutas LGBTI+, após a epidemia da AIDS, cada vez mais, centrou-se na disputa institucional por direitos, disputando a institucionalidade estatal. Acontece que o Estado, capitalista que é, condiciona, em última instância, as políticas sociais ao “sucesso” das políticas econômicas. Em que pese que, de tempos em tempos, as lutas LGBTI+ consigam acumular conquistas no campo dos direitos, elas estarão sempre atormentadas, no Estado, pelas correlações de forças sociais e políticas no marco da hegemonia das classes dominantes. O funcionamento do Estado depende da acumulação capitalista.

Com isso, como compreender que, mesmo durante os anos de relativa estabilidade nos governos do PT, as pautas LGBTI+ alcançaram tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco? Mesmo com todos os projetos e políticas públicas voltados para as questões LGBTI+ – geralmente marcadas pela insuficiência de recursos – esses governos sucumbiram às chantagens dos grupos mais reacionários da política brasileira, como no caso do Projeto Escola Sem Homofobia? Ou, até, por que esses governo não criminalizaram a homolesbotransfobia por Medida Provisória, em especial após 2013, quando as mobilizações sociais incorporaram, dentre outras pautas, aspectos das lutas LGBTI+, especialmente contra a “cura gay”?

Comumente, a dita governabilidade – determinada pela correlação de forças sociais e políticas entre as classes – é a primeira explicação para esse problema. Mas governabilidade a serviço de qual tipo de “equilíbrio”social? As políticas econômicas e sociais do Estado orientam-se para a distribuição desigual dos recursos socialmente produzidos, submetida às classes e frações de classes dominantes. Por esse motivo, ao disputar-se o Estado, não podemos, em hipótese alguma, perder esse problema de vista.

Apesar das dificuldades, aumentadas neste momento de curso reacionário do Estado capitalista dependente brasileiro, há, também, oportunidades. Uma delas é a conclusão, a ser sistematizada pelos movimentos sociais e políticos da classe trabalhadora explorada e oprimida, acerca das potencialidades e limites experimentados pelas lutas LGBTI+ ao longo dos anos. A marcha deve seguir – e seguirá -, mas estará mais forte e terá mais chance de sucesso, caso compreenda as contradições e determinações políticas e sociais do estado capitalista.

A hipótese repressiva

Até, pelo menos a década de 1960, a hipótese de que a sexualidade era cativa da repressão na sociedade moderna era majoritária. As transformações nos padrões de família e sociossexuais, advindas da “revolução”sexual liberal – e suas refrações desiguais e combinadas – resultou no fortalecimento da hipótese dos direitos e da visibilidade. Seria possível, mesmo em uma sociedade capitalista, libertar a sexualidade?

A colocação da sexualidade no discurso, como atenta Foucault no seu trabalho História da Sexualidade ao criticar a hipótese repressiva, revelou nova localização sócio-econômica e cultural para essa. Antes condenada às sombras e ao pecado, passou a figurar protagonismo no mercado, na arena política e no comportamento. Hoje, o sexo é onipresente, condição tão nítida no mercado mundial através da publicidade. Contudo, o sexo e a sexualidade não deixaram de ser reprimidos.

Na história do Brasil, por exemplo, a ausência de códigos penais que criminalizassem a homossexualidade nunca foi empecilho para a violência direta do Estado contra pessoas LGBTI+. A moralidade religiosa advinda da Europa e parte da hegemonia colonial, se encarregou de cercar a sexualidade das penalizações por sodomia. Indiretamente, o Estado brasileiro criminalizou a homossexualidade por meio do crime de vadiagem, o que se tornou uma prática comum, por meio das “batidas” policiais contra espaços de concentração de pessoas LGBTI+. Na última ditadura, instalada em 1964, esse tipo de perseguição se tornou ainda mais frequente e assumida pelos aparelhos de repressão estatal.

O capital, frente às crescentes demandas pela libertação da sexualidade e contra as desigualdades e imposições sociais ao gênero, respondeu com mercadorias. O sexo, despido da própria sexualidade, fora tornado ainda mais focado nas genitálias, hegemonizado pela masculinidade, fetichizado e normatizado (exemplo). Ao invés de alcançarmos uma sociedade genuinamente erótica e livre, fomos cercados pelos padrões sociossexuais do mercado.

Portanto, o retorno à hipótese repressiva, tão comum nos trabalhos freud-marxistas de Reich e Marcuse, é fundamental para compreender os limites a serem superados pela demanda da livre expressão das potencialidades humanas, campo da sexualidade e do gênero. Neste momento, onde o conservadorismo autoritário e neoliberal do projeto onde se encontra o governo Bolsonaro, as lutas LGBTI+ devem buscar se enfrentar com a raíz da questão sexo-gênero. A ditadura tem uma de suas raízes no medo irracional das massas à vida e à liberdade (Reich, A função do orgasmo, p. 23). Diversidade sexual e de gênero são constituintes da humanidade, portanto da vida e da liberdade. Frente aos acontecimento dos últimos 30 anos, uma das conclusões urgentes é a de que o mercado não garante a livre orientação sexual e identidade de gênero.

30 anos depois: por uma sociedade genuinamente erótica 

Com as mudanças profundas nos arranjos familiares e a pretensa liberdade sexual, pode parecer obsoleto que a sociedade capitalista ainda imponha o controle da sexualidade, o comportamento heterossexual e o padrão cisgênero.

Acontece que poucas sociedades – se é que elas existem – justificam suas instituições pelas suas reais funções. Suas instituições, com exceção de períodos específicos, são, em grande medida, justificadas por meio de ideologias, não pela força bruta escancarada. Esses meios ideológicos conferem às instituições status de “naturais”. A família patriarcal, mesmo enfraquecida ao longo dos anos, segue sendo uma dessas instituições revertidas de um tipo de véu místico ideológico.

O controle do comportamento sexual e dos padrões cisheteronormativos do gênero são, ainda hoje, fundamentais para a defesa ideológica da família, para a desigualdade de gêneros e, em última instância, para o exercício da dominação.

O capitalismo, para além do capital, estrutura-se a partir de exploração, alienação e dominação. Não existe capitalismo sem opressão. A repressão à sexualidade e o que aqui chamo de paradigma do homossexualismo, não necessariamente operam no processo de valorização do valor, obtido a partir da exploração da força de trabalho, para alcançar a mais-valia. Contudo, nem por isso, deixa de ser estruturante para as relações de exploração, opressão e dominação capitalistas.

Neste 17 de maio, 30 anos depois, a reflexão que trago será assim sistematizada: “(…) a opressão sofrida por pessoas homossexuais está firmemente pautada na necessidade de manter a hegemonia da ideologia sexista e reacionária de uma sociedade de classes (…)”. (Uma estratégia revolucionária para a libertação gay, PSD australiano, 1979).

Neste Dia Internacional de Lutas contra a LGBTIfobia, devemos reivindicar o necessário caráter anti-sistêmico dessas lutas, que, para serem vitoriosas, devem enfrentar o próprio capitalismo. Pois, nos marcos do capital, nunca haverá a real libertação sexual. Com isso em mente e à frente, marchemos por uma sociedade genuinamente erótica e livre!